Ser empregado público de categoria inferior e por mal de pecados demissível: será isso programa que seduza alguém?
— É.
Para Pedro Venâncio mais que seduzia — sorria. Foi, pois, com enlevo de alma que recebeu a notícia de sua nomeação para fiscal da Câmara Municipal de Itaoca.
— Vou sossegar — disse consigo, esfregando as mãos de contentamento. — Cavei o meu osso e agora é roê-lo pela vida afora na santa paz do Senhor.
E ferrou o dente no ossinho.
Mas acontece que há osso e osso. Osso de bom tutano e osso pedra-pomes. No andar dos tempos verificou Venâncio que o tal ossinho era desses que embotam os dentes sem dar o mínimo de suco.
Gastar a vida inteira naquilo? É ser tolo, cochichou-lhe a humana ambição de melhoria, engenhosa fada a quem se devem todos os progressos do mundo. Assim espicaçado, entrou Venâncio a fariscar tutanos. Recorreu antes de mais nada à loteria, pois que é a Sorte Grande o supremo engodo dos pés-rapados. Venham gasparinhos! Todas as semanas adquiria um — e sonhava. O mesmo vendeiro que lhe fornecia aos sábados a semanal quarta de feijão, os semanais oito litros de arroz e o semanal cento de cigarros, juntava na conta mil-réis de sonhos. E Venâncio, comido o feijão, fumado o cigarro, sonhava. Sonhava o doce beijo da Fortuna, boa deusa que o despegaria do atoleiro com um simples toque de sua asa potente.
Em matéria de cultura não era Venâncio de todo cru. Lia suas coisas e tinha lá suas ideias. Revelara desde cedo grande aptidão para a lavoura e documentava o pendor assinando quanta publicação oficial existe. Publicações gratuitas...
Assim, nas palestras da farmácia ninguém piava sobre lavoura sem que ele pulasse no meio com a sua colher torta. E era de ver o calor da sua argumentação e a riqueza das suas citações estatísticas.
Fazendeiro que nesses momentos passasse havia que parar e abrir bem aberta a boca. Venâncio possuía planos grandiosos para salvar o café e pô-lo aí a quarenta mil-réis a arroba...
— Quarenta mil-réis, Venâncio? Não acha meio muito?
Venâncio incendiava-se.
— Por que muito? Não somos os maiores produtores? Não temos o quase privilégio dessa cultura? Se é assim, o lógico é que imponhamos o preço. Eu disse quarenta, não foi? Pois digo agora quarenta e cinco! Digo cinquenta!
—!!!
— Não se espantem. Eu provo que pode ser assim e que os americanos têm que gemer ali no dolarzinho, queiram ou não queiram!
—!!!
— Queiram ou não queiram! — reafirmava o salvador, escandindo as palavras.
E provava.
Também extinguia em menos de um ano a lagarta-rosada, mais o curuquerê (larva do algodão); e triplicava a corrente imigratória; e extraía o azoto do ar, pondo o adubo ao alcance de todos, a cem réis o quilo, talvez mesmo a setenta.
— Porque, como os senhores sabem, a química agrícola demonstra que...
E demonstrava.
Num desses rompantes demonstrativos, o coronel da terra, de passagem pela rua, deteve-se a ouvi-lo e, finda a tirada, disse-lhe à queima-roupa:
— Que excelente ministro da Agricultura não daria você! Duvido que os Calmons e os Bezerras entendam mais de lavoura...
— Está caçoando, coronel! — murmurou Venâncio com modéstia, embora no íntimo convencido da justiça da apreciação.
— Falo sério. Bem sabe que não brinco.
Os circunstantes sorriram discretamente, enquanto o massa de ministro se lambia todo, como boi feliz.
Em casa repetiu à esposa a opinião do chefe político.
— Brincadeira dele, Pedro! — objetou a sensatíssima consorte. — Não está vendo?
— Brincadeira nada! O coronel é homem que não brinca, você bem sabe...
Desde esse dia, imaginariamente, Venâncio transformou-se num maravilhoso ministro da Agricultura. Plantou-se de armas e bagagens no casarão da Praia Vermelha e com raro tino administrativo salvou o país. Que eficácia de medidas! Que sábias leis protetoras! Que maravilhosos resultados! Lagarta nos algodoais? Nem umazinha para remédio! Curuquerê? Nem sombra! O café trepou à casa dos quarenta...
