Um casal tinha três filhos já em idade de trabalhar, mas, sendo muito unidos, não se separavam. Um dia o velho chamou os três filhos e disse que eles precisavam procurar a vida pelo mundo de meu Deus. No fim de um ano todos deviam voltar para a casa dos velhos.
Partiram os rapazes e logo adiante viram que a estrada se abria em três veredas. Cada um tomou a sua. José pela esquerda, Pedro pela do meio e João pela direita.
José e Pedro chegaram a cidades muito grandes e bonitas e acharam trabalho em palácios onde duas moças viviam e se engraçaram deles.
João andou, andou, andou, dormindo no mato, e dias depois viu um palácio deteriorado, feio, sujo, no meio de umas pedras escuras. O lugar era esquisito que fazia medo. João estava tão cansado e faminto que parou na porta e bateu palmas sem que ninguém respondesse. Bateu, bateu, e uma voz grossa roncou lá de dentro:
– Vá entrando!
João encontrou uma sala enorme, onde estava uma rede armada e uma mesa comprida, coberta de teia de aranha, picumã e porcarias. A voz continuou:
– Descanse...
João tirou os sapatos, deitou-se e pegou numa madorna (sonolência) quando a voz acordou-o:
– Jante!...
Jantou muito bem, havendo do bom e do melhor. Depois a voz ensinou onde era o quarto, com todos os preparos. João dormiu como um anjo. De manhã chamaram para o café, o almoço, a janta e a ceia. Passava o dia andando os arredores e lendo uns livros, pretos de poeira, que encontrara.
Na hora da ceia, tempos passados, ouviu os baques pesados no corredor e apareceu uma Jia (rã) que não tinha fim, grandona, gorda, repelente. Veio pulando, toda mole, escorrendo baba, até perto de João e sentou-se juntinho. O moço ia se esgueirando.
– Está com nojo de mim, João?
– Não senhora, dona Jia!
Conversaram e a Jia disse:
– Amanhã é o dia que você deve comparecer na casa de seus pais. Encontrará um cavalo selado junto da porta.
Na manhã seguinte, João mudou a roupa, almoçou e viu um cavalo selado que não tinha lugar para mais enfeites ricos. Montou-se e ia dando de rédeas quando a Jia apareceu, capengando:
– Espere aí, João. Leve esta lembrança para sua mãe.
Deu um saquinho, muito sujo, encardido, amarrado por um cordão imundo. O rapaz guardou o troço no bolso e galopou para casa. Antes de o sol se pôr avistou a casa e apeou-se no alpendre, onde seus pais e irmãos conversavam.
Jantaram muito satisfeitos e depois José e Pedro entregaram os presentes que traziam, roupa, calçado, chapéus, dinheiro. Os velhos agradeceram.
– E você, João, que me trouxe da viagem?
João entregou o saquinho de nada. Os irmãos riram como uns perdidos, mangando do tamanho do presente. A velha, recebendo o saquinho, sacudiu-o para fazer cair o que estivesse dentro. Quase não acabava de sair moedas de ouro, brilhantes, pedras preciosas, tudo de muito. Os velhos ficaram assombrados. E disseram, dançando:
José vai casar bem,
E Pedro casa melhor,
Mas João...
Passa-lhe a mão!
Os irmãos ficaram zangados. Quando anoiteceu despediram-se e João montou o cavalão que corria como o vento. Num ruflo estava diante do palácio velho e escuro. João apeou-se e entrou. Encontrou o banho pronto e depois a janta. Jantou e dormiu e continuou a mesma vida, conversando com a Jia, cada vez mais nojenta e amorosa.
Um ano se passou e a Jia lembrou que no dia seguinte devia estar o moço na casa dos pais, levando uma lembrança feita pela noiva.
Sucedeu como no ano anterior. No momento em que João ia picando o cavalo nas esporas, apareceu a Jia e lhe deu um vidrinho, com a boca quebrada, cheio de uma água que parecia lodo. O rapaz recebeu para não fazer desfeita e voou para casa.
