José Joaquim de Souza e Silva veio da terra e foi para Jacarepaguá, onde se estabeleceu, protegido pelo Manoel da Venda, seu primo. Aí dedicou-se ao comércio de aves domésticas e ovos, que comprava em porção, enviando-os em seguida à Praça do Mercado e outros pontos da cidade. A sua lida com a criação, desde a manhã até a noite, durante anos, sempre na mesma casa, eternamente no mesmo lugar, valeu-lhe a alcunha de Zé Galinha, porque era conhecido, verdadeiramente popular em Jacarepaguá e terras adjacentes. Ninguém sabia quem era o Souza e Silva, nem José Joaquim. Perguntassem, porém, pelo Zé Galinha, que todo o mundo apontaria a sua casa.
E o Souza desesperava-se com aquilo: ralava-o a antonomásia (apelido) que lhe haviam posto, e daria bem um par de contos se conseguisse ser chamado de outra forma.
Nos primeiros tempos, quando começara a vida, pouco se lhe dava que o chamassem assim ou assado: queria ganhar dinheiro, fazer fortuna e voltar à aldeia. Mas, depois de vinte anos, aclimado em Jacarepaguá, rico, já casado e com filhos, resolveu ficar. Abraçou outro ramo de negócio, abriu um grande armazém de secos e molhados, e acabou o negócio de galinhas, patos e perus.
A alcunha, porém, ficou. Ele era o Zé Galinha. Parecia até que aquilo era proposital. Quanto mais se enfurecia, e maiores esforços empregava para que a antonomásia fosse esquecida, toda a a gente se obstinava em chamá-lo assim.
Foi então que o Souza resolveu comendadorizar-se. Veio ao Rio, e conversou com o barão de S. Caetano, chefe da colônia, assinou dez contos para o Asilo dos Órfãos Lusitanos, recentemente fundado, e esperou a comenda.
Durante uma semana passou ele na cidade, divertindo-se à farta, para compensar um pouco a sua vida cheia de trabalhos.
Havia chegado no domingo, e o João Carne Seca, da rua das Violas, em cuja casa se hospedara, levou-o ao teatro, que ele não conhecia.
A princípio o Zé Galinha não queria ir, mas o outro incentivou-o tanto, animou-o de tal forma, que resolveu finalmente.
Enfiado numa sobrecasaca de pano comprada feita na rua do Hospício, encartolado, de calças brancas e botinas de verniz, o futuro comendador ficou disfarçado. Nem ele mesmo se reconheceu!
Ao entrar no Cascata, onde o João ia tomar café, a sua figura exótica refletiu-se em um dos espelhos. E como caminhasse em frente, vendo aquele cavalheiro que se dirigia para ele, em sentido oposto, recuou delicadamente para a direita, a fim de ceder o lugar. E vai o “outro”, justamente na mesma ocasião, recua. O Zé tomou a esquerda; o “outro” idem. O Zé parou; o outro imitou-o.
Vendo aquela contradança, o João, que já estava sentado, perguntou-lhe:
— Que diabo estás a fazer aí, ó Souza?
E o Souza, sorrindo-se, medonhamente encalistrado:
— Estou dando lugar para aquele cavalheiro passar.
O João rompeu numa gargalhada colossal:
— Ó rapaz! pois não estás vendo que aquilo é a tua imagem no espelho?
Saindo do café, dirigiram-se os dois para o teatro.
Deslumbrado, nunca tendo visto daquilo, o nosso homem quase não podia caminhar. Foi com dificuldade que o João o arrastou até as cadeiras, em uma das filas centrais.
Já havia começado o espetáculo, e o negociante permanecia de pé, não consentindo assim que os espectadores das filas atrás vissem o que se representava.
Então, algumas pessoas, aborrecidas com aquele estafermo, das torrinhas e da plateia, bradaram:
— Senta!... Senta!...
Zé Galinha, imperturbável, voltou-se para trás, e no meio do silêncio que se fizera, respondeu:
— Não se incomodem, meus senhores; estou bem de pé, muito obrigado.
