Segunda Parte
DESENHOS DE UMA VOZ
1.
SE ACHANTE
Era um caranguejo muito se achante.
Ele se achava idôneo para flor.
Passava por nossa casa
Sem nem olhar de lado.
Parece que estava montado num coche
de princesa.
Ia bem devagar
Conforme o protocolo
A fim de receber aplausos.
Muito achante demais.
Nem parou para comer goiaba.
(Acho que quem anda de coche não come goiaba.)
Ia como se fosse tomar posse de deputado.
Mas o coche quebrou
E o caranguejo voltou a ser idôneo para
mangue.
DESENHOS DE UMA VOZ
1.
SE ACHANTE
Era um caranguejo muito se achante.
Ele se achava idôneo para flor.
Passava por nossa casa
Sem nem olhar de lado.
Parece que estava montado num coche
de princesa.
Ia bem devagar
Conforme o protocolo
A fim de receber aplausos.
Muito achante demais.
Nem parou para comer goiaba.
(Acho que quem anda de coche não come goiaba.)
Ia como se fosse tomar posse de deputado.
Mas o coche quebrou
E o caranguejo voltou a ser idôneo para
mangue.
O poema mostra as conjecturas do poeta sobre a honestidade de um caranguejo ‘se achante'.
- a novidade é a voz do poeta emprestada ao caranguejo mas sob o ponto de vista e perspectiva do poeta.
- “Se achante” é o reverso do louvor do poeta à majestade do caranguejo. Devido a essa majestade, o poeta desdobra-se em explicitá-la.
No poema está clara a tentativa de o poeta solenizar o que é desprezível – a majestade de um caranguejo.
Assim o caranguejo:
- é idôneo para flor
- andava sem olhar de lado
- montado num coche de princesa
- andava devagar/ Conforme o protocolo (solene para) receber aplausos
- Muito achante demais.
- Nem parou para comer goiaba.
- Ia como se fosse tomar posse de deputado.
- Acabou a fantasia – O coche quebrou!
Após emprestar ao caranguejo todos os trejeitos de pessoas solenes e dadas ao mundo das passarelas e aplausos, ao mundo das pessoas movidas a aplausos...
Conclui-se que: “O caranguejo (devolvido a si mesmo) voltou a ser idôneo para o mangue – sua verdadeira glorificação!”
Neste poema aparece a voz do poeta para proclamar a lealdade e idoneidade da beleza de cada coisa com a configuração do seu meio. Será esplendorosa para quem souber ver e proclamar essa beleza de que todas as coisas, em seu meio, são portadoras. E o poeta diz a beleza de um caranguejo “se achante” pra valer.
2.
SONATA AO LUAR
Sombra Boa não tinha e-mail.
Escreveu um bilhete:
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta.
Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro
e atiçou:
Vai, Ramela passa!
Ramela alcançou a cozinha num átimo
Maria leu e sorriu.
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se fez
Sob um luar sem defeito de abril.
SONATA AO LUAR
Sombra Boa não tinha e-mail.
Escreveu um bilhete:
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta.
Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro
e atiçou:
Vai, Ramela passa!
Ramela alcançou a cozinha num átimo
Maria leu e sorriu.
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se fez
Sob um luar sem defeito de abril.
É uma história de amor em tempo de lua ‘arta' – “Lua arta” é uma expressão da cultura.
O cachorro tornou-se um ‘veículo' muito interessante ou correio.
Quanto o tempo se completou a sinfonia chegou ao auge – E o amor se fez.
Sonata é feita de quadros e tempos: tempos reais, tempos supostos e tempos intensos.
Estrutura da Sonata:
- Introdução: Sombra Boa não tinha e-mail. Escreveu um bilhete;
- Tema recorrente ou conteúdo: Maria me espera debaixo do ingazeiro/ quando a lua estiver arta.
- Variação do tema ou tempo de espera ou de suspiro ou um dueto: amarrou o bilhete no pescoço do cachorro/ e atiçou: / Vai Ramela, passa!/ Ramela alcançou a cozinha num átimo!
- Volta ao tema central/principal, com intensidade: Maria leu e sorriu.
- Intermezzo lírico – addaggio – choroso: Quando a lua ficou arta Maria estava.
