João Brás foi jantar à Santa Teresa com o seu amigo Manuel Fortuna, como costumava fazer invariavelmente todos os domingos.
Eram ambos do comércio: João guarda-livros e o outro estabelecido com uma loja de alfaiate. Grisalhando já entre os quarenta e os cinquenta, não tinham eles todavia vinte anos quando se conheceram, e essa longa amizade jamais fora perturbada pelo menor atrito de caráter.
– A paz dos anjos seja nesta casa! – exclamou João Brás, no tom risonho e tranquilo com que, ao chegar os domingos à casa do velho amigo, dizia sempre e sempre essa mesma frase.
– Bons ventos o tragam, compadre! - respondeu Manuel, estendendo-lhe a mão. – Como tem passado? E minha afilhada como vai?
– Sem novidade, graças a Deus. Lá foi mais o marido e os filhos visitar a sogra, na Piedade. Naturalmente só voltam amanhã no trem das nove e meia.
– D. Maria, já sei, está lá dentro?
– Está. Vá entrando compadre.
E o guarda-livros enfiou sem cerimônia até à cozinha para ir entregar à Dona Maria, que lá estava as voltas com o jantar e com a cozinheira, os pacotes de doces e frutas que ele trazia pendurados da mão esquerda.
Abraçaram-se formalmente, entre as palavras e os risos do costume.
João Brás era viúvo já pela segunda vez. Do primeiro matrimônio ficara-lhe uma filha, que, pelo batismo, o fizera compadre de Manuel, e depois, dezoito anos mais tarde, lhe dera um lindo casal de netos, agora constituídos no alegre enlevo da sua velhice.
Aqueles jantarzinhos domingueiros em casa do amigo tinham para ele o irresistível encanto do mais velho hábito de sua vida. Mal cumprimentava os donos da casa, trocava a sobrecasaca por um rodaque de linho branco e estendia-se numa cadeira de balanço, sob as árvores do jardim, à espera que o chamassem para a mesa. O cozido, o vinho virgem e os motivos da conversa entre os três eram quase sempre os mesmos. Depois do café, os dois compadres armavam sobre as pernas o tabuleiro do gamão e enfiavam partidas até às dez e meia da noite, enquanto D. Maria se arranchava lá fora com as famílias da vizinhança fazendo roda à porta da chácara ou passeando pelas redondezas da casa.
Manuel todavia não era casado com a sua companheira. Tendo, aos trinta anos, a recolhido como empregada para lhe tomar conta da casa, da despesa e das roupas brancas, deixou-se afinal entrar passivamente no inventário dessas coisas, e ela acabou por tomar conta também dele.
Quando deram por si, estavam unidos pela mais legítima ternura e estavam conviventes no mais perfeito pé de igualdade.
D. Maria era honesta por índole, era sadia e limpa; o negociante sentiu-se bem ao lado dela e deixou-se ficar.
Terminado o jantar, Manuel foi, como de costume, buscar o gamão, e assentados um frente ao outro, dispuseram-se os dois amigos à pachorrenta campanha, trocando logo as primeiras facécias (chacotas) e as primeiras risadas de todas as suas inumeráveis partidas.
– Mas então, compadre, i– nterrogou João, armando o jogo - afinal que me diz você do que falei outro dia a respeito de D. Maria?… Está resolvido a…
– Aí mau! Já aí vem você com a mania! Tardava-me essa cantiga! Ora para que lhe havia de dar!
– Mania não, homem de Deus! É tudo que há de mais razoável e de mais justo! D. Maria é uma senhora séria… você não tenciona separar-se dela… por que, pois não se casam logo?… Seria mais bonito!
