domingo, 4 de dezembro de 2011

Contos de Sempre: Charles Perrault (O Barba Azul)


Era uma vez um homem que tinha bonitas casas na cidade e no campo, baixela de ouro e prata, móveis em talha e carruagens douradas; mas, infelizmente, esse homem tinha a barba azul: isso tornava-o tão feio e terrível que não havia mulher ou menina que não fugisse dele.

Uma das vizinhas, senhora de categoria, tinha duas filhas de grande beleza. Ele pediu-lhe uma das filhas em casamento e deixou a dama escolher a que lhe iria dar. Nenhuma delas o queria e empurravam-no de uma para a outra, sem se resolverem a aceitar um homem de barba azul. O que mais as aborrecia era ele ter já casado com várias mulheres e não se saber o que era feito delas.

O Barba Azul, para travar relações, levou-as com a mãe e três ou quatro das melhores amigas e alguns rapazes da vizinhança para uma das suas casas de campo, onde ficaram oito dias. Eram só passeios, caçadas e pescarias, danças e festins e repastos: não dormiam e passavam a noite toda a gracejar uns com os outros. Enfim, tudo correu tão bem que a mais nova começou a achar que o dono da casa já não tinha a barba tão azul e que era um cavalheiro. Logo que regressaram à cidade, o casamento realizou-se.

Ao fim de um mês, o Barba Azul disse à mulher que precisava de fazer uma viagem à província de, pelo menos, seis semanas, para um negócio importante. Desejava que ela se divertisse muito durante a sua ausência, que convidasse as amigas, que as levasse para o campo, se quisesse, que gastasse à larga.

- Aqui estão - disse ele - as chaves das duas grandes arrecadações, aqui estão as da baixela de ouro e prata que não anda a uso, aqui estão as dos cofres onde está o meu ouro e a minha prata, as das caixas de pedrarias e a chave mestra de todos os quartos. Quanto a esta chavinha, é a chave do gabinete no fundo do corredor do andar de baixo. Abri tudo, ide aonde quiserdes, mas, quanto a esse gabinete, estais proibida de lá entrar e proíbo-o de tal forma que, se o abrirdes, podeis esperar tudo da minha ira.

Ela prometeu cumprir exactamente tudo o que lhe fora ordenado e ele, depois de a beijar, subiu para a carruagem e partiu. 20

As vizinhas e as amigas não esperaram que as fossem procurar para irem a casa da recém-casada, de tal forma estavam impacientes para ver as riquezas da casa, não ousando ir enquanto o marido lá estava, por causa da sua barba azul que lhes metia medo. Começaram logo a percorrer os quartos, os gabinetes, os guarda-roupas, todos mais bonitos e mais ricos uns do que os outros.

Subiram depois às arrecadações onde não se cansavam de admirar a quantidade e a beleza das tapeçarias, das camas, dos sofás, das mesinhas de pé-de-galo, das mesas e dos espelhos onde se viam da cabeça aos pés e cujas molduras, umas de vidro e outras de prata e de prata dourada, eram as mais belas e as mais magníficas que jamais se viram.

Não paravam de exagerar e de invejar a felicidade da amiga que, no entanto, não se divertia nada a ver todas essas riquezas, por causa da impaciência em que estava de ir abrir o gabinete do andar de baixo. Estava tão atormentada pela curiosidade que, sem pensar que parecia mal deixar as visitas, desceu a escadinha com tanta precipitação que esteve prestes a partir a cabeça por duas ou três vezes. Ao chegar à porta do gabinete, parou algum tempo, pensando na proibição que o marido lhe tinha imposto e considerando que lhe podia acontecer um desastre por ter sido desobediente; mas a tentação era tão forte que não conseguiu vencê-la. Pegou, pois, na chavinha e abriu, tremendo, a porta do gabinete.

Primeiro não viu nada, porque as janelas estavam fechadas. Alguns momentos depois, começou a ver que o chão estava coberto de sangue coalhado e que nesse sangue se reflectiam os corpos de várias mulheres mortas e amarradas ao longo das paredes (eram mulheres que o Barba Azul tinha desposado e degolado uma após a outra).

Pensou morrer de medo e a chave do gabinete, que tinha acabado de tirar da fechadura, caiu-lhe da mão.

Depois de voltar a si do susto, apanhou a chave, tornou a fechar a porta e subiu ao quarto para se refazer um pouco; mas não podia acalmar-se de tão impressionada que estava.

Ao reparar que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpou-a duas ou três vezes, mas o sangue não saía; bem a lavou e a esfregou com areia e com grés. O sangue continuou lá, porque a chave era enfeitiçada e era impossível limpá-la completamente. Quando se limpava o sangue de um lado, ele aparecia do outro. O Barba Azul voltou da viagem nessa mesma noite. Disse que tinha recebido umas cartas no caminho informando-o de que o negócio que o levara a partir tinha sido concluído em seu proveito.

A mulher tudo fez para demonstrar que estava encantada com o seu rápido regresso.

No dia seguinte, ele pediu-lhe as chaves e ela deu-lhas, com as mãos a tremer tanto que ele adivinhou logo tudo o que se tinha passado.

- Porque é que a chave do gabinete não está com as outras?

- Devo tê-la deixado lá em cima, na mesa.

- Não demoreis a devolver-ma - disse o Barba Azul.