— Por arroba?
— Por dez quilos, homem!
E, firmíssimo, revelava tendências para alta ainda maior. Os mais pessimistas já concediam que não era de admirar fosse a cinquenta.
A borracha do Norte arrancou-se ao marasmo em que emperrava e voltou a ser um pactolo (fonte de riquezas) de esterlinas.
Azoto andava por aí aos pontapés, como um trambolho.
E na cabeça de Venâncio os sonhos lotéricos desapareceram trocados pelos sonhos administrativos, muito mais amplos e de muito maior alcance patriótico.
A consequência foi que Venâncio se eternizou no Ministério. Vários presidentes se sucederam sem que nenhum ousasse tocar em sua pasta. Era sagrado aquele gênio de ministro, que salvara o país, enriquecera a lavoura, desafogara o comércio, consolidara a indústria e que, adorado pela nação, teria estátua em vida.
Que teria? Que teve! Por mais que em sua infinita modéstia o grande ministro recusasse tal homenagem, a gratidão nacional teimou em glorificá-lo no bronze.
Inesquecível a manhã em que Venâncio, de lágrimas nos olhos, viu rasgarem-se os véus do seu monumento.
AO SALVADOR DA PÁTRIA,
O POVO AGRADECIDO.
Agradecido ou enriquecido? A turvação dos olhos não lhe permitiu distinguir a expressão exata — e por longo tempo semelhante dúvida o torturou.
Mas a grande recompensa teve-a ele em casa, ouvindo da esposa estas deliciosas palavras:
— Agora, sim, Venâncio, acredito que você é mesmo o que dizia. Até estátua!...
A boa senhora só se convencia com provas de bronze...
O doloroso, porém, era o contraste das duas vidas — ministro por dentro e fiscal da Câmara por fora, obrigado a interromper a matutação de um projeto salvador da pátria para ir, de bonezinho na cabeça, cercar na rua carros de boi não aferidos...
Um ano se passou assim, no qual os gasparinhos (menor fração de bilhete de loteria) falharam lamentavelmente. O mesmo dinheiro; zero, zero, zero; o mesmo dinheiro; zero, zero. Os seus rapapés (lisonjas) à Sorte Grande recebiam da grande cortesã apenas esta magra resposta. Tábuas sobre tábuas; carranca amarrada sempre e jamais o sorrisinho de uma “aproximação” para consolo.
Mas um dia...
Nesse dia Venâncio disputava com a esposa, que pedia dinheiro para umas compras.
— Estamos com a louça reduzida a cacos. Xícara de chá, duas e desbeiçadas. De café, três e sem asas. Ontem, quando aquele chato do Freitas esteve aqui, fui obrigada a pedir emprestada uma xícara da vizinha. Veja que vergonha...
Venâncio relutou.
— Mas por que é que quebram a louça? O ano passado, lembro-me, eu mesmo comprei meia dúzia de cada.
Dona Fortunata pôs as mãos na cintura.
— Por que quebram? A pergunta é bem idiotinha... A louça quebra-se porque é quebrável. Se fosse inquebrável não se quebraria. Parece incrível que um homem já indicado para ministro...
— Não admito ironias! Quer louça? Compre com o dote que trouxe...
— Já esperava por essa resposta. Está mesmo uma resposta de ministro... do coronel — concluiu dona Fortunata venenosamente.
Venâncio, engasgado de cólera, ia replicar, quando a porta da sala se abriu e o vendeiro irrompeu como um pé de vento:
— Deixe ver o seu bilhete! Se é o 3.743, deu a tacada!
O improviso do lance transformou em estupor a cólera de Venâncio, que entrou a piscar, numa tonteira, como quem leva porretada no crânio.
— Quê? Que há? — tartamudeava ele. O vendeiro bateu o pé, impaciente.
— O bilhete, homem! Deixe ver o seu bilhete, homem de Deus! Parece estuporado...
Custou a Venâncio encontrar na papelada agrícola que lhe enchia os bolsos o raio do bilhete. Suas mãos tremiam e o cérebro andava-lhe à roda.
Por fim achou-o. Era o 3.743.
Pegara os vinte contos.