Cessado o ligeiro incidente, depois de alguns segundos de prolongada hilaridade, tendo João obrigado o companheiro a sentar-se, o Souza e Silva, conhecido em Jacarepaguá por Zé Galinha, assistiu calmamente a representação.
O primeiro ato correu sem novidade, salvo uma ou outra asneira, que perguntava ao companheiro, em voz baixa, para não fazer novo fiasco.
Representava-se uma comédia Uma hospedaria na roça. Quando o ator entra em cena e procura pela mulher, que está escondida atrás da porta, volta-se para a plateia e interroga “Onde estará ela? Onde estará a Chiquinha? Onde estará?”. E leva alguns minutos a procurá-la com açodamento, examinando o aposento.
Nessa ocasião, o ilustre jacarepaguense não pode resistir, e, querendo mostrar a sua perspicácia, berrou:
— Está aí atrás da porta, escondida para que o senhor não a veja.
Durante a semana em que Zé Galinha passou no Rio de Janeiro, nem um só dia deixou de ir ao teatro. Ficara gostando imensamente, e andava maníaco.
De volta para Jacarepaguá, levava na mala uma enorme coleção de dramas, comédias, cenas cômicas e monólogos, comprados na Livraria Quaresma, que principiou a ler com animação.
Estava à espera da comenda que o barão de São Caetano lhe prometera, e que havia de desaparecer para sempre a sua terrível alcunha. Lembrou-se então de mandar edificar um teatrinho, onde tencionava representar, fundando também uma sociedade dramática.
Em menos de um mês estava tudo pronto, e inaugurava-se o Ginásio Dramático Beneficente Estrela de Ouro de Jacarepaguá, sob a presidência do comendador José Joaquim de Souza e Silva.
O ilustre comerciante queria realizar imponentes festas para comemorar dignamente a sua comenda. Seriam três dias de pândega, havendo em todas essas noites espetáculos e bailes.
A primeira peça escolhida para a estreia foi a tragédia em oito atos D. Nuno Álvares ou O poder do lusitano.
O comendador Souza e Silva fazia o papel de Conde de Tomar.
Ao aparecer na primeira cena, passeava lentamente, mudo, pensativo. A marcação da tragédia dizia: “O conde entra, mas não fala...”
E vai o Zé, avança pelo palco, e exclama com voz de trovão:
— E conde entra, mas não fala!
Como estava radiante o comendador José Joaquim de Souza e Silva! Durante aqueles três dias nem uma só vez ouvira pronunciar a terrível alcunha de Zé Galinha. Jacarepaguá em festas tinha esquecido e agora só o chamava comendador.
Havia chegado a terceira noite, e nova tragédia ia exibir-se: O punhal envenenado ou A nódoa de sangue.
Logo no primeiro ato, ao erguer-se o pano, o Souza aparecia disfarçado com longas barbas e longa cabeleira, de capa e espada. A cena, quase às escuras, fingia um bosque.
D. Rufo, o chefe dos salteadores, entrava, e dizia:
— Noite propícia; nem uma estrela brilhando no firmamento!
Fez-se profundo silêncio quando ele apareceu, e a frase foi bem lançada.
Mas de repente, no meio da quietação sepulcral, ouviu-se uma voz de criança exclamar:
— Ó mamãe! Aquele não é o seu Zé Galinha?
Escândalo nunca visto! Rebentou uma gargalhada uníssona, colossal.
Então, o Souza, vendo perdido o seu tempo, o trabalho que tivera, e o cobre com que comprara a comenda, ficou desnorteado; e arrancando com gesto brusco as barbas e a cabeleira, exclamou indignado:
— Zé Galinha é você, seu malcriado! O culpado fui eu, metendo-me com essa gentinha! Arreia o pano!
E assim acabou-se o Ginásio Dramático Beneficente Particular Estrela de Ouro de Jacarepaguá.
Fonte> Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.
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