domingo, 12 de maio de 2024

Caldeirão Poético LXXXVI


Francisco Pati

VEJO EM TORNO DE MIM, DE LADO A LADO...

Vejo em torno de mim, de lado a lado,
a desigual justiça repartida:
tanto vício tão bem recompensado,
tanta virtude mal reconhecida.

Aqui o ímpio sorri, sendo aclamado,
chora, além, a bondade que é punida.
Templos ao ódio, tronos ao pecado,
que de pecados e ódios se enche a vida.

Fujo do abismo que aos meus pés se estende,
o ouvido fecho a esse rumor profundo,
e, alheio ao que se faz e ao que se diz,

no meu silêncio que ninguém compreende
gozo longe dos homens e do mundo,
o orgulho e a glória de não ser feliz.
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Francisco Ribeiro

QUERÊNCIA

Querência é, para mim, o incêndio da alvorada,
os lances do Minuano, as cargas do Pampeiro;
a charla, o mate amargo, a carne chamuscada,
o pingo, a recolhida e o fogo do tropeiro!

Querência é, para mim, o estalo da queimada,
o tranco do boi manso, as manhas do tambeiro;
a cisma da tapera, o campo em flor, a estrada,
o pialo, a marcação e os "causos" do campeiro!...

Querência é, finalmente, o guasca bueno, guapo;
a china côr da terra, o rancho alevantado,
no topo da coxilha, em barro e santa-fé!

O chão que modelou o pulso do farrapo,
o mesmo que nos veio — e roto, e ensanguentado —
da ronda das Missões, do pó de Caiboaté!
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Frota Pessoa

ROUXINOL DE TRANÇAS

Passas cantando, rouxinol de tranças,
essa eterna alegria gargalhando...
Canta! Tempo virá, que só lembranças
do passado feliz irás cantando.

Esses que vivem mágoas soluçando,
e que jamais cantaram de esperanças,
esses talvez que se aborreçam quando
passas cantando, rouxinol de tranças.

Mas eu, que tive os risos da ventura,
e cantei as cantigas que a ternura
costuma pôr na boca das crianças...

Quero-te bem por toda essa alegria,
que, com teus risos cheios de harmonia,
passas cantando, rouxinol de tranças.
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Gastão Neves

EU

Nasci na Grécia antiga, da odisseia,
dos templos e dos deuses imortais.
Os sete sábios tive por plateia
e fui o que pisou salões reais.

Vi os últimos dias de Pompéia
nas orgias febris das bacanais.
Fui ardoroso amante de Frinéia;
Praxíteles e eu fomos iguais.

Nasci na Grécia antiga — fui deus grego!
Quando nos braços teus tive aconchego,
fui tudo que na Grécia deslumbrou.

E atravessando os tempos, como esteta,
não sou mais que a ilusão de ser poeta,
sendo apenas um homem que sonhou!
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Heitor Lima

ASAS

O que torna mais triste o céu sangrento,
ao pôr-do-sol, são as partidas, são
os adeuses dos pássaros, ao vento,
numa incerta e fugaz palpitação.

Ah! Quantas vezes, no apressado ou lento
voejar de aves que vêm e aves que vão,
tocam-se duas asas um momento
e afastam-se em contrária direção...

Também os nossos corações, um dia,
se encontraram: no ocaso rubro ardia
o incêndio dos amores imortais.

E — asas, na tela acesa do sol poente —
um no outro eles roçaram levemente,
para não se encontrarem nunca mais!
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Ivo dos Santos Castro 

FAZE DE CONTA...

Faze de conta que eu jamais te disse
algo que te expressasse o meu amor;
faze de conta que, com tal meiguice,
de mim não mereceste um só louvor...

Faze de conta, enfim, que fiz tolice
em jamais exaltar o resplendor
da tua fascinante brejeirice,
que fez de mim um poeta, um sonhador...

Apaga da memória os meus lamentos!
Faze de conta que os meus sentimentos
calo-os por invencida timidez...

Embora saibas que és a minha amada,
faze de conta que eu não disse nada,
 ... e deixa-me dizer tudo, outra vez!
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Jacy Pacheco

GRATIDÃO

Eu te agradeço — e sem constrangimento—  
o bem que foste para mim: poesia,
rumor festivo em meu isolamento,
bravura ao coração que sucumbia.

Com a calma com que vejo, ao fim do dia,
o sol agonizar num céu sangrento,
também o teu silêncio eu pressentia:
eu esperava o teu esquecimento.

Um grande bem não dura a vida inteira,
hoje, voltando à antiga nostalgia,
desfeito o sonho da alma cancioneira,

posso te agradecer a caridade:
com as esmolas de amor que eu recebia
vivi momentos de felicidade.
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Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

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