- Volta ao tema central – Vibrante e Fortíssimo: E o amor se fez.
- Final suave e amoroso: Sob um luar sem defeito de abril.
Música da vida: - a voz da engenhosidade
- a voz do amor
- a voz cúmplice da natureza (luar) embelezando o amor.
3.
EMAS
Elas ficam flanando no pátio da fazenda.
A gente sabe que as emas comem garrafas
abotoaduras freios pedras alicates e tais.
Nossa mãe tinha medo que uma ema
Comesse nosso cobertor de dormir e os
vidros de arnica da vó.
Eu tinha vontade de botar cabresto em uma
ema
E sair pelos campos montado na bicha a
correr.
A gente sabia que a ema quase voa no correr.
Que a ema racha o vento no correr.
Eu tinha era vontade de rachar o vento
no correr.
EMAS
Elas ficam flanando no pátio da fazenda.
A gente sabe que as emas comem garrafas
abotoaduras freios pedras alicates e tais.
Nossa mãe tinha medo que uma ema
Comesse nosso cobertor de dormir e os
vidros de arnica da vó.
Eu tinha vontade de botar cabresto em uma
ema
E sair pelos campos montado na bicha a
correr.
A gente sabia que a ema quase voa no correr.
Que a ema racha o vento no correr.
Eu tinha era vontade de rachar o vento
no correr.
A voz das emas – a voz do poeta ante o vento!
- Elas ficam flanando no pátio da fazenda.
- Mostra o que são as emas e suas proezas de digestão.
- A voz do poeta, ele quer ‘flanar' numa ema. Apropria-se da voz da ema no vento.
- Velocidade da ema: ...a ema quase voa ao correr/ Que a ema racha o vento no correr.
Apropriação da voz da ema pelo poeta: “Eu tinha vontade de rachar o vento no correr”. Assim a ema torna-se o termo de comparação capaz de expressar o grande desejo do poeta, ou superar o vento como as emas fazem, racham o vento. O poeta quer correr, voar, ser mais veloz que o vento.
De fato as emas deram suporte à imaginação do poeta, são fortes, flanam, poderosas na digestão, capazes e rachar o vento. Nelas se materializou a voz do sonho do poeta: ser muito veloz!
4.
VENTO
Se a gente jogar uma pedra no vento
Ele nem olha para trás.
Se a gente atacar o vento com enxada
Ele nem sai sangue da bunda.
Ele não dói nada.
Vento não tem tripa.
Se a gente enfiar uma faca no vento
Ele nem faz ui.
A gente estudou no Colégio que vento
é o ar em movimento.
E que o ar em movimento é vento.
Eu quis uma vez implantar uma costela
no vento.
A costela não parava nem.
Hoje eu tasquei uma pedra no organismo
do vento.
Depois me ensinaram que vento não tem
organismo.
Fiquei estudado.
VENTO
Se a gente jogar uma pedra no vento
Ele nem olha para trás.
Se a gente atacar o vento com enxada
Ele nem sai sangue da bunda.
Ele não dói nada.
Vento não tem tripa.
Se a gente enfiar uma faca no vento
Ele nem faz ui.
A gente estudou no Colégio que vento
é o ar em movimento.
E que o ar em movimento é vento.
Eu quis uma vez implantar uma costela
no vento.
A costela não parava nem.
Hoje eu tasquei uma pedra no organismo
do vento.
Depois me ensinaram que vento não tem
organismo.
Fiquei estudado.
O poema mostra o confronto entre o lúdico e o racional. Estrutura-se na luta entre as percepções e o raciocínio.
O infante é retratado em ações concretas e próprias da percepção material ou “coisal” como é do feitio do poeta. Esse encontro de opostos perceptivos é poetizado justamente valendo-se de um elemento ambíguo que se deixa perceber, mas não se vê, somente se sente e é constatado sensorialmente. Da mesma forma a definição racional do vento é clara, mas não constatada, a não ser sensorialmente.
Nessa circunstância, o infante tenta de várias formas constatar a materialidade do vento; vê todas as suas tentativas se frustrarem. Ao fim dá-se por vencido e se proclama vencido pelo racional: “Fiquei estudado!”