Estas revoluções operadas pela sorte em cérebros venancinos não há aí quem as conte. É banho de ópio, é fumarada de haxixe, é gole de cocaína, é bebedeira que rompe toda a velha cristalização dos miolos. A ebriaguez do ouro vale pela soma da essência última de todas as mais ebriedades. Só ela abre a gaiola a “todos” os sonhos e põe o homem leve, com pequeninas asas em cada célula do corpo.
No caso do Venâncio, porém, não houve muita vacilação. Sua diretriz estava traçada pelo insopitável pendor agrícola.
Uma fazenda, uma grande fazenda, a melhor fazenda do município — a fazenda-modelo da zona. Da zona? Do país, por que não? E depois — quem sabe? — o ministério, desta vez de verdade. O mundo dá tantas voltas...
E faria isto mais aquilo, e mais isto e mais aquilo. Meu Deus! Como a fazenda se foi aperfeiçoando, e a que requintes de primor atingiu! Legiões de curiosos vinham de longe visitá-la, e pasmavam. A fama corria, os jornais estudavam-na em artigos longos. Por fim o Governo, impressionado com a voz pública, mandava examiná-la e propunha-lhe compra. Era forçoso que pertencesse ao patrimônio da nação uma coisa daquelas para que todos pudessem aprender na maravilhosa escola as palavras últimas do aperfeiçoamento agrícola.
Mas vendê-la? A um particular, nunca! À nação, sim, coagido pelo patriotismo. Isso mesmo, porém sob uma condição! Oh, sim, uma condição sine qua non: darem-lhe a pasta da Agricultura...
— Porque eu, senhores, farei do Brasil inteiro o mimo que fiz da minha fazenda. Um vergel florido! A nova Califórnia! O paraíso terreal!...
O Governo chorava de emoção e dava-lhe a pasta, sob as aclamações do povo agradecido...
Infelizmente, os vinte contos não eram elásticos e Venâncio teve que arrepiar da vertigem megalomaníaca e adquirir um pequeno sítio aí de trinta contos de réis. Deu quinze à vista e ficou a dever quinze sob hipoteca.
Sítio velho, de terras cansadas, mas isso mesmo queria ele, para estrondosa demonstração do axioma tantas vezes berrado na botica:
— Não há terras más, há más cabeças. Com a química agrícola na mão esquerda e o arado na direita, eu faço o Saara produzir milho de pipoca!
— Mas, Venâncio...
— Não há “mas”, há “más”; más cabeças, já disse. De pipoca!
Tinha agora de provar o asserto.
Começou mudando o nome antigo — Sítio do Embirussu — por este muito mais adiantado — Granja-Modelo de Pomona.
Apesar do lindo nome, o sítio permaneceu a pinoia que sempre fora. Barba-de-bode, guanxuma, saúva, cupins, joveva, geadas — todos os mimos da brasileiríssima deusa Praga.
Em compensação, no tocante ao pitoresco poucos haveriam mais bem arranjados. Tudo velho e musgoso e carcomido, como o quer a estética. Vate de cabeleira que ali caísse desentranhava-se logo em sonetos do mais repassado bucolismo; e o pintor de paisagens encontrava quadrinhos já feitos, encantadores, que era um gosto trasladar para a tela.
As paineiras laterais à casa faziam em setembro o enlevo dos colibris e das abelhas — mas a paina (fibras sedosas de algodão) produzida mal dava para encher um travesseiro.
O pomar, velhíssimo, lembrava um ninho de faunos tocadores de avena (flauta pastoril), laranjeiras de cinquenta anos, pitangueiras altíssimas, ameixeiras musgosas, jabuticabeiras, romeiras — o que há de virgiliano e romântico e sombrio e parasitado. Renda, porém, zero.
Tudo mais pelo mesmo teor.
Venâncio mediu com os olhos penetrantes a grandeza da sua tarefa e sorriu.
Tinha tanta convicção de transmutar aquele bucolismo em fonte de lucros...
Começou pelas aves. Em vez daquele sórdido restolho de galinhame da terra, sem sangue de pedigree, venham Leghorns para ovos e Orpingtons para carne. Imbecil o fazendeiro que não adota as belas raças americanas!
A mesma coisa com os porcos. Nada de canastrões ou tatuzinhos, tardios ou degenerados. Venham o Yorkshire, o Duroc-Jersey!
