domingo, 4 de dezembro de 2011

Cesário Verde (O Sentimento Dum Ocidental)


Análise realizada por Lino Moreira da Silva, Universidade do Minho, Portugal

Ao fazer a leitura de O sentimento dum ocidental, de Cesário Verde, vemos em destaque as manifestações da consciência nele presentes, seguimos a via de considerar que o texto dispõe de todos os ingredientes poético-narrativos necessários para contar uma história.

Mas trata-se de uma história que, à primeira vista, quase não é história: é a história do poeta que não cabe em casa, nem cabe em si, e sai de casa e de si, deparando-se, fora, com um cenário humano preocupante e desolador, causa principal do mal-estar que o aflige e de que ele vai tomando (e revelando) consciência passo a passo.

Esse cenário humano geral, com que o poeta se depara, potencia o aparecimento de muitos outros cenários. E isso porque a história que ele conta não é sequencial nem linear, mas encerra em si muitas outras histórias, carregadas de vivências pessoais do poeta, embora literariamente transformadas.

As motivações para a escrita do poema

O sentimento dum ocidental insere-se em O Livro de Cesário Verde (1887). Este livro, o único (e póstumo) do autor, foi dedicado a Guerra Junqueiro e teve colaboração de Silva Pinto, cuja participação levantou (continua a levantar) fortes dúvidas sobre o que é verdadeiramente de Cesário e o que será porventura seu.

O sempre renovado "complexo edipiano" cultural, sentido ao longo dos tempos: tal como com Sócrates e Platão, Tycho Brahe e Johannes Kepler, Mozart e Salieri, Kafka e Max Brod, Husserl e Heidegger…, a trabalhar por dentro, e o incêndio que destruiu a casa de Cesário (1919), em Linda-a-Pastora, onde ficara depositado o seu espólio literário, a trabalhar por fora, vieram complicar ainda mais as coisas, tornando o problema talvez irresolúvel para sempre.

O sentimento dum ocidental pretendeu homenagear Camões na passagem do terceiro aniversário do seu falecimento. Tendo sido originalmente publicado no Porto (1880), o texto passou despercebido à crítica, tendo-se o poeta lamentado disso, numa das suas cartas (Carta de 29.08.1880, a Antônio de Macedo Papança, Conde de Monsaraz), onde escreve que "uma poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, limpa, comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação! Ninguém escreveu, ninguém falou, nem um noticiário, nem uma conversa comigo; ninguém disse bem, ninguém disse mal." (C. Verde, 1999, pp.210).

Cesário diz que o poema foi escrito com essa intenção de celebrar Camões, a que os republicanos (Cesário era-o, de fato, se não, ao que sabemos, por qualquer adesão política formal, pelo menos por opção ideológica profunda, que revela nos seus textos), nesse tempo, deram um relevo especial.

Se é ele quem diz que foi essa a sua intenção, não temos o direito de duvidar. Mas, sendo-o, foi-o de modo original, desconcertado em relação às posições oficiais do tempo, e talvez tenha vindo daí, a par do desinteresse que suscitava o trabalho literário empenhado e a originalidade de Cesário, outra das razões do "esquecimento" da crítica.

É que o poeta, nessa mesma carta, também acrescenta que "apenas um crítico espanhol chamava às chatezas dos seus patrícios e dos meus colegas – pérolas – e afirmava… que os meus versos "hacen malisima figura en aquellas páginas impregnadas de noble espíritu nacional." (C. Verde, 1999, p.210).

Na verdade, o modo como Cesário Verde celebra o 3º centenário da morte de Camões exprime "uma representação objetivada da… decadência histórica" em que tinham encalhado Portugal e os portugueses. À exaltação formal a que oficialmente se aderiu, Cesário Verde contrapõe a denúncia da triste realidade em que o país se encontrava. O ambiente que se desenvolve no poema, acerca da "triste cidade", é simbolicamente depreciativo (a realidade é triste, Lisboa é triste, o país é triste, os portugueses são tristes…). A referência às "crônicas navais" e às "soberbas naus" é uma evocação da pureza dos Descobrimentos, o que não corresponde à realidade vivida, de um couraçado inglês ancorado junto a Lisboa, com toda a humilhação nacional que isso exprimia. Camões salva "outra vez", a nado, o seu livro, mas agora não luta apenas contra a voracidade das águas. A vida relacionada com o mar está transformada em comércio e em desgraça. A figura de Camões, o "épico de outrora", aparece transmutada em "estátua" fria, entre banais bancos de namoro e pimenteiras. Os militares perderam o orgulho de outrora e servem a mediocridade instituída. As frotas desejadas não são localizadas no presente, mas pertencem… aos avós, os "nômades ardentes", que não se sabe de onde virão, porque são sonhados apenas.

