Sim, eu não canto. Apesar dos pesares serem leves a quem já levou mais de mil quilos de miséria sobre os ombros, eu não canto. Cantando, o mal espantaria. Como eu não canto, me espanto com o mal quando o encontro. Encontros são encantos que a gente inventa. Invento um canto, mas, sem ter quem me levante, nunca fico a mais de um palmo sobre o chão. Hoje eu vi dois cantadores no meio do povo, e fiquei assim, um pouco acima de mim. Minha vida é cantável, sei que é. Mas eu não canto. Em vez disso, fico só, num canto, à espera de quem vai me acompanhar. Meu canto tem asa quebrada, é pardal sem voo, volátil canto, que se esvai no azul. Azul, sinto muito, mas eu não canto. Vermelho, eu sinto mais, mas eu não canto. Amarelo, ainda bem mais, mas eu não canto. Estou à caça de quem trace as linhas da harmonia para mim. Eu só canto. Na verdade, eu só canto e crio melódicas notas para ninguém. Não, eu canto. Mas cantaria melhor com alguém ao lado. Ao lado de mim, minha sombra se assombra. E não canto.
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