– Mas por que diabo hei de me casar, se somos felizes assim como vivemos há treze para quatorze anos… Nunca até hoje nenhum de nós pensou em semelhante coisa… As nossas relações de amizade não podem ser mais limitadas e modestas. Ela não tem pretensões e eu, cá pelo meu lado, nada espero nem desejo fora do meu canto, onde vivo em boa paz, graças a Deus! Quando queremos sair, saímos! Vamos ao teatro! Vamos ao Passeio Público! Vamos à toda a parte! Ninguém repara em nós! Por que então hei de eu agora tirar-me dos meus cuidados e casar?!… Não me dirá você?!…
– Seria mais bonito!…
– Ora deixe-se disso, compadre!
– É uma questão de moral!…
– Então, seu João, eu sou um homem imoral?… Por quê?
– Não digo isso, mas…
– Se tivéssemos filhos, vá! Convenho que seria de vantagem o casamento… mas, se até hoje eles não vieram, é natural que nunca mais venham.
– Não, compadre, o seu casamento com D. Maria não é só um ato de moralidade, é também um dever de gratidão e é bom cumprimento de justiça! Pois então uma mulher uma senhora, dedica-se durante quatorze anos a um homem, procedendo sempre com a mais severa honestidade, ajudando-o na vida, tratando dele, aturando-o enfim e, ao cabo de todo esse tempo, ele se não resolve a fazer por ela um pouco mais do que no primeiro dia das suas relações!… Não! não é justo, seu compadre! Tenha paciência, mas não é justo!
– Homem! Sabe de uma cousa? Não falemos mais nisto! Você quando mete a cabeça para um lado não há meio de tirá-la daí!
– Pois não falemos! Não falemos! O meu protesto, porém, fica de pé! Não falemos, não falemos. – mas no domingo seguinte, durante o joguinho, o compadre João Brás voltou à carga e acrescentou às novas escusas do amigo:
– É! Nas suas condições dizem os homens geralmente a mesma coisa e afinal acabam sempre casando à última hora, quando a mulher está a despedir-se da vida e já nada aproveita por conseguinte com a tardia resolução do seu ingrato companheiro; ao passo que esse mesmo ato de justiça praticada antes, em pleno gozo da existência, seria honroso motivo de verdadeira felicidade para ela!
– Ora, deixe-me em paz, compadre! Deixe-nos viver como vamos vivendo e preste mais atenção ao jogo, se não prego-lhe um gamão cantado.
– Pois vivam, continuem a viver seguros pela mão esquerda, mas eu cá ficarei com o direito de revoltar-me, se um dia, em caso extremo, resolver-se você a coonestar (dar aparência honesta) à sua união com D. Maria!
Manuel soprou com mais força e arregaçou as sobrancelhas, dando silenciosa cópia de quanto fatigava aquela torturante catequese. E continuou a jogar sem dizer palavra.
O outro prosseguiu, distraído do jogo:
– Além disso, é que pode você morrer de um momento para outro, sem ter tido tempo de pôr em ordem os seus negócios, e a pobre senhora ficar por aí desamparada no mundo! Você tem parentes em Portugal, até irmãos se me não engano, pois saiba então que mesmo com testamento, esta casa e o que você possui no banco há de tudo parar em poder deles arriscando ficar D. Maria sem ter onde cair morta e precisando na velhice andar pelas esquinas a pedir por amor de Deus um bocado de pão para matar a fome! Vamos lá! Isto lhe parece justo, seu compadre?!
– Oh! Não diga isso, criatura, que você me aperta o coração! Ora já se viu?!
– Pois é cumprir com o seu dever, homem. Case-se por uma vez!
E, como D. Maria nesse momento entrava do passeio, o moralista levantou-se, deixando o tabuleiro do gamão sobre as pernas do parceiro, e foi ter com ela, para lhe dizer à queima roupa:
– Estive até agora conversando com o compadre a seu respeito, D. Maria! Mas isto é um cabeçudo de marca! Pergunte-lhe pelo que lhe falei e ajude-me também pelo seu lado!
Manuel soltou uma gargalhada.