É clara a oposição entre aquilo que Cesário pretende que a realidade seja e o que ele sente que ela é, e não consegue disfarçar, por mais que quisesse celebrar corretamente a efeméride do épico. O tempo em que Portugal não passava de "um obscuro desembarcadouro de cruzadores britânicos", sem vontade nem sonho, com todo o abandono e desordem em que se encontrava tudo, não o deixa indiferente. E a isso também não foi "indiferente" a elite cultural alinhada, do seu tempo, que em parte não o compreendeu, mas que também o ignorou propositadamente. O poder instituído sempre teve disto, em Portugal.

A grande motivação para a escrita do poema foi a necessidade de denúncia sentida pelo autor, perante a realidade da Lisboa do seu tempo, povoada de uma maioria de gente submissa e desgraçada, a contrastar com uma minoria abastada e "feliz", com quem ele se diz "aborrecido" e com "raiva como a um marreco" (Carta a Mariano Pina, de 16.07.1879 – C. Verde, 1988, pp.225-228). Uma Lisboa marcada pelas transformações e contradições do fontismo, ainda hoje visíveis, que ele apresenta "refratada nas percepções e sentimentos" que experimenta, e o despertam, enjoam, inspiram, incomodam…, aos mais diversos níveis: físico, social, moral… humano. Uma Lisboa que representava, desgraçadamente, e para o pior, a realidade amorfa, decadente, aviltada, do país.

Os dualismos

Os dualismos presentes na obra de Cesário Verde, em geral, não têm (não merecem, no nosso entender), a relevância que se lhes tem querido atribuir, em termos didácticos, prestando-se até, com tal sobrevaloração, um mau serviço ao estudo da obra do poeta (um estudo formal, dirigido à memória), pela passividade que isso provoca nos alunos, desviando-os da inovação, do despertar da consciência e do desempenho crítico.

Estudar Cesário, como estudar literatura, deve ser um ato pessoal e criativo, que se não coaduna com emolduramentos definitivos de quaisquer partes de uma obra.

Mas com isto não se pretende negar as dicotomias, que estão realmente presentes na poesia de Cesário Verde. Eis algumas dessas dicotomias, que importa levar os alunos a descobrirem: oposição entre cidade e campo, favorecidos e desfavorecidos, pobres e ricos, altruístas e orgulhosos, produção industrial e atividade comercial e vida do campo, consumismo e miséria, proprietários e operários, trabalhadores e ociosos, quotidiano urbano e rural, crescimento urbano e abandono rural, saúde e doença (tuberculose, epidemias), meios de transporte tradicionais e modernos (linha férrea, transportes colectivos), isolamento e falta de informação e meios de comunicação social (jornal, telégrafo), domínio do conhecimento e poder e vigência da ignorância e subordinação, operariado (indústria naval, construção civil, transportes, minas, pescas, tabaco…) e poder econômico, real histórico representado e real poético produzido, restos do real e visões do real, sinceridade poética e artificialidade, sentimento e objetividade, imaginário e realidade, emoção e racionalidade, vida e morte, amor e morte, revolução e tradição, espírito burguês e espírito inovador.

Mais especificamente, em O sentimento dum ocidental, repartidos pelas quatro partes que constituem o poema, fazem-se notar os seguintes dualismos:

Parte I - A realidade do mundo exterior e da consciência do poeta. A infelicidade dos que ficam e a felicidade dos que vão. Os trabalhadores e os ociosos. Os pobres e os ricos. Os favorecidos e os desgraçados. A realidade e a evasão. Os inocentes e os orgulhosos. A felicidade da inconsciência e a infelicidade da consciência.

Parte II - Os tristes e os afortunados. A inocência e a crueldade. A realidade abominada da cidade e a cidade idealizada. Clericalismo e laicidade. Os seres murados e os seres livres. O tempo vulgar de hoje (recinto público, bancos de namoro, exíguas pimenteiras) e o tempo simbólico e grandioso de Camões (brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, levantado num pilar). A paz e a guerra (os soldados). Os palácios e os casebres. Tempo de hoje e Idade Média. As elegantes e os desfavorecidos. A verdade e a falsidade.

