SÚCUBO
Desde que te amo, vê, quase infalivelmente,
Todas as noites vens aqui. E às minhas cegas
Paixões, e ao teu furor, ninfa concupiscente,
Como um súcubo, assim, de fato, tu te entregas…
Longe que estejas, pois, tenho-te aqui presente.
Como tu vens, não sei. Eu te invoco e tu chegas.
Trazes sobre a nudez, flutuando docemente,
Uma túnica azul, como as túnicas gregas…
E de leve, em redor do meu leito flutuas,
Ó Demônio ideal, de uma beleza louca,
De umas palpitações radiantemente nuas!
Até, até que enfim, em carícias felinas,
O teu busto gentil ligeiramente inclinas,
E te enrolas em mim, e me mordes a boca!
VERSOS DOURADOS
Eu não te posso ver, que não sinta o desejo
De te envolver assim num luminoso beijo,
Num grande beijo nu, a pele cetinosa,
De uma frescura ideal de pétalas de rosa...
E tamanho prazer o coração me inunda,
Em te vendo, de luz, de embriaguez profunda,
Que doido desse amor, bêbado desse vinho,
Não sei mais onde estou, não sei onde caminho.
Sigo. Vou por aí, pela deserta rua,
Sem ver que anoiteceu e que nasceu a Lua,
Sem ver mais nada, sem ter olhos nem ouvido,
Cego, completamente cego, e aturdido,
Dentro dessa visão inquietamente bela
Que fulge como se fosse a luz de uma estrela...
E distante afinal de todos e de tudo,
Envolto no ouro de um silêncio de veludo,
Coroado, como um deus, dos pâmpanos de enganos
E das rosas em flor dos vinte e poucos anos,
Radiante de me ver, sozinho, ao fundo desta
Solidão, como quem entra um palácio em festa,
Que bom de me entregar num êxtase risonho,
Num êxtase sem fim, num êxtase de sonho,
À lembrança, à loucura, à volúpia esquisita,
Ao luxo de sentir que uma mulher bonita
Tem no expressivo olhar, que brilha quando passa,
O dom de oferecer, como uma fina taça,
Para os meus olhos nus, por um instante ao menos,
Os delírios do amor e da embriaguez de Vênus!
Janeiro – 1911
À TOI!
É num dia de sol que te escrevo esta carta,
No meio de uma luz radiosamente farta,
Loira, seca, sutil, aromada, ideal,
Assim como se fosse um vinho oriental.
Escrevo-te ao correr da pena, quase a esmo,
Como vivo afinal: tão fora de mim mesmo...
E confesso-te, flor, ó doce flor-de-lis,
Que te escrevo porque não me sinto feliz.
Eu te amo, vê, porém eu te amo de tal arte
Que te amo muito mais do que devera amar-te.
Muito mais! muito mais! O meu amor é tal
Que o bem de te querer, às vezes, me faz mal.
Causa-me raiva até e me deixa doente:
Fico a chorar e a rir, mas incoerentemente,
Sem poder definir o que é que eu sinto, enfim,
Francamente, a não ser que eu nunca amei assim.
Nunca! Tu para mim és como uma bebida,
Onde um dia eu encontro a embriaguez e a vida,
E noutro, o desespero, a tragédia cruel,
A dúvida sombria e amarga como fel...
É que somente tu tens a força marmórea,
O condão, o poder, a beleza e a glória,
De transformar-me assim, com os teus olhos nus,
Maravilhosamente, ou em lama, ou em luz.
E por isso, também, ó flor abençoada,
Em te vendo passar, não quero ver mais nada.
Tão radiante me vejo, e tão feliz, direi,
Como se fosse rico ou me tornasse um rei.
Hoje, porém, não sei que sombras e que mágoa
Perpassam-me através dos olhos rasos d’água.
Sinfonias de luz andam vibrando no ar,
Mas eu, não sei por que, eu quase a soluçar
Sinto que a destruição, o tédio e o desengano
Me invadem como se eu fosse o império romano.