A cada ação proposta pelo poeta, aguardava-se um resultado ou reação do vento. Nenhuma, conforme o poeta, se verificou. Nesse processo acontece uma conceituação poética do vento:
– Ele existe mas não olha para trás quando atingido por uma pedra.
– Atingido por uma enxadada não sai sangue.
– Não sente dor.
– Não tem tripa.
– Não tem corpo sensível a facadas.
– Ele é ar em movimento.
– Ele não aceita o suporte de uma costela.
– Mesmo assim o poeta o apedrejou sem resultado.
– Disseram-lhe que o vento não tem organismo.
Mas o vento existe e dele o poeta extraiu esse poema! Não lhe escutou a voz porque não tem organismo. Não pode falar por si mesmo — somente quando em atrito com obstáculos como as árvores ou saliências do terreno.
Confessa o poeta que a racionalidade acabou possuindo-o: “Fiquei estudado!”
5.
ANTÔNIO CARANCHO
Me chamam de Antônio Carancho:
Carancho é por maneira que eu ando de pé virado
Moda carancho mesmo.
Pra bobo eu não sou condicionado.
Sou mais garantido de cantor.
Porém meu canto é fechado.
Lastreadamente sou Antônio Severo dos Santos.
Carancho é de caçoada.
Tenho vareios no olhar as coisas.
Chego de ver vaidade nas garças.
Eu ouço a fonte dos tontos.
Pedra tem inveja aos lírios.
Isso eu sei de espiar.
Eu combino melhor com árvores.
Totalmente ao senhor eu falo:
Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais
dentro dele.
Outra pessoa desabre.
ANTÔNIO CARANCHO
Me chamam de Antônio Carancho:
Carancho é por maneira que eu ando de pé virado
Moda carancho mesmo.
Pra bobo eu não sou condicionado.
Sou mais garantido de cantor.
Porém meu canto é fechado.
Lastreadamente sou Antônio Severo dos Santos.
Carancho é de caçoada.
Tenho vareios no olhar as coisas.
Chego de ver vaidade nas garças.
Eu ouço a fonte dos tontos.
Pedra tem inveja aos lírios.
Isso eu sei de espiar.
Eu combino melhor com árvores.
Totalmente ao senhor eu falo:
Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais
dentro dele.
Outra pessoa desabre.
A voz do poema define o poeta ou Antônio Carancho. Neste poema constitutivo, a teoria do poema explicita o seu autor.
Proclama-se: Antônio Carancho. Carancho por causa da ave de rapina de ‘ pé virado' e jeito semelhante ao andar da ave.
Proclama-se cantor de um canto fechado, e “tenho vareios no olhar as coisas”. Por “Vareios” subentendem-se as diferenças, as modalidades e a capacidade de um olhar descomum que vê outras realidades não normalmente percebidas pelos mortais comuns!
O poeta exemplifica os “vareios” no olhar as coisas:
- Chego de ver vaidade nas garças.
- Eu ouço a fonte dos tontos.
- Pedra tem inveja aos lírios.
São realidades transferidas às coisas, percebidas somente por um olhar especial que vê além das aparências, que capta os revérberos das coisas em suas relações coisais.
Também o poeta Antônio Carancho se revela em suas preferências:
- Eu combino melhor com árvores.
E estabelece o limite ou parâmetro ideal para a percepção do Belo: “ouvir a fonte dos tontos!”; quem aí chegar não “cabe mais dentro dele!” Em outras palavras, “a fonte dos tontos”, segundo o poeta, tem propriedades engrandecedoras da realidade oculta não acessível à razão. Justamente afirma o poeta, na “fonte dos tontos” jorra outra água. Pois os tontos têm a propriedade de inaugurar as coisas conforme a própria fonte, a tontice. Esta é julgada como bobeira pelo justo julgar racional. O poeta que acessou ou abeirou-se da fonte da Tontice, percebe o mundo, as coisas, um universo diversificado e ilógico, mas capaz de transbordar e engrandecer, pois afirma seu ser. Sua capacidade de inaugurar extrapola, pois cria ou vê sempre as mesmas coisas em outra perspectiva e o mundo cresce até o poeta concluir: “Não (se) cabe mais dentro dele!”