Parte III - O exterior (a rua) e o interiores. O dia e a noite (pesa, esmaga). As mulheres de bem e as impuras. As lojas para os que têm posses e a miséria para os desgraçados.

Parte IV - Finitude e eternidade. O presente negativo e o futuro promissor. Hipocrisia e sinceridade.

Uma dicotomia, das mais valorizadas, em O sentimento dum ocidental, é o dualismo cidade-campo. A cidade exprime a mundividência dos bons (os fracos e abandonados) e dos maus (as personagens negativas habitando os seus espaços, o mundo burguês, a que Cesário pertencia, mas que repudiava). O campo representa a vida ligada à natureza (expressão da afetividade), à liberdade, aos valores tradicionais, ao equilíbrio, à memória, a tudo aquilo que se coaduna com os ideais e os sonhos de futuro, de Cesário. O campo representa, sobretudo, a evasão, a compensação do mal-estar provocado pela cidade – que representa a fixidez, a passividade, o palco onde todos os males se representam.

As frustrações de vida do poeta

Cesário concluiu a instrução primária, aos dez anos, recebendo, após isso, formação, na própria loja do pai, para a atividade do comércio. Foi preparado, pela família, para dar continuidade ao negócio de ferragens, na loja que tinha em Lisboa e que geria com determinação.

Igualmente, a família tomou por herança, em 1869, uma quinta, em Linda-a-Pastora. E assim Cesário se tornou comerciante de ferragens e gestor agrícola da propriedade familiar. A sua educação foi toda ela orientada nesse sentido.

Apesar de ter o sustento e a posição social garantidos, Cesário dedica-se intensamente aos negócios, mas considerando as funções que exercia um "peso", sobretudo pelo tempo que lhe tiraram, contrapondo a isso o sonho de ser escritor.

Em cartas a João de Sousa Araújo, ele queixa-se da vacuidade da vida que leva, dos "muitos afazeres" que tem (carta de 20.07.1871 – C. Verde, 1999, p.177), da sua "vida muito estúpida" (carta de 14.11.1871 – C. Verde, 1999, p.178), sem razão de ser (carta de ??.11.1871 – C. Verde, 1999, p.179).

Em cartas ao "irmão" Silva Pinto, denuncia que vive "cheio de trabalho comercial" (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.182) e considera não se conformar por ter de se dedicar ao comércio (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.185). Reconhece que, mesmo "ao serviço da casa" (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.189), anda sempre ocupado com a escrita, a sua e a dos outros.

Diz não se sentir bem "em parte nenhuma", "cheio de ansiedades de coisas" que não pode nem sabe realizar (carta de 1877 – C. Verde, 1999, p.191). Denuncia que está preso à loja, preso ao comércio (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.192), perdido "no meio dos pomares burgueses e produtivos", afastado da literatura mas "amando-a ainda muitíssimo" (carta de 1879 – C. Verde, 1999, p.194). Essa foi uma das suas frustrações.

Aos 18 anos, Cesário matriculou-se no Curso Superior de Letras, a que não deu conclusão. Essa foi outra das suas frustrações. Mesmo assim, a frequência do curso serviu-lhe para estabelecer contatos (sobretudo com Silva Pinto) que lhe viriam a ser essenciais.

Uma outra frustração que marcou Cesário teve a ver com os conflitos mantidos em jornais e com autores consagrados do tempo, tendo sido mal compreendido por quase todos. Isso levou-o a lamentar, numa carta (C. Verde, 1988, pp.219-221), que, "literariamente, parece que Cesário Verde não existe". Foi grande a dificuldade que teve em encontrar espaços onde publicar a sua poesia, e de algumas vezes que o fez foi criticado por escritores como Ramalho Ortigão, Fialho
de Almeida, Teófilo Braga, Gomes Leal, Eduardo Coelho, Guimarães Fonseca… e em meios de comunicação social como o Diário Ilustrado, passando, após isso, a publicar em jornais e revistas de circulação mais restrita.

As contrariedades por que Cesário se viu envolvido fizeram dele um isolado e um inconformista. Isso notou-se a nível das ideias (o projeto de vida que desenvolveu), mas também no seu modo de escrita, na sua criatividade e expressão estética.

Doença e morte

A doença e a morte afetaram, continuamente, a vida e a obra de Cesário Verde. Na sua vida pessoal, marcou-o a morte da irmã, em 1872, com 19 anos. A referência que Cesário faz a "uma paixão defunta", em O sentimento dum ocidental, aplica-se à sua pessoa. O mesmo aconteceu com a morte do irmão, Joaquim Tomás, em 1882, com 24 anos.