Ando nervoso, mau, doente, quase hostil,
Debaixo deste céu mirífico de abril.
E, volúpia imortal, delicioso beijo,
Prazer que me destrói, ó rútilo desejo,
Essa tristeza vã, esse histerismo todo,
Tudo isso é só porque te quero como um doido!
GRAÇAS TE RENDO...
Graças te rendo aqui, preciosa Senhora,
Que, num simples olhar de ternura, tiveste
O dom de me elevar, assim como o fizeste,
Entre os brasões do amor e as púrpuras d’aurora...
O dom de me fazer acreditar que veste
O humano coração, como acredito agora,
Não o lodo, porém o linho que se adora,
O linho que fulgura em pleno azul-celeste...
Sei que os votos que são trabalhados com arte
Hão de os deuses cumprir, ó luz maravilhosa:
– Sê, pois, bendita, sê bendita em toda parte!
Que onde fores pisar, que por onde tu fores:
A lama se transforme em pétalas de rosa,
As víboras, em fruto, os espinhos, em flores!
ADULTÉRIO DE JUNO
I
Juno, a beleza em flor da primavera,
Mas a deusa de olhar quase sombrio,
Quando tinha ciúme, era uma fera,
Mais furiosa que uma loba em cio.
Cada vez que esse Júpiter tonante
Se transformava numa chuva de ouro,
Para as conquistas de uma nova amante,
Num alvo cisne, ou simplesmente em touro,
Ai da ninfa culpada, albor de neve,
Por mais jovem que fosse, por mais bela,
Ia mudar em corça dentro em breve,
Quando não fosse pois numa cadela!
Juno, porém, tamanho orgulho tinha,
Um tamanho amor próprio desmarcado,
Na sua aurifulgência de rainha,
Que nem por isso dava um passo errado.
Por toda parte palpitavam beijos,
Mais lindos do que a flor do asfodelo,
E os desejos mais sôfregos, desejos
De despir esse corpo e de mordê-lo...
Vendo-a através do linho, que flutua,
A mocidade grega sempre fátua,
Não podendo morder-lhe a espádua nua,
Babujava-lhe o mármore da estátua...
Vênus era a primeira a dar-lhe o exemplo
De quanto vale uma mulher devassa:
O seu templo de amor não era um templo,
Era uma tasca, e Vênus, uma taça...
O Olimpo enfim era uma borracheira,
Era uma gargalhada, um grito insano;
Foi só para enganá-lo a vida inteira
Que Vênus se casou com o deus Vulcano.
Via o infiel correr, ébrio de vinho,
Náiades, hamadríades, e tudo
Quanto encontrava sobre o seu caminho,
Como se fosse um sátiro cornudo.
Via-se desejada como a fêmea
Cujo perfume era o da própria rosa,
Sua única irmã, sua irmã gêmea,
E entretanto teimava em ser virtuosa.
II
Vivendo sempre só quase que todo dia,
Tinha apenas consigo uma única alegria.
Toda linda manhã de sol saía de casa,
Ligeira, como quem é uma deusa e tem asa.
E dentro do seu coche azul, clara e florida,
Levada por pavões, corria a toda brida.
Era um voo através de campos verdejantes,
De palmeiras gentis, serros de diamantes,
Cidades ideais, como lírios na falda
De uma montanha de pérolas e esmeralda,
Rios, vales em flor, floresta colossal,
Lagos polidos como espelhos de cristal,
Nesse dourado mês de outubro, o mês risonho;
E ela passava assim como se fosse um sonho.
Nessa manhã, porém, de uma estranha beleza,
Juno quis passear, como qualquer burguesa.
A sandália nos pés, a fronte coroada,
A túnica sobre o corpo nu, e mais nada.
Mas por simples que fosse a deusa, no momento
Em que ela aparecia, era um deslumbramento.
Onde quer que pousasse o esquisito veludo
Daquele doce olhar, estremecia tudo.
Era como uma luz. A natureza, quase
Ébria, não tinha mais que uma única frase,
Não tinha mais que uma só exclamação,
E o êxtase, o silêncio, o gozo, a adoração.