E venham mudas de boas árvores frutíferas, caquis, ameixas-do-japão, damascos, maçãs, peras, tudo isto com explicações ao eterno nariz torcido da esposa:
— Porque você vê, Fortunata, dá o mesmo trabalho e vale cinco vezes mais. Um ovo de Orpington, por exemplo: quanto vale no Rio? Dois mil-réis; mais que uma dúzia de ovos crioulos!
E venham sementes de capim-de-rodes para as pastagens.
E venha um aradinho de disco, e agora uma semeadeira, e uma carpideira, e uma grade...
E venha isto e mais aquilo — e as novidades vinham vindo e os cinco contos iam indo muito mais depressa do que ele o imaginou.
Tudo isso não seria nada se não viesse também uma coisa bem fora dos cálculos de Venâncio: visitas.
Um belo dia o correio trouxe uma carta do Rio: “... e soubemos que V. está de maré, empacotado pela sorte grande (200 ou 500?) e já montado em linda fazenda. E como andamos todos aqui muito amarelos, e a Bibi necessitada, a conselho médico, de ares de campo, lembramo-nos de passar uns dias aí, se o caro parente não levar isso a mal...”.
— “Caro parente”?!...
Venâncio releu a missiva.
— Quem será este novo parente, Ladislau Teixeira?
Consultou a mulher. Dona Fortunata refranziu a testa.
— Vai ver que é aquele filho da Carola...
— ??
—... que casou por lá com uma tipa de beiço rachado...
— Ahn!...
—... e esteve uma vez em Itaoca um ano atrás.
— Em casa do Estevinho, sei...
— Isso. Um tal Lalau.
— Sei, sei... Mas que diabo de parentesco tem ele comigo? Só se por parte de Adão e Eva...
— Você já reparou, Venâncio, quantos parentes estão aparecendo agora?
— É verdade. Com este, cinco. E amigos, então? Nunca imaginei que os possuísse tantos...
Venâncio respondeu que a casa, casa de pobres, estava às ordens; que viessem. Vieram. Quinze dias depois um trole despejava no terreiro um senhor de meia-idade, sua esposa Filoca, três filhas empalamadas, Bibi, Babá, Bubu, e mais uma preta mucama. Venâncio reconheceu-os vagamente, mas por delicadeza fingiu intimidade.
— Bem-vindos sejam à casa do parente pobre!
Lalau abraçou-o carinhosamente.
— Não diga isso! Você é hoje a glória da família. Recebeu a recompensa que merecia. Quantas vezes eu não disse à Filoca: aquele nosso parente vai longe, porque quem planta colhe. Não é verdade, Filoca?
Dona Filoca sibilou através do beiço rachado uma confirmação plena:
— É sim! Nós nunca duvidamos do futuro do “primo” Venâncio.
— Ia-me esquecendo... Vieram conosco umas vizinhas, moças muito boazinhas, as Seixas. Não te avisei na carta porque foi coisa de última hora. Devem ser parentas de dona Fortunata, ao que me disseram...
Venâncio interrogou furtivamente a esposa com o olhar e esta respondeu-lhe com um imperceptível movimento de beiço.
Apearam do segundo trole três moças e uma negrinha. Lalau apresentou-as.
— Dona Fafá, dona Fifi, dona Fufu.
As moças abraçaram os fazendeiros com grande cordialidade e abriram-se em louvores às belezas bucólicas.
— Veja, Fifi, que coisa estupenda esta paineira!
— Nem diga! E aquele maravilhoso beija-flor? Que belezinha! Como ficaria bem no meu chapéu azul...
E Babá para Venâncio:
— Que ar, primo! Que pureza de ar! A vida aqui deve ser um encanto. E que apetite dá! Eu, que não como nada, seria capaz de devorar um leitão inteiro hoje!
A Bibi conversava com a “prima” Fortunata:
— Leite há muito, já sei. Fazenda quer dizer fartura. Lá na capital o leite é água de polvilho, e caríssimo! É como os ovos: pela hora da morte e metade chocos. Sua galinhada, quantas dúzias põe por dia?
E a Fifi para a Bubu:
— Pesei-me antes de vir: 49 quilos, veja que miséria! Mas daqui não saio sem alcançar 58! Ah, não saio! O meu peso normal deve ser este, diz o médico.
Dona Fortunata atendia a todos, sorrindo amavelmente, enquanto Lalau, já no pomar, investia contra as laranjas com fúria de “retirante”.