Essa perspectiva de abeirar-se à “fonte dos tontos” é um achado do poeta, sua grande descoberta na variabilidade de ir além do real ou das aparências racionais das coisas.
O mundo jorrante da “fonte dos tontos” tem a propriedade inaugural vertiginosa, vai além de todos os seus limites e extravasa, expande o seu mundo e o seu ‘eu'. Abeirar-se da força da “fonte dos tontos” transforma o ‘eu' do poeta, aumenta sua capacidade de percepção a ponto de ele não mais se perceber como era, é outro. A “fonte dos tontos” o transforma em seu olhar e ele é construído para estar em estado de expansão para a beleza lúdica do universo e das coisas a partir de seu percurso poético.
E ele, não se identificando mais consigo mesmo, afirma que é outro e que o poema o construiu; tornou-se outro ao percorrer o universo inaugurado pela água da “fonte dos tontos”.
Assim concluiu sua inauguração fechando o poema: “OUTRA PESSOA DESABRE!”
O poema contém a teoria em seu caminho inaugural. A proposta do acesso “Fonte dos Tontos” criou o autor, o ‘eu' do poeta.
O que é a FONTE DOS TONTOS no poema?
Vários traços compõem a resposta:
- Fonte dos Tontos é o campo oposto ao racional e ao fotografável;
- Fonte dos Tontos é um campo não perceptível à narrativa linear, mas habitada pelo surpreendente, pelo inesperado e pelo lúdico;
- Fonte dos Tontos é o lado não manifesto da linearidade das palavras, das sintaxes.
- Fonte dos Tontos é o desprezível, o abjeto, tudo que a pessoa comum não aprecia.
- Fonte dos Tontos é o universo das coisas, dos bichos, das árvores, dos vermes insignificantes, dos insetos, dos moluscos nojentos...
- Fonte dos Tontos é a expressividade dos pequenos, dos sem voz, das coisas já usadas e que foram jogadas fora.
- Fonte dos Tontos é a falta de lógica para a racionalidade que não deixa sair dos trilhos, pois ela não tem trilhos.
- Fonte dos Tontos é a oferta das coisas, dos pássaros, dos insetos ao homem desprezível também, ao imbecil, ao fora do prumo, ao não apto ao fechamento das idéias racionais; em compensação aberto às surpresas, às solenidades dos pequenos e desprezíveis, aos escondidos das coisas, às sintaxes inaugurantes e às imagens de contra-mão.
Todo esse conjunto exige um “eu” capaz de ser acessado, de entrar na clareira do ser objeto na suspeita de sua reinvenção. Quando opera o estado de vigília, o poeta atravessa para o outro universo e é construído pela sucessão inaugural desses objetos, situações e percepções novas. Afinal é outro homem, outra pessoa, pois “Outra pessoa desabre”!
Para isso ele venceu o percurso que o poema lhe oferece:
- Antônio Carancho
- não é bobo
- tenho voz – sou garantido de cantor/ Mas meu canto é fechado!
- Tenho vareios no olhar as coisas e vejo: vaidade nas garças, ouço a Fonte dos Tontos, a inveja da pedra
- combino bem as árvores
- ouço a Fonte dos Tontos,
E ao final do percurso, está repleto pela Fonte dos Tontos e está construído – é outra pessoa. Seu “eu” brotou no percurso apresentado pelo poema em etapas distintas e constitutivas.
Nota-se que o poema se estende com percurso que por sua vez também se apresenta no próprio desdobramento como oferta de cada parte que se coordena na dialética e complementaridade da parte com o todo; sendo que o conjunto, o todo, atrai e congrega as partes, as etapas do percurso do poema de acordo com a ‘dynamis' que traz e sustenta a fonte do sentido. Dessa forma, as partes, os conjuntos de versos se coadunam entre si pela força que os conduz ao todo que sustenta e apresenta o sentido do poema.
O sentido do poema Antônio Carancho é disposto nas partes para surgir com evidente estruturação depois de receber a contribuição das partes de forma a realçar a conclusão e o seu sentido máximo: a construção das percepções e constatação, mediante a entrega do poeta ao processo antecipa o desenlace bem disposto; ao fim o poeta foi construído pelo percurso. Por outro lado, também a teoria poética se construiu na exclusividade do percurso suscitado pelo poema!
Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres
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