Vendo-a passar por sobre as suas hastes em flor,
Inquietas de prazer, e histéricas de amor,
Diziam a sorrir lânguidas açucenas:
“Quem passou por aqui foi uma sombra apenas!”
Ia Juno, porém, de tal modo metida
No fundo do seu eu, da sua própria vida,
Que sem vê-las talvez, pálida e desdenhosa,
Calcava sob os pés a violeta e a rosa...
III
Ia indiferente,
Quase triste, quando
Olha, e de repente,
Como que sonhando,
Ela vê dormindo,
Num sono profundo,
O pastor mais lindo
Que havia no mundo.
Surpresa de vê-lo
Belo desse modo,
Beija-lhe o cabelo,
Quer beijá-lo todo...
Um pássaro:
– Ó flor mais branca do que a flor da laranjeira!
Outro pássaro:
– Só faltava uma vez para ser a primeira...
Um fauno:
– Ah! como Endimion, o pastor, é feliz!
Outro fauno:
– Pois pudera não ser... É o rei dos imbecis!
Uma dríade:
– Que força deve ter no azul dessa pupila
Para poder assim chamá-la e atraí-la...
Outra dríade:
– Vede o brilho que vem desse olhar através...
Um fauno:
– Tem mais força no olhar do que Hércules nos pés!
Beija-o como louca,
Mas com tais desejos,
Que enche aquela boca
De um furor de beijos.
Um sátiro:
– É um combate feroz, uma guerra da Helade...
Outro sátiro:
– Nunca se viu assim tanta escurrilidade...
Toda descoberta,
Sem nenhum receio,
Cada vez o aperta
Mais junto do seio...
Com tal abundância,
Com tal alvoroço,
Que ela é quem mais ânsia
Tem daquele moço.
Um jovem fauno:
– Somente para mim a sorte foi cruel:
Nunca pude gozar esse favo de mel...
Um pássaro:
– Despiu-se toda. Está inteiramente nua...
Um sátiro:
– Nua, de uma nudez mais nua do que a Lua...
Outro jovem fauno:
– Nunca o amor me quis. E, no entanto, vede,
Eu e Tântalo, os dois, temos a mesma sede...
E ambos, que loucura,
Ambos, que desordem,
Nessa luta obscura,
Como eles se mordem!
Que doce abandono,
Que esquisito choro,
As folhas d’outono
Caíam como ouro...
Outro jovem fauno:
– E eu que um dia lhe disse: ó meu amor imenso,
Quando te vejo sobre uma torre de incenso,
Toda coroada, assim, de mirtos e de rosas...
Sileno, bêbado, interrompendo:
– Doce paixão ideal, como me apoteosas!
Um fauno:
– Estão se mordendo, os dois, com tamanho furor,
Que até parece ser mais ódio do que amor...
Uma dríade:
– Ódio e amor são dois inimigos, porém
Onde vai o amor, vai o ódio também...
Um pássaro:
– Decerto Juno está completamente louca:
Introduziu-lhe em fogo a língua pela boca!
Que ódios a consomem,
Com que febre o quer,
Beija-o como um homem
Beija uma mulher...
E com que delírio
Tudo em roda estua
Dessa deusa nua,
Nua como um lírio...
Flora, que sorria,
Nunca ouviu talvez
Tanta melodia,
Tanta embriaguez.
Um fauno:
– É um horror, é um horror...
Outro fauno:
– Escândalo profundo...
Uma dríade:
– Se Júpiter souber, incendeia-se o mundo!
Como ela se entrega,
Como se enchafurda,
Cada vez mais cega,
Cada vez mais surda!
Outra dríade:
– Ah! se Júpiter vem aqui neste momento...
Coro de faunos, sátiros e dríades:
– Mandai esse castigo, ó numes, por quem sois!
Mal tinham dito, ergueu-se um rijo pé de vento,
E Júpiter caiu como um raio entre os dois!