— A minha conta, quando me pilho num pomar, são três dúzias. Pelo-me por laranjas!
Venâncio, armando cara alegre, dizia-lhe que era chupar, chupar...
Mas lá consigo pensava que naquela toada não venderia aquele ano uma dúzia sequer. Só o Lalau daria cabo da safra inteira em quinze dias...
À decima quinta laranja Lalau parou, entupido.
— Estou por aqui! — grugulejou, riscando no pescoço o nível do caldo.
— Agora, que ninguém nos ouve, diga lá a verdade: duzentos ou quinhentos contos?
Venâncio não teve ânimo de pronunciar a palavra vinte. Também não quis mentir, e marombou (enganou):
— Não chega lá. Tirei apenas uns cobrinhos...
— Está escondendo o leite? Faz muito bem, que isso de arrotar grandeza é transformar-se em “fruteira”: todo mundo pega a aproveitar-se.
E dando-lhe o braço:
— Conselho de velho: defenda os arames, enforque a cobreira! Do contrário, começam a aparecer amigos e parentes que não acabam mais.
Venâncio entreparou pasmado.
— É o que lhe digo — prosseguiu Lalau. — Enquanto não possuímos nada, ninguém se importa com a gente. Mas logo que a maré chega, brotam da terra aproveitadores — como cogumelos!
Venâncio pasmou dois pontos mais, e Lalau, lendo a seu modo aquele pasmo, insistiu:
— É o que lhe digo! Como cogumelos! Você é inexperiente ainda, não tem os anos que tenho, e deve, portanto, ouvir-me. Como parente próximo, zelo pela família e faço grande empenho em abrir os seus olhos contra a caterva (tropa) de parasitas que vai por este mundo de Cristo. Quer saber de uma coisa? Foi por esse motivo que eu vim. Motivo real! O resto foi pretexto, você compreende. Eu disse à Filoca: é preciso abrir os olhos do primo; dinheiro escorrega das mãos como peixe e se lhe não acudo com os meus conselhos, adeus sorte grande! Vê? Foi por este motivo que vim.
Ainda atônito, Venâncio balbuciou umas palavras de agradecimento pela generosa intenção, e Lalau, colhendo nova laranja, continuou:
— Porque, cá comigo, é assim: para salvar um parente não poupo sacrifícios! Ah, não poupo! Vou longe atrás dele, gasto dinheiro, mas aviso-o. Pensa que não foi um sacrifício esta minha viagem? Só de trem, duzentos mil-réis! Mas, como já disse, não olho a despesas. É parente? É amigo? Não olho a despesas. Ah, não olho! Não acha que devo ser assim?
— Está claro! — sussurrou Venâncio.
— Parece claro, mas poucos pensam deste modo e, em vez de sacrificarem um bocado das suas comodidades e virem abrir os olhos ao parente em perigo, sabe o que fazem?
— ?
— Vêm explorá-lo. Vêm ex-plo-rá-lo, primo! Admira-se? Pois saiba que o mundo está cheio de gente assim. Olhe, eu conheço um caso que...
Nessa noite o casal de fazendeiros passou a dormir na cozinha. Tiveram que ceder seu quarto ao Lalau e à esposa. As B... acomodaram-se na sala de espera. As F..., numa alcova. As duas criadas, na despensa. Ficou a casa repleta, tendo a cozinheira de dormir fora, no paiol.
Venâncio perdeu o sono. Altas horas ainda matutava:
— Não sei como está para ser! De um momento para outro, onze bocas a mais...
— E que bocas! — observou dona Fortunata. — Como comem! A tal Fifi, que é um bilro e parece viver de brisas, bebeu um litro de leite para “rebater” meia dúzia de ovos. E sabe o que disse, toda espevitada? “Isto é para começarrrr... O médico mandou-me ir aumentando as doses aox poucox...” Veja você!
— Parece que chegaram da seca do Ceará! Lalau chupou duma assentada quinze laranjas, e das de umbigo...
— Esse não me admiro, que é homem e grandalhão. Mas aquele figo seco da tal prima Filoca? Com partes de enfastiada, foi à cozinha e chamou para o bucho todos os torresmos que eu tinha guardado para você. Dizem que é o ar...
— Ar! Ar! Eu respiro o mesmo ar e nunca tenho apetite. Esfaimados por natureza é o que eles são.