Cesário faz várias referências à morte, uma vicissitude que sentia iminente, nas cartas que escreve. Na poesia, várias das suas personagens são doentes. Outras estão à espera de morrer. Frustra-o a impotência perante a dor, a doença, as epidemias, o egoísmo, a falta de desenvolvimento da ciência que não permitia responder aos anseios mais elementares do homem.

O próprio Cesário, sobretudo a partir de 1887, começa a queixar-se de falta de saúde, falando de "escrófulas que se alastram, que se multiplicam depressa", não sabendo se era "resultado sifilítico", ou "outra coisa qualquer". Sabemos que era tuberculose, a mesma doença que lhe havia roubado os irmãos e que, de cura projetada no futuro, por que ele ansiava, não tinha ainda cura no seu tempo, acabando por vitimá-lo também.

A literatura a serviço de um projeto ideológico-social

O sentimento dum ocidental encerra o projeto ideológico-social assumido por Cesário, que não surge completamente formado no poema, mas se vai formando, ao seu decorrer, através de um processo de construção.

O ponto de partida é a realidade focalizada por um poeta/narrador de ambulante, que destaca a realidade do povo, encarado globalmente ou através de manifestações personalizadas, emoldurado na cidade onde existe e a que dá existência. De umas primeiras manifestações imprecisas acerca da realidade, são a pouco e pouco postos em destaque, e de modo cada vez mais visível, as desigualdades, as injustiças e as misérias que afetam as pessoas, as contradições que as marcam, as vicissitudes do sistema que as diminui. Todas as outras manifestações, nomeadamente da realidade burguesa, se destinam a fazer sobressair o seu modo de consciência.

Para formar consciência acerca dessa realidade, o poeta desenvolve um esforço de seleção (pensar é selecionar) e de síntese (a consciência é escolha), através das cogitações contínuas que vai fazendo. Desse modo, e porque a personalidade resulta da síntese dos fenômenos psíquicos selecionados pela consciência, numa sequência de fenômenos a serem continuamente ligados a outros fenômenos anteriores, a personalidade do poeta vai-se enriquecendo, revelando-se cada vez mais nítida a representação que ele faz do mundo.

Mas a formação da sua nova consciência não surge por acaso e a seleção e a síntese verificadas não se operam de modo inocente. Houve fatores na vida do poeta que as marcaram – as vivências do que o rodeia, feitas de misérias e desgraças materiais e espirituais, a formação recebida no ambiente familiar, a conturbação ideológica do seu tempo. Numa lógica de determinismo naturalista, a nada disto o poeta ficou indiferente e tudo isto contribuiu para o desenvolvimento da preocupação social que ele mostra.

No ponto de chegada, a parte final do poema (embora já com algumas marcas anteriores), o poeta/narrador mostra-se possuído, se não de uma nova consciência, pelo menos de uma consciência mais organizada, através da qual toma posição crítica perante a realidade.

Dessa posição, a que adere, faz parte um profundo compromisso social, mostrando-se solidário com os desfavorecidos, os frágeis e os desgraçados, assumindo a sua defesa, valorizando as situações de força popular e destacando as manifestações da dor humana que encontra omnipresentes no ambiente da cidade.

Deste modo, Cesário apresenta uma clara posição política. Fazendo assentar o seu texto na ideologia que perfilha (a que não são estranhos os ideais republicanos e socialistas fortemente divulgados no seu tempo), ele mostra-se um escritor comprometido, para quem a atividade poética é entendida como meio de realizar um projeto de vida. Cesário focaliza a ideologia e a mundividência burguesas para as denunciar, mostrando-se "ressentido" com elas e com todas as suas manifestações e consequências.

Um uso especial da linguagem

Apesar de a linguagem de Cesário Verde ser destituída de marcas eruditas, que escasseiam na sua obra, cuja cultura é sobretudo tributária de informação jornalística ou de tertúlias, ele não deixou de merecer o apodo de "engenheiro da poesia", pelo modo meticuloso e geométrico como se exprime.

O estilo digressivo e impressionista de Cesário merece uma referência à parte. Ele está relacionado com o modo como ele exprime a mobilidade da consciência, assente no número diverso das realidades existentes, cada uma com o seu estilo específico (os sub-universos, para James: o mundo dos sentidos ou das coisas físicas, tal como são experimentadas pelo senso comum, o mundo da ciência, o mundo das relações ideais, o mundo dos ídolos da tribo, os mundos sobrenaturais como o céu e o inferno cristãos, os mundos da opinião individual, os mundos da alegre loucura).