Desde que te amo, vê, quase infalivelmente,
Todas as noites vens aqui. E às minhas cegas
Paixões, e ao teu furor, ninfa concupiscente,
Como um súcubo, assim, de fato, tu te entregas…
Longe que estejas, pois, tenho-te aqui presente.
Como tu vens, não sei. Eu te invoco e tu chegas.
Trazes sobre a nudez, flutuando docemente,
Uma túnica azul, como as túnicas gregas…
E de leve, em redor do meu leito flutuas,
Ó Demônio ideal, de uma beleza louca,
De umas palpitações radiantemente nuas!
Até, até que enfim, em carícias felinas,
O teu busto gentil ligeiramente inclinas,
E te enrolas em mim, e me mordes a boca!
VERSOS DOURADOS
La beauté est une promesse de bonheur.
Stendhal
Stendhal
Eu não te posso ver, que não sinta o desejo
De te envolver assim num luminoso beijo,
Num grande beijo nu, a pele cetinosa,
De uma frescura ideal de pétalas de rosa...
E tamanho prazer o coração me inunda,
Em te vendo, de luz, de embriaguez profunda,
Que doido desse amor, bêbado desse vinho,
Não sei mais onde estou, não sei onde caminho.
Sigo. Vou por aí, pela deserta rua,
Sem ver que anoiteceu e que nasceu a Lua,
Sem ver mais nada, sem ter olhos nem ouvido,
Cego, completamente cego, e aturdido,
Dentro dessa visão inquietamente bela
Que fulge como se fosse a luz de uma estrela...
E distante afinal de todos e de tudo,
Envolto no ouro de um silêncio de veludo,
Coroado, como um deus, dos pâmpanos de enganos
E das rosas em flor dos vinte e poucos anos,
Radiante de me ver, sozinho, ao fundo desta
Solidão, como quem entra um palácio em festa,
Que bom de me entregar num êxtase risonho,
Num êxtase sem fim, num êxtase de sonho,
À lembrança, à loucura, à volúpia esquisita,
Ao luxo de sentir que uma mulher bonita
Tem no expressivo olhar, que brilha quando passa,
O dom de oferecer, como uma fina taça,
Para os meus olhos nus, por um instante ao menos,
Os delírios do amor e da embriaguez de Vênus!
Janeiro – 1911
À TOI!
É num dia de sol que te escrevo esta carta,
No meio de uma luz radiosamente farta,
Loira, seca, sutil, aromada, ideal,
Assim como se fosse um vinho oriental.
Escrevo-te ao correr da pena, quase a esmo,
Como vivo afinal: tão fora de mim mesmo...
E confesso-te, flor, ó doce flor-de-lis,
Que te escrevo porque não me sinto feliz.
Eu te amo, vê, porém eu te amo de tal arte
Que te amo muito mais do que devera amar-te.
Muito mais! muito mais! O meu amor é tal
Que o bem de te querer, às vezes, me faz mal.
Causa-me raiva até e me deixa doente:
Fico a chorar e a rir, mas incoerentemente,
Sem poder definir o que é que eu sinto, enfim,
Francamente, a não ser que eu nunca amei assim.
Nunca! Tu para mim és como uma bebida,
Onde um dia eu encontro a embriaguez e a vida,
E noutro, o desespero, a tragédia cruel,
A dúvida sombria e amarga como fel...
É que somente tu tens a força marmórea,
O condão, o poder, a beleza e a glória,
De transformar-me assim, com os teus olhos nus,
Maravilhosamente, ou em lama, ou em luz.
E por isso, também, ó flor abençoada,
Em te vendo passar, não quero ver mais nada.
Tão radiante me vejo, e tão feliz, direi,
Como se fosse rico ou me tornasse um rei.
Hoje, porém, não sei que sombras e que mágoa
Perpassam-me através dos olhos rasos d’água.
Sinfonias de luz andam vibrando no ar,
Mas eu, não sei por que, eu quase a soluçar
Sinto que a destruição, o tédio e o desengano
Me invadem como se eu fosse o império romano.
Ando nervoso, mau, doente, quase hostil,
Debaixo deste céu mirífico de abril.
