As coisas eram unívocas, com jurisdições demarcadas, como que regidas por uma religião.
Em algum momento algo se rompeu, e telefones começaram a fazer contas, mandar cartas, tocar música, tirar fotos.
Por que o telefone, não o ferro elétrico? Jamais saberemos.
O ferro elétrico é de um tempo em que máquina de escrever escrevia, carteiro entregava cartas e computador computava.
Então, como se tivessem surtado, computadores começaram a escrever, enviar e entregar cartas, as máquinas de escrever silenciaram, os carteiros tiraram um peso dos ombros e um pouco da alegria dos cachorros.
Relógios marcavam as horas, não batimentos cardíacos.
Cinemas passavam filmes, não encenações de milagres.
Impressoras imprimiam, copiadoras copiavam, aparelhos de fax enviavam fax – hoje, nestes tempos de transgêneros, uma multifuncional dá conta de tudo sozinha.
O micro-ondas já doura e gratina.
O liquidificador, que só liquidificava, mudou o nome para mixer e agora corta, amassa, mistura, processa, rala, pica, bate, tritura, e por pouco não chuleia, caseia e prega botão.
Só o ferro elétrico continua apenas passando roupa.
Ele resiste, solitário, à degeneração dos costumes.
Até os óculos enxergaram que o fim estava próximo, com as lentes descartáveis, e começaram a fotografar, filmar, ensinar o caminho, mandar e-mail.
Em vão.
Os óculos morrerão como morreram o monóculo, o pincenê, o telex, a antena interna, pager, disquete, fita k7, orelhão, ficha de orelhão, lâmpada incandescente, mimeógrafo, bala Soft, goma arábica, revólver de espoleta, anágua, bomba de flit, Emulsão de Scott, cinto de castidade.
Fogões não precisam mais de fogo.
Geladeiras degelam sozinhas.
Quando nada mais for o que era, nos restará o ferro elétrico como prova de fidelidade aos princípios, como exemplo de dedicação exclusiva, de fé inabalável no destino.
Pode soltar vapor pelas ventas, ter dezoito temperaturas, base de teflon, recipiente para amaciante, design aerodinâmico, funcionar com energia solar, não importa.
Não há ideologia de gênero que o faça tirar fotos.
Mandar mensagens de voz.
Pagar contas.
Curtir comentários.
Quando nenhum tecido amarrotar, ou quando roupa amarrotada virar moda, o ferro de passar cairá de pé.
Deixará o mundo pela porta da frente, de cabeça erguida e com a consciência tranquila de jamais ter se rendido.
(publicado originalmente em agosto de 2017)
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