– Sabes tu qual é agora a mania do João?… disse ele, voltando-se para a companheira. É casar-nos! Ora já se viu para que lhe havia de dar?… E não me larga, o teimoso! Não me fala noutra coisa!
– E não lhe parece que eu tenho razão? – perguntou João Brás, dirigindo-se por sua vez a D. Maria, que os escutava imóvel, sorrindo em silêncio.
– Ah! – respondeu ela com doçura. – Eu estimaria… isso com certeza… Para que negar?… Casada sempre é outra coisa: Pode uma mulher andar de cabeça erguida e pode mandar em voz alta, porque manda no que é seu! Mas cá por mim, em boa hora o diga! Dou-me por muito feliz em ter Deus me chegado para um homem como seu compadre, e nada exijo nem reclamo, porque muito já é o que ele faz por mim e pelos meus!
– E não dói a você a consciência, seu Manuel ? – exclamou João Brás com a voz tragicamente comovida, estendendo o braço e derreando para um lado a cabeça. – Não dói a você a consciência ao ouvir estas palavras, que são a expressão pura da virtude e da resignação?
– Pois bem! Pois bem! – rosnou Manuel, quase vencido. – Havemos de ver! Havemos de ver!
– Não! – replicou o outro energicamente – “Havemos de ver” é uma promessa de caloteiro! Você o que não quer, já sei, é incomodar-se, pois eu me encarrego de tudo! Amanhã mesmo trato dos papéis. Está dito?
– Sim, sim! Veremos amanhã.
– Não! não! Já daqui não saio sem autorização para correr os banhos! Quando me meto numa coisa, é assim! O caso é estar convencido da justiça e da razão!
– Mas que falta de sofrimento! Que sangria desatada! – exclamou Manuel. – Irra! Parece que você vai salvar o pai da forca!
– Nada, meu amigo! O que se tem de fazer, faz-se logo. – O pão endurece de um dia para outro! E lá a senhora, D. Maria, ajude-me a arrastar este egoísta! Segure-o pelos ombros, que eu o seguro pelas pernas, e despejemos com ele do terraço abaixo, se não nos autorizar já e já a tratar amanhã mesmo dos papéis do casamento!
– Pois com um milhão de raios! vociferou afinal o perseguido, fugindo ao terrível compadre, que por pilhéria o agarrava já pelas pernas. Arranje! Arranje você lá os papéis que quiser! Arranje o diabo! Mas deixe-me em paz e nunca mais me fale em semelhante coisa! Arre! Pode gabar-se, meu caro, de que é um serrazina de primeira força! Nunca vi coisa igual!
– Ora bravo! aplaudiu João, batendo palmas. Até que enfim você provou que é um homem de bem! Venha de lá este abraço! E, quanto à senhora, os meus parabéns de amigo sincero! Amanhã mesmo trato dos papéis!
– Mas olhe lá, seu João… – atalhou o outro, segurando-lhe o braço. – Observo-lhe que não estou absolutamente disposto a prestar-me ao ridículo nesta idade! Só consinto no casamento se este for coisa muito íntima, muito em segredo, sem festas sem convites e sem nada de barulho.
– Ó homem! – volveu João Brás .– O casamento faz-se de madrugada, um dia destes, na competente igreja sem que ninguém tenha que meter lá o nariz! E depois ficam vocês casados e dignamente unidos para sempre! Podemos é jantar, nós os três juntos esse dia; o que, para não alterar a praxe, bem pode ser num domingo. Hein? Que lhes parece?…
– Bom… Assim vá lá! – cedeu Manuel.
– Fica então marcado para o domingo que vem?…
– Pois marquem lá para domingo! Irra!
E assim foi. No domingo seguinte Manuel levou D. Maria à igreja de sua freguesia e voltaram de lá marido e mulher, graças a João Brás que tinha tudo despachado, com uma expedição capaz de envergonhar ao mais ativo agente de casamentos.