Perante a multiplicidade dos fenômenos com que depara e o modo polifônico a que recorre para os apreender, e com o que vai enriquecendo a sua personalidade (a consciência da realidade, revelada no final de O sentimento dum ocidental, apresenta uma segurança que não existe no seu início, e que foi sendo construída através das vivências essenciais que se foram acrescentando), Cesário privilegia os estados substantivos, os pontos fortes da consciência, em detrimento dos estados transitivos (em que o pensamento pouco se detém). O estilo digressivo que usa deve-se a ele valorizar, sobretudo, os primeiros em relação aos segundos.

Importante destacar o vocabulário inovador, usado em sentido ativo, a expressividade da adjetivação e dos verbos, as imagens inusitadas (ligadas às suas vivências, sonhos, convições sobre a vida, determinações de ação, energias obscuras), o aproveitamento do prosaico para produzir efeitos poéticos, a atenção ao pormenor, a liberdade imagística reveladora de uma nova consciência estética, o recurso a símbolos capazes de traduzir todo um amplo, e ao mesmo tempo concreto, universo lírico, os elementos retórico-estilísticos (comparações e metáforas, sinédoques e metonímias, sinestesias…), a variedade e rigor de estrofes e métrica, o contínuo jogo musical, envolvendo formas e cores, alternando estrofes ou versos de silêncio e quietude com outros de movimento e estridência.

É na parte final do poema que Cesário Verde coloca os principais ingredientes da sua mensagem. Ele considera ser possível construir uma realidade diferente com os meios que define e, a partir daí, contribuir para a transformação do mundo – a ser procurada por ele e por quantos, com ele, quiserem encetar o esforço da construção da nova casa humana: de uma sociedade organizada e desenvolvida, sem exploradores nem explorados, sem opressores nem oprimidos, sem injustiças nem excluídos. A sociedade da utopia, da possibilidade, da vontade, do empenhamento, mas também da dúvida e do muito limitado otimismo.
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Em O sentimento dum ocidental, há tempo, espaço e personagens, como há narrador e ação. O tempo, o espaço e as personagens estão claramente presentes. O narrador é o próprio sujeito poético, como acontece em muitos outros textos de Cesário Verde, que se desdobra nos relatos que insinua e na interioridade que explora.

Alguma dificuldade surge com a narração/ação, sendo necessário o contributo empenhado do leitor para a constituir e organizar e dar sentido às suas partes.

Na obra está o retrato de Cesário Verde, e é como que uma súmula da substância poética de sua obra, somente transfigurada transitoriamente no bucolismo da última fase, o que lhe arrefeceu o tédio, amenizou-lhe o estro, sem, todavia, anular as qualidades que fizeram dele um renovador da poesia portuguesa do século XIX. Na verdade, situa-se no Realismo e antecipa mesmo de muitos anos e em muitos aspectos Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, pela temática da inspiração e dos processos poéticos. É, por isso, o precursor do Modernismo em Portugal.

Na leitura que se faz de O sentimento dum ocidental, destacando as manifestações da consciência nele presentes, segue-se a via de considerar que o texto dispõe de todos os ingredientes poético-narrativos necessários para contar uma história. Mas trata-se de uma história que, à primeira vista, quase não é história: é a história do poeta que não cabe em casa, nem cabe em si, e sai de casa e de si, deparando, fora, com um cenário humano preocupante e desolador, causa principal do mal estar que o aflige e de que ele vai tomando (e revelando) consciência passo a passo.

Esse cenário humano geral, com que o poeta depara, potencia o aparecimento de muitos outros cenários. E isso porque a história que ele conta não é sequencial nem linear, mas encerra em si muitas outras histórias, carregadas de vivências pessoais do poeta, embora literariamente transformadas.

Em O sentimento dum ocidental, há tempo, espaço e personagens, como há narrador e ação. O tempo, o espaço e as personagens estão claramente presentes. O narrador é o próprio sujeito poético, como acontece em muitos outros textos de Cesário Verde, que se desdobra nos relatos que insinua e na interioridade
que explora.

Alguma dificuldade surge com a narração/ação, sendo necessário o contributo empenhado do leitor para a constituir e organizar e dar sentido às suas partes.

No texto de Cesário, deparamos com quatro cenários – Ave-Marias, Noite Fechada, Ao Gás, e Horas Mortas, a que correspondem, respectivamente, o Cair da Tarde, o Acender das Luzes, a Fixação da Noite, a Noite Segura.

Em síntese, podemos constatar que:

A) O tempo

Relativamente ao tempo, revela-se:

- Consciência da sua passagem, entre as Ave-Marias (ao cair da tarde), a Noite Fechada (o acender das luzes), o Ao Gás (fixação da noite) e as Horas Mortas (noite segura).

- Consciência de um tempo real, progressivamente negativo: o anoitecer, as sombras, a preparação da noite, o cair das badaladas, o fim da tarde, a hora de jantar, a hora de acender as luzes, a temperatura baixa, a noite que esmaga, a palidez romântica e lunar, a ocasião de fechar as lojas, a noite de céu limpo em que os astros libertam lágrimas de luz, a cidade às escuras, o tempo de silêncio.

- Consciência de que ao tempo real, negativo, se contrapõe um tempo de evasão (o tempo dos Descobrimentos) e um tempo imaginado de treva (folhas das navalhas e gritos de socorro estrangulados, na escuridão da noite real em que o poeta se move).

- Consciência de que o tempo real negativo diz respeito, simbolicamente, a um tempo, primeiro de decadência nacional, e depois de decadência civilizacional, correspondendo a evasão a uma necessidade de compensação da situação (ao mesmo tempo se aponta uma chave para a solução dos problemas), mas não se deixando antever grande margem para otimismo.

- Consciência da progressão e do adensar da noite: à medida que o tempo passa e o bulício diminui, aumenta o sentimento de dor, angústia e frustração.

- Consciência de que o pessimismo instalado não dá mostras de recuar.

B) O espaço

Predomina o ambiente físico real, revelando-se a consciência do poeta/narrador acerca de: ruas, Tejo e maresia, céu baixo e de neblina, gás extravasado, edifícios com chaminés, cor monótona e londrina, carros de aluguer, casas que parecem gaiolas, boqueirões, becos, cais a que se atracam botes, escaleres de um couraçado inglês, hotéis da moda, um trem de praça, as varandas das casas, as lojas, os arsenais e as oficinas, o rio que reluz viscoso, as cadeias, o aljube, as prisões, a velha Sé, as Cruzes, os andares iluminados, as tascas, os cafés, as tendas, os estancos iluminados, a lua, duas igrejas, um largo, as construções retas, as íngremes subidas, o toque dos sinos, o Largo com a estátua de Camões, o espaço da rua, o Quartel Militar, um palácio diante de um casebre, os Quartéis de Cavalaria, a cidade a esvaziar-se, os lampiões, as montras das ourivesarias, os magazines, a brasserie, os passeios de lajedo, os hospitais, as embocaduras, as lojas, sons de pianos, candelabros que se apagam, frontarias dos prédios, esquinas, ruas estreitas, prédios com trapeiras, astros que libertam lágrimas de luz, portões e arruamentos particulares, lajes onde se ouve cair um parafuso, taipais, uma caleche de luzes acesas, fachadas das casas, ruas como nebulosos corredores, tabernas, escadas dos prédios, o andar superior dos prédios, as sacadas de pedra.

Segue-se o ambiente humano real, com: bulício de gente, gente que parte de comboio, pessoas em viveiros (em casa), dois dentistas que arengam, os guardas das prisões, velhinhas e crianças recolhidos no aljube, os ourives, os emigrados às mesas da brasserie, os pobres mal vestidos e os doentes, um cutileiro, a fábrica de cutelaria a funcionar, a padaria a fabricar pão, as casas de confecções e moda, a loja de luxo com balcões de mogno, as lojas da moda, as plantas ornamentais nos mostradores das lojas, um velho professor de latim que pede esmola, os trabalhadores da noite, o som de uma flauta triste, a vida interior das tabernas, os guardas que revistam os prédios, as imorais em roupão que tossem e fumam.

Há ainda particularidades acerca do espaço físico de evasão (positiva: Descobrimentos, Idade Média; negativa: espaço da cidade, com práticas repressivas da Igreja da Inquisição), espaço físico imaginado (a catedral de comprimento imenso, círios, capelas com santos, andores, ramos, velas; o chão da cidade minado pelos canos); espaço humano imaginado (os fiéis na catedral de comprimento imenso).

