Tia Nastácia também havia perdido o medo aos bichinhos depois que viu que não mordiam. Chegou até a ficar amiga íntima da senhorita Sardinha, ou Miss Sardine, como era chamada no reino, por ter nascido nos mares que rodeiam a Terra Nova, perto do Canadá. Como boa norte-americana, Miss Sardine mostrava-se muito segura de si. Não era acanhada como as outras. Fazia o que lhe dava na cabeça, tornando-se famosa no reino pelas suas excentricidades. Uma delas consistia em dormir dentro duma latinha, em vez de dormir na cama. “Estou praticando para a vida futura”, costumava dizer com um sorriso melancólico. A vida futura das sardinha, como todos sabem, não é no céu, mas dentro de latas... Miss Sardine fez grande camaradagem com tia Nastácia. Logo que chegou foi se metendo pela cozinha adentro, a examinar tudo com uma curiosidade de mulher velha. E não parava com as perguntas.
— Que monstro esquisito é este? — perguntou mostrando o fogão.
— Isso se chama fogão — respondeu a preta.
— E essa coisa vermelha que ele tem dentro?
— Isso se chama fogo.
— E para que serve?
— Serve para queimar o dedinho de quem bole com ele.
E tia Nastácia dava risadas gostosas, vendo a cara de admiração que Miss Sardine fazia.
Em certo momento trepou a uma prateleira. Pôs-se a remexer em tudo. Enfiou a cabecinha dentro do vidro de sal e provou.
— Hum! Estou conhecendo este gosto!...
— Isso é farinha lá da sua terra; vem do mar — explicou a preta.
Provou depois uma pitadinha de açúcar, achando tão bom que pediu para levar um pacote.
Quando destampou o vidro de pimenta-do-reino em pó, tia Nastácia a advertiu:
— Cuidado! Isso arde nos olhos.
Antes não avisasse! Miss Sardine assustou-se, escorregou e caiu de ponta-cabeça dentro do vidro de p menta. Aquilo foi um pererecar e berrar de meter dó
— Acuda! Estou cega...
A negra, muito aflita, tirou-a de dentro do vidro e lavou-a na bica d’água, dizendo:
— Bem feito! Quem manda ser tão reinadeira? Eu logo vi que ia acontecer alguma... Miss Sardine não a ouvia, continuando a gritar e espernear.
— Acuda! Está pegando fogo nos meus olhos! Estou cega, não enxergo nada!...
— Isso passa — consolou a preta. — Tenha um pouco de paciência, menina. Muito pior seria se tivesse caído dentro da frigideira de gordura quente.
Por uns instantes esteve ela assim, com os olhos a arder. Afinal foi sarando, e sarou, e abriu os olhos — primeiro um, depois o outro, depois os dois. Muito admirada de enxergar tão bem quanto antes, deu uma risadinha feliz.
— Sarei! — exclamou Miss Sardine, piscando muito e olhando para tudo a fim de ver se os olhos estavam bons mesmo ou só meio bons. Depois voltou às perguntas, indagando que coisa era uma frigideira.
Tia Nastácia ficou atrapalhada. Contar a um peixinho o que é frigideira até chega a ser judiação. De dó dela a negra deu uma resposta que a deixou na mesma.
— Frigideira — disse — é uma panela rasa onde se põe uma certa água grossa, chamada gordura, que chia e pula quando tem fogo embaixo.
— Que bonito! — exclamou Miss Sardine admirada. — Um dia hei de voltar aqui para passar uma hora inteira nadando nessa água que pula.
A negra tapou a boca com as mãos para esconder a risada que ia saindo. Nesse momento dona Benta gritou lá do fundo do quintal:
— Nastácia! Venha depressa...
— Que será, meu Deus do céu? — exclamou a preta, correndo a ver do que se tratava.
Encontrou dona Benta perto do galinheiro, em conferência com o doutor Caramujo a respeito da doença do pinto sura. Assim que chegou, dona Benta disse:
— Nastácia, veja se me pega o pinto sura.
— Para que, sinhá? — perguntou a preta estranhando a ordem.
— O doutor Caramujo quer dar-lhe uma das suas milagrosas pílulas. Diz que não há melhor remédio para estupor de pintos suras.
Tia Nastácia abriu a boca. Seria possível que aquele bichinho cascudo entendesse até de pílulas?
— Ele está mangando com mecê, sinhá! Onde já se viu caramujo entender de remédios? É impostoria dele, sinhá. Não acredite.
— Eu também estou duvidando e por isso quero tirar a prova. Pegue o pinto.
Resmungando que o mundo estava perdido, foi tia Nastácia em procura do pinto. Pegou-o e trouxe-o.
— Agora preciso dum canudinho — disse o doutor Caramujo.
— Só sei dar pílulas a pinto pelo sistema do canudo.
A negra foi resmungando procurar o canudinho. Trouxe-o. O doutor Caramujo explicou então como se fazia. Enfiava-se o canudinho na garganta do pinto; punha-se a pílula dentro do canudinho; depois era só assoprar.
— Ora veja! — exclamou tia Nastácia sacudindo a cabeça. – Uma coisa tão simples e eu nunca me lembrei! Estou vendo que esses bichinhos do mar são mais sabidos do que a gente, sinhá.
A pílula foi colocada dentro do canudinho e o canudinho foi enfiado dentro da garganta do pinto.
— Preciso agora duma pessoa que assopre. Se não houver pessoa assopradeira, um fole serve.
— Assopre, Nastácia! — mandou dona Benta. Tia Nastácia agachou-se, pôs a boca na ponta do canudinho e ia assoprar quando deu um berro, erguendo-se a tossir como uma desesperada.
— Que aconteceu, Nastácia?
A resposta foi uma careta de quem está engasgado com alguma coisa amarga. Depois falou.
— Aconteceu, sinhá, que o pinto assoprou primeiro e quem engoliu a pílula fui eu!...
Dona Benta não pôde deixar de rir-se; a negra, porém, não achou graça nenhuma, e até se mostrou apreensiva, com medo de que a pílula lhe fizesse mal.
— Não fará mal nenhum — asseverou o doutor Caramujo. – Até pode curar alguma moléstia que a senhora tenha, lá por dentro sem saber.
E assim foi. Tia Nastácia sarou duma célebre “tosse de cachorro” que a vinha perseguindo havia duas semanas, e tanta fé passou a ter nas pílulas do doutor Caramujo, que as receitava para todo mundo.
Até para o Chico Orelha, um pobre sem orelhas que por lá aparecia às vezes a pedir esmolas.
— Tome uma dúzia, seu Chico, que lhe nasce um par de orelhas novas ainda mais bonitas que as que lhe cortaram.
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Continua... Aventura do Príncipe – IV – Os Segredos da Aranha
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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