— E depois isto de comer à custa alheia deve ser um regalo! — concluiu dona Fortunata, valente criatura que jamais provara um quitute que não fosse preparado por suas próprias mãos.
O sono custou a vir, mas veio, e com ele um sonho. Sonhou Venâncio que uma nuvem de gafanhotos vinda do Sul se abatera no sítio, deixando-o nu em pelo, sem folha nas árvores, nem soca de capim nos pastos.
Despertou sobressaltado. A manhã ia alta, com réstias de sol a coarem-se pelos vidros. Saltou da cama e foi à janela. Um vulto caminhava rumo ao pomar, de pijama, faca de mesa na mão, assobiando despreocupadamente o pé de anjo.
— Lá vai ele! — murmurou Venâncio. — Lá vai às laranjas-baianas...
— Quem? — indagou a esposa, interrompendo o amarrar da saia.
— Ora quem! O gafanhoto-mor.
E como a esposa fizesse cara de interrogação, Venâncio contou-lhe o sonho da nuvem.
Dona Fortunata concluiu o nó da saia apreensivamente:
— Queira Deus não dê certo!
Deu certo. Nunca um sonho profético antepintou o futuro com maior precisão. Os hóspedes devoraram o sítio do Venâncio em poucas semanas. Foram-se todos os porcos, transfeitos em torresmos, lombo assado e linguiça. Os lindos leitõezinhos que brincavam no terreiro acabaram no espeto, um por um. O mesmo destino tiveram as aves, com exceção do casal de Orpingtons, amarelas, que muito tentou a gula dos hóspedes, mas que Venâncio, por precaução, mandou esconder em casa de um vizinho. Os ovos, porém, se perderam.
— Sabe, — disse dona Fortunata ao marido uma noite (era sempre à noite, na cama, que murmuravam contra a praga dos gafanhotos) — sabe que a ninhada de ovos de raça já se foi?
— Não me diga! — exclamou Venâncio.
— Pois escondi-os num canto, no quarto dos badulaques, mas aquele pau de virar tripa da Bubu meteu o nariz lá e descobriu-os e veio berrando muito lampeira: “Prima, suas galinhas estão botando no quarto dos cacaréus. Olhe que lindos ovos encontrei lá! Duas dúzias: a continha certa para hoje”. Expliquei-lhe o caso, contei que eram ovos de raça, caros, que você reservava para chocar. Sabe o que a bisca respondeu? “Ora, não seja somítica (avarenta). Nós vamos embora logo e suas galinhas ficam por aqui botando ovos pelo resto da vida.”
Venâncio suspirou.
Um mês. Dois meses. Três meses.
No dia em que os hóspedes se foram, Venâncio mais a esposa deram uma volta pelo sítio, em desconsoladora inspeção. Tudo deserto. Nem um frango no galinheiro, nem uma goiaba no pomar, nem um porquinho na ceva.
— Comeram até o cachaço! — murmurou Venâncio, sacudindo a cabeça. Na horta, as leiras de couve só apresentavam talos esguios — folhas nenhuma. Os pés de abóbora davam dó: nem uma aboborinha, nem um broto...
— Como eles gostavam de cambuquira! — recordou dona Fortunata.
Finda a inspeção, um olhou para o outro, com desanimadíssimos focinhos.
— E agora? — indagou a mulher.
— Agora? — repetiu Venâncio. — Agora é fazer a trouxa e tocar para Itaoca antes que morramos de fome.
— E volta você para o empreguinho?
— Que remédio? Os “primos” devoraram a carne; tenho que roer o osso.
E foi graças ao apetite daqueles bem-aventurados primos que Itaoca viu reintegrar-se em seu seio um precioso elemento social. As palestras da botica andavam mortas, e sempre que se ventilava um ponto agrícola todos lamentavam a ausência do argumentador seguro, que sempre detivera com tanto brilho a palma da vitória.
Mas a volta de Venâncio foi uma decepção. O antigo entusiasmo murchara-lhe e nunca mais em sua vida piou sobre o tema favorito. E se acaso falavam perto dele em pragas da lavoura, geada, ferrugem, curuquerê ou o que seja, sorria melancolicamente, murmurando de si para si:
— Conheço uma muito pior...
E conhecia.
Fonte: Monteiro Lobato. O macaco que se fez homem. Publicado originalmente em 1923. Disponível em Domínio Público.
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