A festa foi a mesma. José e Pedro traziam finos presentes bordados pelas noivas, em seda e ouro, representando passarinhos e estrelas, tudo faiscando de beleza. Quando chegou a vez de João e este entregou o vidrinho, foi uma risadaria geral. A velha destapou o vidrinho e sacudiu a água em cima da cama porque se fosse cheiro havia de servir. Imediatamente a cama ficou lastrada das maiores belezas do mundo, camisas, toalhas, lençóis, fronhas, todos os arranjos de casa, nuns bordados tão delicados e de cores tão feiticeiras que mão de gente não podia ter feito aquele serviço. Os velhos, não se contendo, dançaram:
Pedro vai casar bem!
José vai casar melhor!
Mas João...
Passa-lhe a mão!
Os manos fizeram cara feia, não achando graça na cantiga dos pais. Assim que anoiteceu se despediram. Os velhos disseram que, na próxima vez, deviam trazer as esposas e ficar uma semana, porque já estavam ricos e queriam hospedar os três filhos e as três noras com gosto e agrado.
Foram todos embora e João seguiu na vida velha no palácio feio ao lado da Jia.
Um ano depois, a Jia avisou que na manhã seguinte seria o dia de João se apresentar com a noiva.
– Eu não tenho noiva!
– Tem, sim senhor! Sou eu!
João tinha vontade de fugir mas não teve coragem de pagar o bem com o mal e, com pena da Jia, ficou calado. Quem cala consente.
Mal amanheceu o dia, e, depois do café, João encontrou, em vez do cavalo bonito e bem arreado, uma égua lazarenta, coberta de perebas e de moscas varejeiras, com a sela, bridas, rédeas, rabicho, tudo consertado com pedaço de cordão, caída de sujeira. Mesmo assim montou e saiu. Mal a égua dera os primeiros passos, tropeçando com a própria sombra, João ouviu um barulho desesperado atrás de si e, voltando-se na sela, reparou que todos os animais e aves o acompanhavam como se fizessem uma procissão. Galinhas, galos, perus, patos, guinés, gansos, porcos, tudo vinha seguindo, misturado, numa algazarra de carnaval. E o pior é que a Jia apareceu montada na garupa da égua, muito de seu, como se estivesse num trono. O pobre João só imaginava a mangação dos irmãos e do povo da rua quando fosse atravessar a povoação em que residiam os pais. Mas ficou conformado com a vontade de Deus, que lhe dera um bicho tão feio para noiva.
Com o trote do cavalo, a Jia desequilibrava-se e vinha ao chão, num estalo. Tornava a subir para a garupa da égua e ficava, agarrada como um cipó, até que despencava e ia bater na areia. Na terceira queda, desistiu de viajar na égua e chamou o galo para servir-lhe de montada. O galo parou e a Jia começou a lutar para montar-se no pescoço dele. Luta que luta, sobe e desce e João, esperando, achou tanta graça naquela cena mas teve tanta piedade que saltou do animal e veio, rindo, ajudar a Jia a se acomodar em cima do galo. Assim que ele colocou a Jia onde ela queria ficar, ouviu-se um estrondo e passou um clarão azul, tão forte, que cegava. João fechou os olhos, deslumbrado, e quando os abriu, estava diante de uma princesa bonita como uma estrela, sentada numa carruagem dourada, com seis cavalos brancos e um mundo de gente vestida de seda, bordada de ouro e tremendo de brilhantes, esperando. Era um cortejo tão faiscante que João não podia acreditar que fosse verdadeiro.
A princesa sorrindo disse:
– Eu fui a Jia que não recusaste para noiva e nunca fizeste pouco de seus presentes e feiúra. Estou desencantada e serei uma esposa fiel e amante. Esses são meus criados e estavam todos encantados.
A égua perebenta virara um cavalo gordo e espelhante, coberto de arreios que valiam uma riqueza. João montou e veio com aquele povão, estrada a fora, até sua casa, onde seus pais e irmãos o receberam como um rei coroado.
Fez-se o casamento, com grandes festas, e João foi morar no palácio velho, agora novo e cheio de luzes e de criados, sendo muito feliz.
Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
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