sexta-feira, 31 de maio de 2024

Arthur Thomaz (O beijo e a montanha)

 
Nilsen cresceu em condomínio de classe média, com uma segurança que permitia muitas brincadeiras infantis. As famílias organizavam muitas festas de aniversário. 

Na festa em que comemorava 10 anos, tudo corria tranquilamente, até que na hora das despedidas, um primo adolescente veio em sua direção para o clássico beijo de até logo.

Percebeu, com horror, que ele era portador de acne e que iria encostar o rosto no seu. Aquelas acnes, em sua mente, transformaram-se em enormes montanhas de pus.

Sem conter a expressão de asco, viu-se soterrada por aquele Everest desmoronando sobre seu rosto, e ainda por um descuido, o primo escorregou e seus lábios tocaram parte dos dela.

Aquele hálito de brigadeiro com refrigerante inundou seu cérebro, fazendo-a correr enojada ao banheiro mais próximo, onde vomitou incessantemente e lavou o rosto e a boca, ao menos, 30 vezes.

À noite teve pesadelos com montanhas de pus, atolando-se em areia movediça daquela substância horripilante. O cheiro de brigadeiro misturado a refrigerante infiltrou-se em algum recôndito local em seu cérebro, de onde nunca mais saiu.

Evitou festinhas e jamais esteve perante a este primo. Na adolescência, vivia em consultórios de dermatologistas para evitar qualquer possibilidade de ter acne.

Enfim, a faculdade de Veterinária em outra cidade, longe do tal primo.

Nunca sequer aventou a hipótese de beijar uma pessoa, mas em uma festa na república de colegas de turma, beberam como era de costume nessas reuniões, e evitando beijar, relacionou-se sexualmente com um rapaz, que alcoolizado, preocupou-se apenas em consumar o ato para voltar logo ao lado dos amigos, sem sequer ter reparado que era a primeira vez dela.

Para ela, foi um alívio em não ter tido que beijar uma boca estranha e nem encostar seu rosto em alguém potencialmente portador de acne.

Mas nela ainda havia o temor de um dia apaixonar-se e ter que trocar beijos e carícias, porque, afinal, a imagem das montanhas de pus permaneciam em suas lembranças.

Foi convidada por uma colega de faculdade a assistir a um jogo de polo a cavalo. Era um amistoso contra La Dolfina, um famoso time argentino.

Notou, apesar de corado pelo esforço, que o cavaleiro do time brasileiro possuía um rosto liso. Lembrou da palavra rubicundo e riu intimamente.

No intervalo do jogo, aproximou-se do local onde estavam os cavalos e ofereceu uma cenoura a um deles. O jogador perguntou o porquê ela tinha uma cenoura na bolsa, já sorrindo pelo inusitado da situação.

Sem graça, ela respondeu que trouxera também frutas, porque avisaram-na que tudo era caro neste ambiente hípico e que ainda era estudante sem muito dinheiro.

Ele sorriu e convidou-a para almoçar no caríssimo restaurante do clube. Bem apessoado, aparentando ter uns 40 anos, muito atencioso, mostrou-se encantador aos olhos dela.

Ela, fitando insistentemente as faces do acompanhante, lembrou da dermatologista, que dizia ser a acne muito mais rara em adultos e sentiu-se segura.

Empresário, ele possuía também um pequeno haras, onde criava e treinava cavalos para o jogo de Polo.

Nilsen, agora esposa do “face lisa”, como carinhosamente o chamava, tornou-se uma veterinária especializada em éguas e cavalos de polo. Seus dois filhos tiveram acne na adolescência, sem que isso a traumatizasse novamente.

Na hora da intimidade, quando no esforço do amor, o rosto dele ficava corado, ela adorava provocá-lo chamando-o de rubicundo, o que causava muitas risadas. Ele, então, zombava carinhosamente das histórias que ela lhe contara a respeito da “terrível” acne.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

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