A consciência revelada, tanto sobre o ambiente físico real, como sobre o ambiente humano real, não tem toda ela o mesmo valor. A sensibilidade do poeta/narrador vai estabelecendo diferenciações, revelando-se positiva, negativa ou neutra, consoante as circunstâncias. A sensibilidade neutra é simplesmente caracterizadora, a sensibilidade positiva vai para os desfavorecidos pela sorte, e a sensibilidade negativa para os favorecidos por ela.

O ambiente humano real vai ter continuidade nas personagens apresentadas.

C) As personagens

As personagens (os "outros") de O sentimento dum ocidental vão desde a tipificação (gente nas ruas, a turba, o povo em geral) até à individualização (cada uma delas caracterizada com traços rápidos e fortes.

Deparamos com cinco grupos de personagens:

- Personagens do Povo Positivas (gente desprotegida, frágil, vítima da má sorte, com os seus pontos fracos e as suas misérias, que representa a dor humana): os mestres carpinteiros, os calafates, um trôpego arlequim, os querubins do lar, o operariado, as operárias, as varinas, os filhos das varinas, as velhinhas e as crianças do aljube, os presos nas prisões, as pessoas que chegam a casa, os frequentadores das tascas, dos cafés, das tendas, dos estancos, as pessoas que vivem nos "viveiros" (inferidas), os padeiros no fabrico do pão (inferidas), um tocador de flauta (inferido), o Cólera e a Febre, as pessoas de corpos enfezados, os emigrados, as impuras, os pobres, as costureiras e as floristas, as imorais, um forjador, o ratoneiro imberbe, o cauteleiro solitário, o professor de latim, os tristes bebedores, os dúbios caminhantes, os cães.

- Personagens Burguesas Negativas (gente favorecida pela sorte, ou andando na sua roda e vivendo à sua custa): dois dentistas, os comerciantes, os frequentadores dos hotéis da moda, a mulher de "dom", as modistas das casas de confecções e moda (inferidas), os ourives (inferidas), as elegantes, as burguesinhas do catolicismo, a pessoa lúbrica, a velha de bandos, os mecklemburgueses, os clientes e os caixeiros.

- Personagens de Regulação Social (representantes da manutenção da situação vigente, não sendo apresentados em si mesmos, na sua realidade humana, mas na função que desempenham, do lado dos favorecidos da sorte e da vida): os soldados (sombrios e espectrais, recolhem ao Quartel), as patrulhas a cavalo e a pé (saem dos Quartéis, espalham-se por toda a capital), os guardas (revistam as escadas, caminham de lanterna, carregados de chaves), os padres e a sua influência ancestral na sociedade.

- Personagens Conscientes e Sensíveis (conhecedores da realidade vigente, o poeta e quantos se solidarizam com ele, que vivem a realidade do vale escuro das muralhas, sem árvores, entre folhas de navalhas e gritos de socorro estrangulados, na treva, mas nada podem fazer): os emparedados.

- Personagens de Compensação (servem de escape à tensão desencadeada pelo grau crescente de consciência que afeta o poeta: personagens de evasão (mouros, heróis ressuscitados, Camões a salvar Os Lusíadas a nado), personagens visionadas (as vítimas da repressão da Igreja, os frequentadores da catedral visionada, as freiras de antigamente, as esposas, filhos, mães e irmãs estremecidas, a raça ruiva do porvir, os avós com as suas frotas, os nômades ardentes), personagens imaginadas (os astros personificados, solidários com os homens conscientes, chorando lágrimas de luz), personagem da memória (uma paixão defunta).

Numa antevisão de como virão a proceder, nos ainda distantes anos 30 e 40 do século seguinte, o neo-realismo, e, um pouco mais tarde, o existencialismo, o poeta/narrador apresenta as personagens da sua história de um modo perfeitamente organizado, em termos de consciência.

Ele configura a dialética social entre desfavorecidos e favorecidos, cada um sofrendo de inconsciência à sua maneira, com os poderes político e religioso a garantirem a continuidade da situação vigente, e os emparedados nada podendo fazer contra isso, a não ser contrapor consciência à inconsciência e sonhar vitórias futuras, de certa maneira preparando o terreno para que, quando o tempo chegar, a transformação desejada se torne possível. Essa consciência, por parte do poeta/narrador, reflecte-se através de estados de alma diversificados.

D) Os estados de alma do poeta

Perante a realidade, a consciência do poeta manifesta-se através dos mais variados estados de alma, reflexo interior das variações exteriores vivenciadas, refletidas no tempo, espaço e personagens.

