quinta-feira, 9 de junho de 2016

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 4a. Parte



Já Boca de Ouro, escrita em 1959 e encenada em 1961, é caracterizada como tragédia carioca.  Dentre as oito peças que compõem o ciclo das Tragédias Cariocas, somente esta e Beijo no asfalto (escrita e encenada em 1961) são denominadas assim. Tanto uma como a outra são peças que não possuem elementos nem do farsesco, nem da comédia. São, enfim, coerentes com o intento de Nelson quando da denominação de tragédia. E, mais do que nunca, são cariocas, representadas tendo como pano de fundo o cenário carioca, em geral, suburbano.

A respeito da primeira, Boca de Ouro, podem ser encontrados alguns elementos evidenciados tanto por Schiller quanto por Williams. Se Schiller diz que para um fim moral a tragédia não pode apresentar um herói virtuoso, assim, então, identificamos os heróis rodrigueanos: por mais heróis que eles sejam, nunca são virtuosos, mas, ao contrário, sempre carregados de falhas e fracassos. Justamente por isso eles são representantes da sociedade. Boca de Ouro é o herói da peça, nada virtuoso, ao contrário, tido por um cafajeste sem caráter, inescrupuloso, que mata sem piedade. Mesmo na segunda versão da história, em que D. Guigui diminui a cafajestagem do ex-amante, ele aparece como um homem malandro, sem muitos elogios. D. Guigui também não aparece como uma mulher virtuosa em si, apenas como uma mulher suburbana normal, carregada de desejos e anseios, que muda de versão da história a cada impacto emocional provocado por alguma notícia.

Mas antes de tudo, devo ater-me aos elementos que constituem o moderno dentro do trágico rodrigueano. Em Boca de Ouro, a heroína (D. Guigui) é quem vai conduzir a ação trágica. Ela é a responsável pelas três versões dos fatos a respeito de Boca de Ouro, pois toda a narrativa provém de suas emoções. Assim, tudo o que acontece está de acordo com o que Szondi chamou de esfera do “inter”: dentro da psicologia da própria personagem e coerente com sua estética interna. Cada detalhe do texto não é escrito em vão, mas como parte integrante do todo trágico, que por sua vez é coerente com a intenção do autor em escrever uma tragédia carioca.

Porém, em Beijo no asfalto, as coisas transcorrem diferentemente. Os fatos não vão acontecer somente na psicologia de um herói, mas se centram no isolamento de Arandir, devido ao seu sofrimento, necessário enquanto consequência de um erro moral – que não foi necessariamente dele, mas que se tornou dele por imposição da mídia. Erro moral porque, na sociedade retratada na peça e na qual Arandir está inserido, beijar outro homem na boca é proibido, um crime contra a moralidade. No entanto, Arandir baseia-se no princípio da bondade, pouco se importando com o que é considerado certo ou errado na sociedade. E é aí que se encontra o seu maior erro, maior mesmo do que ter beijado outro homem: ter ignorado as regras impostas pela sociedade.

Não são muitas as cenas trágicas que evidenciam sofrimentos pessoais em Boca de Ouro. Elas são mais evidentes em Beijo no asfalto, pois Arandir carrega seu fardo por ter beijado outro homem na boca. E não somente ele sofre, mas também sua esposa Selminha, que, violentamente interrogada pelo delegado Cunha e pelo repórter Amado Ribeiro, exalta-se e revela estar grávida, numa tentativa de provar a masculinidade do marido. Então, como forma de amedrontá-la, Amado manda que ela fique nua. Um outro exemplo é o desfecho trágico, na última cena, quando Aprígio revela-se apaixonado por Arandir e, em seguida, mata o genro com dois tiros. Ainda que este final carregue um fundo apelativo, voltado ao melodramático, isso não diminui a qualidade estética da peça, muito menos a reação catártica do público.         

A morte de Arandir pode ser vista por dois ângulos que se convergem: o primeiro, a questão do sofrimento do herói enquanto fator de emoção do público, conforme explicado por Schiller. Arandir é o herói virtuoso que sofre impiedosas injustiças e que, consequentemente, comove o espectador/leitor com sua morte. Segundo, porque esse aniquilamento pode ser visto também como a destruição do herói expressionista, que está fadado ao sofrimento e total anulação.

Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária e A serpente formam, juntas, o pequeno conjunto de peça. A primeira, encenada em 1962, é chamada de peça em três atos. Já a outra, escrita em 1978 e encenada somente em 1980, é chamada de peça em um ato (a única peça de Nelson escrita concisamente em um ato). Bonitinha é uma peça que perpassa do cômico grotesco à mais alta tensão trágica em poucas cenas, passando ainda pelas características da comédia de costumes, sem, no entanto, dominar as características de um só gênero. Logo no início da peça, apresenta-se uma atmosfera etílica, na qual estão Edgard e Peixoto numa conversa que não é propriamente tensa, mas que tende à tensão. Eles discutem a frase do Otto Lara Resende, que percorre toda a peça: “O mineiro só é solidário no câncer”. Segundo a explicação de Edgard, não é apenas o mineiro, mas toda a raça humana que não se solidariza com nada. Então, com a frase do Otto acompanhando-o, ele pode fazer qualquer coisa para ganhar dinheiro. Aqui já está lançado o objeto da peça: conseguir dinheiro a qualquer custo. Incluem-se neste caso Ritinha, Edgard e Peixoto, que precisam de dinheiro e são capazes de tudo para conseguir. Já na cena seguinte, na casa de Ritinha, ela está brigando com as irmãs, reclamando que elas não fazem a higiene pessoal corretamente e, numa atitude com total falta de poesia – como diria o próprio Nelson -, Ritinha passa a franja da toalha na orelha da irmã, conforme indica a rubrica. E nessa mesma cena, com algumas inclusões grotescas, há uma tensão no final, quando Ritinha briga com a irmã:

(Estupefata, Ritinha avança para Aurora, que recua, com a cara desfigurada pelo ódio e pelo medo.)
RITINHA (arquejando) – Eu me mato por vocês. Faço uma ginástica. Dou aula até altas horas. Qualquer dia, sou assaltada no meio da rua. E você ainda tem a coragem? Dizer que eu flertei! Agora você vai repetir. Eu flertei?
(As duas irmãs, cara a cara.)
AURORA – Flertou!
(Ritinha esbofeteia. Continua batendo.)
RITINHA – Sua descarada!
(Aurora recua circularmente, debaixo de bofetadas.)
AURORA (aos soluços) – Você vai me pagar! Juro! Você vai ver, Ritinha! Quero que Deus me cegue se. Você vai ver! (RODRIGUES, 1990:254-5)

Nessa cena, há uma rápida transposição do grotesco ao trágico. É evidente que, desde o início da peça, há uma tensão que, se continuada, pode levar a alguma ação trágica. No entanto, provavelmente para quebrar a tensão e provocar o riso, Nelson inseriu numa cena bem cotidiana um fato grotesco, grosseiro, que é Ritinha limpar a orelha da irmã com a ponta da toalha.

Logo adiante, há o que podemos chamar de uma das características da comédia de costumes: o retrato da diferença social existente e o estudo do caráter no ser humano. Edgard, jovem suburbano, aceita se casar com Maria Cecília por causa do dinheiro dela. Então, ele vai até a casa de Werneck para conversar sobre o casamento.

(Passagem de cena. Sala do Dr. Werneck. Ele, exuberante, barrigudo, está enchendo um copo. Presentes também o Dr. Peixoto e a esposa do velho, D. Lígia. Edgard aparece por fim. Senta-se.)
WERNECK (para Edgard) – Você já sabe de tudo?
EDGARD (que ia começar) – De fato.
PEIXOTO (interrompendo) – Contei o caso, por alto.
WERNECK – Bem. Portanto, você sabe que a moça. A moça que sofreu o acidente. Foi um acidente. Assim como um atropelamento, uma trombada. Pois a moça é minha filha. Quer dizer, a filha do seu patrão. Isso é importante. A filha do seu patrão. Entendido?
EDGARD – Sim, senhor.
WERNECK (com uma satisfação brutal) – Gostei da inflexão. Um “sim, senhor” bem, como direi.(Idem, ibidem:266)

Nessa peça, ao contrário das outras desse ciclo rodrigueano, o final não é trágico, não é tenso e não é triste. É, por incrível que pareça, um happy end, bem atípico aos finais de Nelson Rodrigues. Suprimidos os contraventores da peça, Peixoto e Maria Cecília, o final feliz está livre para Ritinha e Edgard, que se libertam de tudo e, numa cena quase cômica para a peça onde está inserida, os dois correm até a praia, onde Ritinha confessa que nunca teve prazer com homem nenhum e que com Edgard será a primeira vez. Porém, por mais contraditório com o estilo rodrigueano que possa ser esse desfecho, encontramos no decorrer da trama personagens que sofrem para manter uma adequação moral, conforme Schiller vê um dos elementos da tragédia. Assim é o caso de Ritinha, que se prostitui para ver as irmãs casadas na igreja, de véu e grinalda.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

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