E, volúpia imortal, delicioso beijo,
Prazer que me destrói, ó rútilo desejo,
Essa tristeza vã, esse histerismo todo,
Tudo isso é só porque te quero como um doido!
GRAÇAS TE RENDO...
Graças te rendo aqui, preciosa Senhora,
Que, num simples olhar de ternura, tiveste
O dom de me elevar, assim como o fizeste,
Entre os brasões do amor e as púrpuras d’aurora...
O dom de me fazer acreditar que veste
O humano coração, como acredito agora,
Não o lodo, porém o linho que se adora,
O linho que fulgura em pleno azul-celeste...
Sei que os votos que são trabalhados com arte
Hão de os deuses cumprir, ó luz maravilhosa:
– Sê, pois, bendita, sê bendita em toda parte!
Que onde fores pisar, que por onde tu fores:
A lama se transforme em pétalas de rosa,
As víboras, em fruto, os espinhos, em flores!
ADULTÉRIO DE JUNO
Ao Reinaldo Machado
Un paysage, c’est um état d’âme.
Amiel
Amiel
I
Juno, a beleza em flor da primavera,
Mas a deusa de olhar quase sombrio,
Quando tinha ciúme, era uma fera,
Mais furiosa que uma loba em cio.
Cada vez que esse Júpiter tonante
Se transformava numa chuva de ouro,
Para as conquistas de uma nova amante,
Num alvo cisne, ou simplesmente em touro,
Ai da ninfa culpada, albor de neve,
Por mais jovem que fosse, por mais bela,
Ia mudar em corça dentro em breve,
Quando não fosse pois numa cadela!
Juno, porém, tamanho orgulho tinha,
Um tamanho amor próprio desmarcado,
Na sua aurifulgência de rainha,
Que nem por isso dava um passo errado.
Por toda parte palpitavam beijos,
Mais lindos do que a flor do asfodelo,
E os desejos mais sôfregos, desejos
De despir esse corpo e de mordê-lo...
Vendo-a através do linho, que flutua,
A mocidade grega sempre fátua,
Não podendo morder-lhe a espádua nua,
Babujava-lhe o mármore da estátua...
Vênus era a primeira a dar-lhe o exemplo
De quanto vale uma mulher devassa:
O seu templo de amor não era um templo,
Era uma tasca, e Vênus, uma taça...
O Olimpo enfim era uma borracheira,
Era uma gargalhada, um grito insano;
Foi só para enganá-lo a vida inteira
Que Vênus se casou com o deus Vulcano.
Via o infiel correr, ébrio de vinho,
Náiades, hamadríades, e tudo
Quanto encontrava sobre o seu caminho,
Como se fosse um sátiro cornudo.
Via-se desejada como a fêmea
Cujo perfume era o da própria rosa,
Sua única irmã, sua irmã gêmea,
E entretanto teimava em ser virtuosa.
II
Vivendo sempre só quase que todo dia,
Tinha apenas consigo uma única alegria.
Toda linda manhã de sol saía de casa,
Ligeira, como quem é uma deusa e tem asa.
E dentro do seu coche azul, clara e florida,
Levada por pavões, corria a toda brida.
Era um voo através de campos verdejantes,
De palmeiras gentis, serros de diamantes,
Cidades ideais, como lírios na falda
De uma montanha de pérolas e esmeralda,
Rios, vales em flor, floresta colossal,
Lagos polidos como espelhos de cristal,
Nesse dourado mês de outubro, o mês risonho;
E ela passava assim como se fosse um sonho.
Nessa manhã, porém, de uma estranha beleza,
Juno quis passear, como qualquer burguesa.
A sandália nos pés, a fronte coroada,
A túnica sobre o corpo nu, e mais nada.
Mas por simples que fosse a deusa, no momento
Em que ela aparecia, era um deslumbramento.
Onde quer que pousasse o esquisito veludo
Daquele doce olhar, estremecia tudo.