O jantar, já se vê, foi melhor nesse dia e regado mais copiosamente. D. Maria mandou matar peru e recebeu de mimo um leitão assado. Fez doces e comprou frutas e flores. Manuel, à tarde, admirou-se de ver entrarem-lhe pela sala algumas vizinhas com trajes de festa, acompanhadas pelos parentes e não se pôde furtar a parabéns e abraços, que lhe faziam torcer o nariz.
– Aquele compadre João Brás era o diabo! Afinal de contas tudo aquilo estava fora do programa!
Manuel principiava a arrepender-se do que tinha feito e parecia já menos alegre que nos outros dias.
D. Maria, essa pelo contrário, estava radiante e mostrava-se mais empertigada mais dona de casa. À mesa falou aos convivas com um ar empantufado e senhoril, que ninguém, ainda menos Manuel, até aí lhe conhecera.
Contudo, o bom homem, apesar de deveras contrariado por sair dos seus velhos hábitos, não se queixou; e, mal terminados os fervorosos brindes da sobremesa, foi pachorrentamente buscar o tabuleiro do gamão e armou-o sobre os joelhos, no lugar do costume, assentado defronte do vitorioso compadre.
D. Maria acabava nesse instante de assomar à porta da sala, palitando os dentes. Ao ver o marido, que armava a primeira partida, exclamou:
– Também vocês são terríveis com esse infernal gamão! Oh! nem mesmo no dia de meu casamento e com visitas aqui deixam o diabo do jogo!
E arrebatou das pernas dos dois parceiros o tabuleiro, com os dados, as pedras e os copos de couro, que se espalharam pelo chão.
João Brás soltou uma risada supondo que aquilo era simples gracejo.
– Mas, D. Maria! acrescentou de cara fechada e com voz dura: – Ó senhores! Que diabo, deixem-se dessa sensaboria (contratempo) uma vez ao menos! Tenham um pouco em conta o dia de hoje!
E afastou-se, muito escamada, sacudindo os quadris e abanando-se com o leque.
Os dois compadres, assentados um frente do outro, como se fossem agora jogar o sisudo, olharam-se sem ânimo de proferir palavra.
E assim que se pilharam a sós, Manuel segredou ao amigo:
– Você viu, compadre? Você viu o pano da amostra?
João não respondeu e Manuel murmurou, sacudindo a cabeça:
– Pode ser que me engane, e Deus o queira! Mas suponho que para sempre me fugiu de casa a tranquilidade!…
E tinha razão o pobre homem: tais coisas se foram sucedendo em casa dele que Manuel, meses depois, surgiu um dia no escritório do amigo, e atirou-se numa cadeira esbaforido de cólera.
– Que houve de novo, compadre? Que mais lhe aconteceu? – perguntou o guarda-livros.
– Foi você quem se encarregou dos papéis para casar-nos, não é verdade? – bramiu o negociante. – Pois, meu amigo, trate agora dos papéis do divórcio, porque este que aqui está nunca mais porá os pés na casa em que estiver aquela fúria! Nunca mais, ouviu!?
E aquele homem, até aí tão pachorrento, tinha agora uma catadura (feição) de tigre assanhado e dardejava ferozmente o guarda-chuva, ameaçando quebrar os globos das arandelas do gás.
– Arre! arre! – berrava ele – Vá para o inferno e o diabo que a ature!
– Mas, compadre, reconsidere, escute! Você está fora de si, homem!
– Não! – berrou Manuel, esbugalhando os olhos e rilhando os queixais. – Não, com mil raios! Se me aproximar daquele demônio é para estrangulá-lo! Não volto a casa! Não quero ser assassino!
– Mas o que mais houve, compadre?
– Que houve?! – E o infeliz soltou uma gargalhada satânica. – Que houve?! Vá lá à casa e veja o estado em que deixamos tudo! Vá ver!
Fonte: Aluísio de Azevedo. Contos. Publicado originalmente em 1893. Disponível em Domínio Público
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