quarta-feira, 1 de maio de 2024

Arthur Thomaz (Zorriso)

Cleyderson assistiu ao noticiário na TV em que o apresentador avisava que o uso de máscara seria obrigatório. Passou o dia trabalhando na fábrica sem conseguir esquecer a notícia.

Na saída, passou na loja e comprou a máscara. Antes de entrar no “buteco”, colocou-a no rosto.
Até hoje não é sabido se ele comprou uma máscara do Zorro por brincadeira ou por total ignorância a respeito do assunto pandemia. Ouviu dos amigos de bar uma sonora gargalhada após o olhar espantado de todos.

Um gaiato, lá no fundo, gritou, perguntando onde estava o Tonto. Outro perguntou onde está o Sargento Garcia. E ainda perguntaram se ele tinha deixado o cavalo Silver lá fora.

Cleyderson abriu um largo sorriso, o que foi suficiente para alguém dizer “Zorriso”, uma mistura de Zorro com sorriso.

Enquanto tomavam suas bebidas habituais, o assunto permaneceu o mesmo. Voltando para casa, o rapaz começou, inconscientemente, a incorporar o apelido em sua mente.

Pensou horas seguidas em como capitalizar esse fato. Pesquisou na internet tudo sobre o personagem herói. Não tinha um cavalo, não tinha um amigo índio chamado Tonto, tampouco sabia manejar uma espada ou um revólver. A única coincidência era o fato de também ser solitário como o cavaleiro herói dos filmes.

Com a ideia já inexoravelmente incutida em sua mente, passou dias seguidos tentando encontrar uma solução para esse desafio que o destino lhe impunha em ser um herói. 

Passando em frente a uma loja de esportes, observou um taco de beisebol no canto da vitrine. Pechinchou até conseguir um preço adequado às suas economias.

Assistiu alguns jogos para entender o manuseio do objeto e percebeu que poderia ser uma poderosa arma em suas mãos, já que era um rapaz de forte compleição física.

Revestiu a ponta do taco com espuma de um velho travesseiro, para amortecer o impacto porque não suportava ver sangue. Como era conhecido no bairro, resolveu agir em um local distante. 

Para isso, pintou sua bicicleta de branco e passou a chamá-la de Silver. Nas primeiras noites de ronda, não encontrou ninguém praticando atos ilícitos. Já quase desistindo de se tornar herói, certa noite deparou-se com dois meliantes roubando um carro.

Partiu como uma flecha em sua bicicleta na direção da dupla, gritando: “aiou Silver”, como no filme. Os bandidos ficaram tão surpresos com essa aparição, que nem esboçaram reação e foram atingidos com o taco.

Zorriso amarrou-os com a corda que trazia, e afastando-se do local, informou à polícia. Esta cena repetiu-se algumas vezes, causando-lhe a sensação de ser um verdadeiro herói. Sabendo que se contasse suas proezas no “buteco” seria zombado pelos amigos, jamais compartilhou seus heroicos feitos.

Determinada noite em ronda, localizou três pessoas em atitude suspeita na frente de uma loja. Sem titubear, entrou em ação, golpeando-os. Quando estava amarrando os bandidos, surgiu uma equipe da ROTA, que ordenou a ele que levantasse as mãos.

Zorriso abriu um imenso sorriso. Inadvertidamente, ao ver outros heróis, ergueu a mão com o taco para saudá-los, o que foi considerado pelos policiais um ato hostil.

Baleado, foi a óbito no local.

Conduziram seu corpo ao IML. O legista atestou a morte como anemia aguda, causada por perfuração de projétil de arma de fogo. Comentou com os outros profissionais nunca ter visto um cadáver estampando tão largo sorriso. Cleyderson não teve honras de herói em seu funeral.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Nenhum comentário: