Todas as tardes, quando o sol sanguíneo, descendo no horizonte afogueado, parecia apagar-se nas águas lisas do rio; quando as jandaias, em grandes nuvens verdes, passavam chilreando na direção das ilhas, a piroga do moço pescador deslizava ligeira, rio acima, serena, ao som dos remos.
Era um lindo e guapo mancebo: moreno e forte, de olhos e cabelos negros. Mais de uma donzela corria à barranca quando lhe ouvia a voz afinada e seguia-o enamoradamente com o olhar apaixonado até que ele se perdia num dos igapós, entre ramas.
Não havia pescador tão ousado nem tão feliz como ele. Quando os outros, no tempo das cheias, receavam as águas temerosas, ele saia sozinho, cantando, ia lançar a rede longe e voltava com o barco cheio de pescado, não porque precisasse, senão por vaidade — para que vissem que não se abrigara em remanso, mas afrontara as águas revoltadas tirando os grandes peixes que não chegam às margens e só vivem nos lugares profundos.
A mãe, numa tarde borrascosa, disse, querendo prendê-lo:
— “Não te afoites, filho. A prudência é companheira segura e não é valentia provocar a Morte nos abismos. Se a tempestade cair acolhe-te a algum porto e deixa que os ventos amainem e que as ondas se abonancem. Não te arrisques inutilmente. A intrepidez é do bravo; a temeridade é do louco. Ouve-me, porque eu falo-te com o coração. Ai! de mim se te perderes nas águas traidoras. Os outros gabam-te a coragem e são tais louvores que te estão encaminhando à perdição. Julgas, talvez, que é só pela tua audácia que vais afrontar a morte? É a tua vaidade que te arrasta, filho. E a vaidade é pérfida como a iara que vive no fundo dos rios atraindo, com o seu canto, os imprudentes como tu.
“Muitos dos que te gabam rejubilarão no dia em que sucumbires, porque a inveja de tudo tira partido e, elevando-te, ela quer que subas bem alto para que a queda seja mortal. Não te fies.
“Quando o tempo estiver firme sai com o teu barco; em noites tormentosas faça como os demais que se deixam ficar seguros e agasalhados, gozando o calor do fogo, ouvindo o vento gemer nos ramos das árvores e a água do rio escachoar nas pedras.
“Sais, és o único que a tanto se aventura em frágil piroga e, quando passas ao largo e vês em terra uma luzinha de choça, murmuras, com a vaidade a encher-te o coração:
«Há ali alguém a pensar em mim.» E acendes a tua lanterna para que a vejam de terra e digam :
«Lá vai Amadeu. Não há outro de tanta coragem.»
“Sabes que assim exaltam a tua audácia e é para que murmurem à tua passagem: «Lá vai o mais valente pescador das ilhas», que andas imprudentemente a desafiar a morte.
“Quando a glória acena à audácia, compreende-se que um homem arrisque a sua vida; mas que proveito tiras tu de tais atos de louco? Deixas meu coração em sofrimento e, se pereceres, nem mesmo, talvez, o lodo do rio me restitua o teu cadáver para que eu o sepulte carinhosamente, marcando o túmulo com uma cruz e regando-o com as minhas lágrimas.
“Não te deixes levar pelas palavras, enganadoras. És bravo, espera ocasião oportuna para mostrares teu ânimo. Ninguém tem maior interesse na tua glória do que eu.”
O moço, que caminhava para o portinho, não deu atenção às palavras da velha e, desatracando a piroga, que balançava na onda, remou fazendo-se ao largo.
A tarde conturbava-se a mais e mais: relâmpagos inflamavam as nuvens pesadas e coriscos raiavam a densidão do horizonte. A folhagem das árvores parecia de bronze — dura e imóvel na calmaria morna. Aves passavam apressadas, em voo largo, recolhendo aos ninhos ou às tocas e as águas do rio desciam, rolavam grossas, escuras, refulgindo sinistramente quando o céu flamejava.
A piroga subia. De outras, que proejavam ligeiras à terra, pescadores perguntavam ao moço ousado:
— Vais sair com tal tempo?
— Porque não?
— Cuidado! O rio cresce e o temporal não tarda.
— Não é só com o luar que se avista o rumo; o relâmpago tambem alumia.
— Olha lá! As iaras fazem maldades nas noites sem estrelas.
— Dizem que são formosas e eu ainda as não vi. Queira Deus que hoje as encontre em meu caminho.
E lá ia. Ao passar perto das ilhas levantava a voz cantando para anunciar-se às donzelas e gozava, ufano, imaginando que todas pediam por ele, ajoelhadas diante das imagens milagrosas, acendendo lâmpadas e fazendo promessas.
Adensavam-se as trevas. O moço pescador tentou, por vezes, acender a lanterna, mas o vento logo a apagava. Ao lívido clarão do relâmpago via a água negra, o céu negro, a massa escura do arvoredo das ilhas e as montanhas longínquas.
Às rijas lufadas levantava-se marulho formidável, galhos estalavam e caiam na água, descendo na correnteza. Raios estrondavam, e a piroga, à mercê das ondas enfurecidas, mal obedecia a pá do pescador.
Sem ver na escuridão, Amadeu ouvia o rio rugir furioso e tiritava encharcado sob o aguaceiro torrencial.
