quarta-feira, 1 de maio de 2024

Humberto de Campos (Aparências)

Em toda a rua São Gabriel, naquele movimentado bairro operário, o assunto mais em evidência era, há muitos dias, aquele: a saída furtiva, a horas altas da noite, daquela rapariga tão linda, desde que morrera o marido.

— É uma falta de vergonha, D. Inácia, o que está fazendo aquela desalmada — informava, de janela para janela, a vizinha da direita. — Ainda ontem, à noite, eu fiquei de vigília aqui por dentro da rótula*, e vi tudo: a atrevida esperou que se fechassem todas as casas, abriu a porta, espiou para um lado e para outro, e, como não visse ninguém, pôs um xale, e saiu. Imagine o que ela não foi fazer por ali...

— Dizem que vai para um clube dançar o maxixe com o Manoel português, — adiantava D. Inácia.

— A Vitalina, outro dia, quando voltava do baile do Alfredo, alta madrugada, encontrou-se com ela, que saía de casa. A desnaturada ficou tão envergonhada que cobriu o rosto, para não ser conhecida.

— Que mulher cínica! — terminava uma.

— Que falta de vergonha! — confirmava a outra.

Divulgada a notícia do escândalo, toda a rua ficava, horas e horas, à espreita, aguardando, pelas frestas das janelas, a saída clandestina da viúva. E quando esta desaparecia, ao longe, na esquina, as rótulas se escancaravam, as cabeças emergiam, e começavam as observações!

— Viu?

— Vi!

— Sim, senhora! Quem diria?!...

— Que escândalo!

— Que horror!...

Certa noite, porém, instigados pelas mulheres, resolveram alguns operários acompanhar de longe a notívaga, fiscalizando-lhe os passos, para desagravo do morto. Pé ante pé, espiando de canto em canto, escondendo-se pelos portais, andaram os homens de rua em rua, até que foram ter a um campo deserto, em frente a um mercado. E ali viram, enxugando os olhos rasos de pranto: a "pervertida" saía todas as noites, embuçada na treva, para disputar aos porcos, no monturo, uma fruta podre, para a fome do filho!…
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* Rótula = Grade de madeira de certas janelas e portas que deixa entrar luz e ar pelo intervalo das ripas entrecruzadas de que é feita.

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público.

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