Era como uma luz. A natureza, quase
Ébria, não tinha mais que uma única frase,
Não tinha mais que uma só exclamação,
E o êxtase, o silêncio, o gozo, a adoração.
Vendo-a passar por sobre as suas hastes em flor,
Inquietas de prazer, e histéricas de amor,
Diziam a sorrir lânguidas açucenas:
“Quem passou por aqui foi uma sombra apenas!”
Ia Juno, porém, de tal modo metida
No fundo do seu eu, da sua própria vida,
Que sem vê-las talvez, pálida e desdenhosa,
Calcava sob os pés a violeta e a rosa...
III
Ia indiferente,
Quase triste, quando
Olha, e de repente,
Como que sonhando,
Ela vê dormindo,
Num sono profundo,
O pastor mais lindo
Que havia no mundo.
Surpresa de vê-lo
Belo desse modo,
Beija-lhe o cabelo,
Quer beijá-lo todo...
Um pássaro:
– Ó flor mais branca do que a flor da laranjeira!
Outro pássaro:
– Só faltava uma vez para ser a primeira...
Um fauno:
– Ah! como Endimion, o pastor, é feliz!
Outro fauno:
– Pois pudera não ser... É o rei dos imbecis!
Uma dríade:
– Que força deve ter no azul dessa pupila
Para poder assim chamá-la e atraí-la...
Outra dríade:
– Vede o brilho que vem desse olhar através...
Um fauno:
– Tem mais força no olhar do que Hércules nos pés!
Beija-o como louca,
Mas com tais desejos,
Que enche aquela boca
De um furor de beijos.
Um sátiro:
– É um combate feroz, uma guerra da Helade...
Outro sátiro:
– Nunca se viu assim tanta escurrilidade...
Toda descoberta,
Sem nenhum receio,
Cada vez o aperta
Mais junto do seio...
Com tal abundância,
Com tal alvoroço,
Que ela é quem mais ânsia
Tem daquele moço.
Um jovem fauno:
– Somente para mim a sorte foi cruel:
Nunca pude gozar esse favo de mel...
Um pássaro:
– Despiu-se toda. Está inteiramente nua...
Um sátiro:
– Nua, de uma nudez mais nua do que a Lua...
Outro jovem fauno:
– Nunca o amor me quis. E, no entanto, vede,
Eu e Tântalo, os dois, temos a mesma sede...
E ambos, que loucura,
Ambos, que desordem,
Nessa luta obscura,
Como eles se mordem!
Que doce abandono,
Que esquisito choro,
As folhas d’outono
Caíam como ouro...
Outro jovem fauno:
– E eu que um dia lhe disse: ó meu amor imenso,
Quando te vejo sobre uma torre de incenso,
Toda coroada, assim, de mirtos e de rosas...
Sileno, bêbado, interrompendo:
– Doce paixão ideal, como me apoteosas!
Um fauno:
– Estão se mordendo, os dois, com tamanho furor,
Que até parece ser mais ódio do que amor...
Uma dríade:
– Ódio e amor são dois inimigos, porém
Onde vai o amor, vai o ódio também...
Um pássaro:
– Decerto Juno está completamente louca:
Introduziu-lhe em fogo a língua pela boca!
Que ódios a consomem,
Com que febre o quer,
Beija-o como um homem
Beija uma mulher...
E com que delírio
Tudo em roda estua
Dessa deusa nua,
Nua como um lírio...
Flora, que sorria,
Nunca ouviu talvez
Tanta melodia,
Tanta embriaguez.
Um fauno:
– É um horror, é um horror...
Outro fauno:
– Escândalo profundo...
Uma dríade:
– Se Júpiter souber, incendeia-se o mundo!
Como ela se entrega,
Como se enchafurda,
Cada vez mais cega,
Cada vez mais surda!
Outra dríade:
– Ah! se Júpiter vem aqui neste momento...
Coro de faunos, sátiros e dríades:
– Mandai esse castigo, ó numes, por quem sois!
Mal tinham dito, ergueu-se um rijo pé de vento,
E Júpiter caiu como um raio entre os dois!
Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
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