Àquela hora a pobre mãe chorava aflita, pedindo o favor de Deus, e nas cabanas das ilhas quantos pequeninos corações batendo por ele, quantos lábios vermelhos balbuciando rezas!
Ah ! Se ele conseguisse escapar, tirar-se daquele perigo, como o haviam de admirar e, nas feiras, quando ele passasse airoso, afluiria gente para vê-lo e diriam com boca pequena :
« É o pescador que não teme as tempestades e ri das iaras que sobem à tona das águas quando não há estrelas no céu.»
Ao luzir dum relâmpago ele viu que estava a pouca distância de terra. Animou-se e, remando esforçadamente, conseguiu atracar. Prendeu a piroga e saltou na ilhota que a Providência lhe deparara. Estava salvo.
Ali podia esperar que a tormenta serenasse e, com a luz da manhã, regressaria à cabana tranquilizando a pobre velha e maravilhando a gente que, com certeza, já o julgava perdido, soçobrado naquelas águas que roncavam com tamanho fragor, arrancando violentamente grandes árvores das ribanceiras.
Encolheu-se, traspassado e com medo, ouvindo, através da zoada do vento e do estrondo das águas, o frêmito das onças apavoradas.
Já se sentia perto, ouvia o estralejar dos ramos sob as pesadas patas e, olhando, via reluzirem na treva as pupilas fosforejantes dos terríveis felinos. Mas era tudo ilusão do pavor: só tempestade reinava assoberbando o rio.
E, de novo, pôs-se Amadeu a pensar na volta triunfante e nas palavras que diriam os que o vissem aparecer cantando, a remar a piroga carregada de peixe.
Peixe ... Sim, era necessário que levasse algum para que os invejosos não dissessem, menoscabando-o : «Que ele, em vez de andar sobre as águas, acolhera-se covardemente a alguma ponta de terra. »
A prova era indispensável e, se a atroada da tormenta aconselhava prudência, o desejo de ser admirado, a ambição dos louvores impelia-o ao perigo e, como fora feliz salvando-se naquela ilhota, a mesma fortuna havia de segui-lo na aventura arriscada a que se ia meter.
Pensando nos companheiros e nas donzelas e já ouvindo, na imaginação, os elogios à sua coragem, saltou na piroga e fez-se ao largo.
O rio esbravejava. Grandes troncos boiavam levados na correnteza; remoinhos ferviam ameaçadoramente e, ao clarear dos relâmpagos, ele entrevia o abismo no qual a piroga valia tanto como uma leve folha.
Um tronco abalroou-a impelindo-a com violência e um grande jorro de água, assaltando-a pela proa, advertiu o imprudente moço do perigo.
Ai! dele, era tarde. Pôs-se a remar com desespero, mas a piroga não resistia ao ímpeto das águas e, girando, descia vertiginosamente aos encontrões nas árvores, emaranhando-se em camalotes (ervaçal à beira dos rios), sem que o esforço do pescador a pudesse salvar.
A pesca! Um peixe, ao menos, que servisse de prova aos que duvidassem da sua afoiteza. E o temporal rugia.
Passando, levado na correnteza, via na treva, a um e a outro lado, luzes que assinalavam cabanas. Onde estaria a dele, pouco além do portinho, entre coqueiros?
Em todas, por certo, pediam a Deus por ele.
Gritou. Pobre voz que o vento levou como levava as folhas das árvores! E as águas cresciam medonhas.
Um ramo roçou-lhe o rosto. Estremeceu lembrando-se das iaras traidoras que arrastam os pescadores imprudentes para o fundo das águas. Deviam ser elas que cercavam a sua pequenina piroga. Ai! Dele ... Nunca mais folgaria nos serões ouvindo os cantos alegres, dançando o sapateado á luz do luar.
E porque se precipitara? Não o guiara a mão benigna da Providência àquela ilhota? Não achara ele refúgio seguro naquele ancoradouro? Porque o deixara? Por vaidade e era a vaidade que o ia levando para a morte. E nunca mais falariam nele, outros teriam os amores das lindas moças enquanto que ele, rolando, desapareceria para o sempre no lodo do rio, como dissera a mãe por entre lágrimas pressagas.
Um relâmpago fulgurou e, súbito, sem que lhe desse tempo de desviar a piroga, um grande tronco virou-a. Amadeu nadou enfraquecidamente, lutando com as águas e com a treva e, no delírio, parecia que, de todos os lados, vozes o aclamavam vitoriando-o.
Exausto de forças desceu ao fundo das águas; ainda num derradeiro, supremo esforço emergiu à tona e pareceu-lhe ouvir uma voz, a voz da sua velha mãe, chamando-o : «Amadeu!»
Tentou gritar: a água abafou-lhe o grito e o rio rolou soberbo, tocado pela tempestade.
Hoje, quem se lembra do moço pescador? Só a pobre mãe que o chama com a voz da saudade. Os mais, sempre que aludem á sua morte, dizem: «O que o matou foi a vaidade.» E as velhas acrescentam: «Foi castigo do céu.»
Fonte> Coelho Neto. Apólogos: contos para crianças. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Lélo & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público. Convertido para o português atual por Jfeldman.
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