Depois de várias delongas, foi preciso devolver a chave.

O Barba Azul, depois de a examinar, disse à mulher:

- Porque é que há sangue nesta chave?

- Não sei de nada - disse a pobre mulher mais pálida do que a morte.

- Não sabeis de nada - tornou o Barba Azul - mas eu sei muito bem. Quisestes entrar no gabinete. Pois bem, senhora, ides entrar no gabinete e tomar o vosso lugar ao pé das damas que lá vistes!

Ela lançou-se aos pés do marido, chorando e pedindo perdão, com todos os sinais de um verdadeiro arrependimento por não ter sido obediente.

Teria enternecido um rochedo tão bela e aflita estava, mas o Barba Azul tinha o coração mais duro que um rochedo.

- É preciso morrer, senhora - disse ele - e depressa.

- Já que é preciso morrer - respondeu ela, olhando-o com os olhos banhados em lágrimas - dai-me algum tempo para rezar.

- Dou-vos um quarto de hora - tornou o Barba Azul - mas nem mais um momento.

Quando ficou só, ela chamou a irmã e disse-lhe:

- Minha irmã Ana (porque elas tratavam-se assim), sobe, peço-te, ao alto da torre para ver se os meus irmãos não vêm; eles prometeram que viriam ver-me hoje e, se os vires, faz-lhes sinal para se apressarem.

Ana subiu ao alto da torre e a pobre, atormentada, gritava-lhe de vez em quando:

- Ana, minha irmã, não vês vir ninguém? E a irmã Ana respondia:

- Não vejo nada além do sol que se empoeira e da erva que verdeja.

Entretanto, o Barba Azul, segurando um grande facalhão, gritava com todas as forças à mulher:

- Descei depressa ou vou aí acima.

- Um pouco mais, por favor - respondia a mulher, e logo gritava baixinho:

- Ana, minha irmã, não vês vir ninguém?

E a irmã respondia:

- Não vejo nada além do sol que se empoeira e da erva que verdeja.

– Descei depressa - gritava o Barba Azul ou vou aí acima.

– Já vou - respondia a mulher e, depois, gritava:

- Ana, minha irmã Ana, não vês vir ninguém?

- Vejo - respondeu a irmã Ana - uma poeirada grande que vem deste lado.

- São os meus irmãos?

– Infelizmente não, minha irmã, é um rebanho de carneiros.

– Não ides descer? - gritava o Barba Azul.

– Mais um momento - respondia a mulher e, depois, gritava:

– Ana, minha irmã, não vês vir ninguém?

– Vejo - respondeu ela - dois cavaleiros que vêm deste lado, mas ainda estão longe.

E um momento depois exclamou:

- Deus seja louvado! São os meus irmãos, fiz-lhes sinal, o mais que pude, para se apressarem.

O Barba Azul pôs-se a gritar tão alto que toda a casa estremeceu. A pobre mulher desceu e atirou-se a seus pés, lavada em lágrimas e desgrenhada.

– Não vale de nada - disse o Barba Azul - é preciso morrer.

Depois, segurando-a com uma mão pelos cabelos e levantando com a outra o facalhão, ia decapitá-la.

A pobre mulher, virando para ele um olhar moribundo, pediu-lhe apenas um momento para se recolher.

- Não, não - disse ele - recomendai-vos bem a Deus! - e levantando o braço...

Nesse momento bateram à porta com tanta força que o Barba Azul parou de repente. Abriram e logo entraram dois cavaleiros que, com a espada na mão, correram para o Barba Azul. Ele reconheceu os irmãos da mulher, um deles Dragão e outro Mosqueteiro, de forma que fugiu para se salvar. Porém os dois irmãos seguiram-no tão de perto que o apanharam antes de ele chegar ao patamar da escada. Espetaram-lhe a espada no corpo e deixaram-no morto. A pobre mulher estava quase tão morta como o marido e nem forças tinha para se levantar e beijar os irmãos.

Acontece que o Barba Azul não tinha herdeiros e, assim, a mulher ficou senhora de todos os bens. Empregou uma grande parte para casar a sua irmã Ana com um jovem fidalgo, que há muito tempo a amava. Depois, outra parte, para comprar os cargos de capitão aos irmãos. E o resto para casar ela própria com um homem honesto, que a fez esquecer o tempo infeliz que
passara com o Barba Azul.

MORAL DA HISTÓRIA
A curiosidade, embora atraente,
Custa muito caro, frequentemente.
Todos os dias os exemplos são tantos!
É um prazer fácil de alcançar.
Quando se tem perde os encantos
E muito caro acaba por ficar.

OUTRA MORAL DA HISTÓRIA
Por pouco sensato que se possa ser
E de feitiçaria se possa saber
Através do conto é fácil de ver
Que esta história se passou noutros tempos.
Já não há maridos tão terríveis,
Nem que peçam às mulheres coisas impossíveis;
Por mais que sejam descontentes e ciumentos
Ao pé da mulher só mostram amor
E, seja a sua barba duma ou outra cor,
É difícil julgar quem é o senhor.

Fontes:
- José António Gomes e Isabel Ramalhete (Seleção e coordenação). Contos de Sempre. Porto/Portugal: Porto Editora, Setembro de 2004.
- Imagem = http://comentariosdemulher.blogspot.com

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