Dona Aranha, apesar de manca, jamais deixara de acompanhar o príncipe nas suas viagens — nem ela, nem o doutor Caramujo. Médico tem sempre serviço numa viagem e costureira também — um botão que cai, um pé de meia que fura. Por isso dona Aranha também viera.
Trabalhadeira como ninguém, assim que chegou foi logo para o quarto de costuras examinar os apetrechos de dona Benta — a cestinha, a almofadinha de alfinetes, os agulheiros, os carretéis. Só não gostou da máquina.
— Muito pesada e complicada — disse para Emília, que era a mostradeira de tudo.
Vendo-se só com a Aranha, a boneca regalou-se de fazer quantas perguntinhas quis.
— Acho muito bonito esse seu sistema de trazer o carretel dentro da barriga — disse ela. — Só não compreendo como a senhora faz para engolir um carretel...
— Eu não engulo carretéis, menina — explicou a Aranha. – Nós nascemos com o carretel dentro.
— E quando acaba?
— Não acaba nunca.
— Hum! Já sei! A senhora tem fábrica de linha na barriga, não é?
— Deve ser. Nunca entrei dentro de mim para saber.
— Pois eu sei o que há dentro de mim. É só macela. Quando fiquei com a perna seca, tia Nastácia me consertou e eu vi. Ela pôs só macela da bem amarelinha e cheirosa.
— E seu marido, o marquês? — perguntou dona Aranha.
— Também é cheio de macela?
— Creio que não, porque Rabicó é diferente de mim em tudo. Por exemplo: ele come e eu não como. Só como de mentira, por brincadeira.
— Não come? — exclamou dona Aranha muito admirada. — É a primeira pessoa que ouço dizer isso...
— Nunca comi coisa alguma — e sinto bastante, porque comer parece uma coisa muito gostosa. Rabicó quando come arregala os olhos de gosto, e grunhe se alguém se aproxima. A vaca mocha, essa até baba quando come um sabugo de milho.
— Pois lá no mar não existe uma só criatura que não coma. E um come o outro. A gente precisa andar com as maiores cautelas, espiando de todos os lados e escondendo-se quando vê algum peixe. Minha mãe foi comida por uma garoupa.
— Coitada! — exclamou Emília deveras compungida. — E era também costureira?
— Era sim. Todas as aranhas são costureiras.
— E tinha também carretel na barriga? — Está claro. Basta ser aranha para ter carretel na barriga. — E de que cor era a linha?
— A cor não varia. É sempre a mesma para todas as aranhas.
— Que pena! — exclamou Emília triste. — Gosto muito da cor vermelha e se soubesse duma aranha de linha vermelha, iria morar com ela.
— Para quê?
— Para ver. Para sentar debaixo da jabuticabeira e ver aquela linha tão linda que sai, sai, sai e não se acaba mais...
Enquanto Emília ia dizendo suas asneirinhas, dona Aranha, para não perder tempo, cerzia meias. Cerzia tão bem que não havia quem fosse capaz de perceber o cerzido.
Admirada da perfeição do trabalho, Emília disse:
— Se a senhora se mudasse para a cidade havia de ganhar um dinheirão.
— E que faria do dinheiro?
— Oh, muitas coisas! Podia comprar uma casa, podia comprar um guarda-chuva. Pedrinho diz que é muito bom ter dinheiro.
— E ele tem muito?
— Muito! Pedrinho é bastante rico. Tem um cofre com mais de cinco reais dentro.
— E para que quer tantos reais?
— Diz que vai comprar um revólver. Eu, se tivesse dinheiro, sabe o que comprava? Um trem de ferro! Não há nada de que eu goste tanto como o trem de ferro...
— Por quê?
— Porque apita. A senhora já ouviu apito de trem?
Nesse ponto a conversa foi interrompida por um recado de Narizinho, ordenando que Emília se vestisse para sair a passeio.
— Adeus, dona Aranha. Narizinho está precisando de mim. Vai passear conosco ou fica?
— Fico. Estou com fome. Quero ver se apanho umas três moscas.
— Não use vinagre — aconselhou Emília retirando-se. – Tia Nastácia diz sempre que não é com vinagre que se apanham moscas.
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Continua... Aventura do Príncipe – V – Valentias
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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