O poeta deseja-se alguém que não morresse nunca, qual Sísifo que, de existência eterna, estivesse condenado a renovar continuamente o trabalho-sonho que tem em mãos, nunca suscetível de ser concluído, dada a finalidade de renovação do mundo, a que se propõe, e o jogo constante entre o pessimismo e a esperança que caracterizam as realizações humanas.

São sentimentos direta ou indiretamente verificados:
Soturnidade e melancolia.
Desejo absurdo de sofrer.
Enjoo pelo gás extravasado.
Tristeza provocada pela cor monótona e londrina.
Felicidade pelos que partem e infelicidade pelos que ficam.
Desejo de viajar entre capitais europeias.
Sentimento de que a felicidade só está onde não se está.
Ensimesmamento, na deambulação a esmo pelos espaços da cidade.
Ânsia de evasão.
Inspiração e incômodo pelo cair da tarde.
Simpatia pelos desfavorecidos e hostilidade pelos bafejados da sorte.
Comiseração com a vida das varinas, cujo naufrágio futuro dos filhos se antevê.
Mortificação e loucura pelo tocar às grades, nas cadeias.
Pena pelas velhinhas e crianças que se recolhem ao aljube.
Morbidez (a pontos de desconfiar de um aneurisma).
Tristeza, pela vida na velha Sé, junto às Cruzes.
Antipatia por igrejas e clero, devido às suas práticas opressoras, passadas e presentes.
Consideração pela História (evasão da realidade que dói, embora nem sempre para motivos felizes).
Sentimento de estar "murado".
Desejo de dar resposta a problemas do presente com soluções do passado.
Sensibilidade pelo sofrimento das pessoas que sofrem de cólera e febre.
Sentimento de pouca simpatia pelos soldados.
Sensibilidade pelas contradições e afrontas sociais.
Nostalgia pela Idade Média (evasão).
Comiseração pela tristeza da cidade.
Repulsa perante favorecidos e sobressalto perante aqueles que a vida não favoreceu.
Reprovação das modas estrangeiras.
Sensibilidade para com os quadros revoltados da cidade.
Desconforto perante o ambiente de riso e jogo da brasserie.
Peso e esmagamento provocado pela noite.
Solidariedade com o sofrimento no interior dos hospitais, com os pobres mal trajados e os doentes.
Comiseração pela sorte (submissão) das burguesinhas do catolicismo.
Apreciação das coisas autênticas e salutares da vida.
Aspereza perante os que, favorecidos pela sorte, se deixam atrair pelo luxo.
Compaixão pelos mais fracos e desfavorecidos.
Desejo de evasão perante a realidade crua.
Crítica à propriedade privada opulenta.
Susto e espanto (por exemplo, pelos "olhos sangrentos", as luzes de uma caleche).
Consciência dos ínfimos pormenores da cidade.
Anseio e saudade pelo ambiente pastoril.
Sonho com um mundo perfeito.
Idealização de uma sociedade purificada (família, filhos, esposas e irmãs).
Náuseas, provocadas pelo interior das tabernas.
Compaixão pelos tristes bebedores, de regresso a casa.
Irmanação com os revoltados e os tristes.
Solidariedade com a dor humana e desejo de a superar.

Como se repara, não estamos perante apenas "uma" história, no sentido de uma unidade narrativa, de que poderíamos estar à espera, mas de muitas histórias dentro (a propósito) dessa história.

O sujeito poético / narrador conta a história de cada personagem recriada (que traz à "vida"), conta a sua própria história, histórias da história (do passado, do presente e… do futuro), de entes reais e recriados, da realidade e dos sonhos, da vida (da má vida), histórias de Lisboa e de espaços específicos de Lisboa, histórias do país e do mundo… E nenhuma destas histórias é linear, antes todas elas são complexas, sugeridas pelo poeta, no seu estilo digressivo/impressionista, não dispensando a cumplicidade do leitor para que se tornem consistentes. Todos estes elementos poético-narrativos, com reflexo nas manifestações de consciência, presentes em O Sentimento dum Ocidental, oferecem-se, com a maior vantagem, para serem "descobertos" pelos alunos.

Afigura-se, por essa via, perante eles, uma oportunidade única de desenvolverem espírito crítico e competência de leitura, aproveitando, ao mesmo tempo, linhas de pensamento do melhor e do mais criativo que a literatura portuguesa produziu até hoje, respondendo às finalidades formativas em que a escola não poderá deixar de se mostrar empenhada.

Fonte:
Lino Moreira da Silva, Universidade do Minho, Portugal. Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/o_sentimento_dum_ocidental

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