— Estou esperando!
— Não quero!
— Deixá-lo passar!
— Naufragou!
— Eu vinha vindo com o frescor da manhã por aquele trecho da praia de Santa Luzia, tão suave e tão formoso, onde se amontoam as coisas lúgubres da cidade — a Santa Casa, o Necrotério, o serviço de enterramentos. Entre as árvores fronteiras ao hospital vendedores ambulantes vociferavam os pregões de canjica, de mingau, de pães doces; dos bondes pejados de gente saltavam criaturas doentes, paralíticas algumas, de óculos outras. Pelas escadas de pedra lavada formigava constantemente a turba doente, mostrando as mazelas, como um insulto e uma afronta aos que estavam sãos, entre os enfermeiros do hospital, de calça de zuarte azul e dólmã pardo, nédios e sadios. Eu vinha precisamente pensando como gozam saúde os enfermeiros, e aquelas frases maçônicas fizeram-me mal. Parei, consultei o relógio. Os
quatro tipos não se ralavam mais com a minha presença. Dois olhavam com avidez os bondes que vinham da Rua do Passeio; dois estavam totalmente voltados para o lado da Faculdade. Ao aparecer um bonde, um magrinho bradou:
— Largo!
Prestei atenção. Do bonde em movimento saltou um cavalheiro defronte do Necrotério.
— De cima! bradou outro tipo.
— Última! regorgitou o terceiro.
E cercaram o cavalheiro.
— Vossa senhoria há de aceitar um cartãozinho da nossa casa. Não precisa de se incomodar. Tratamos de tudo! Faça negócio comigo!
A um tempo falavam todos, e o cavalheiro, coberto de luto, com o lenço empapado de suor e de lágrimas, murmurava, como se estivesse a receber pêsames:
— Muito obrigado! Muito obrigado!
Aproximei-me de um dos funcionários do serviço mortuário.
— Que espécie de gente é essa?
— Oh! Não conhece? São os urubus!
— Urubus?
— Sim, os urubus... É o nome pelo qual são conhecidos aqui agenciadores de coroas e fazendas para luto. Não é muito numerosa a classe, mas que faro, que atividade!
Totalmente interessado, tive uma dessas exclamações de pasmo que lisonjeiam sempre os informantes e nada exprimem de definitivo. E sorriu, tossiu e falou. Foi prodigioso.
— Os agenciadores de coroas levantam-se de madrugada e compram todos os jornais para ver quais os homens importantes falecidos na véspera. Defunto pobre não precisa de luxo, e coroa é luxo. Logo que tomam as notas disparam para a casa do morto e propõem adiantar o que for necessário para o enterro, com a condição de se lhes comprarem as coroas. Algumas casas têm mesmo nos cartões os seguintes dizeres — encarregam-se de tratar de enterros sem cobrar comissão de espécie alguma. E os títulos dessas casas davam para um tratado de psicologia recreativa. Há os poéticos os delicados, os floridos, os babosos, os fúnebres — “Tributo da Saudade, “Coroa de Violetas”, “Flor de Lis”, “Bogari”, “A Jardineira”, “Coroa de Rosas”...
— Mas... e estes homens aqui?
— Estes homens são os urubus de Santa Luzia, serviço especial e maçônico. Três ficam à entrada principal da Santa Casa. Quando avistam um tipo, brada o primeiro: estou esperando! Se o tipo não tem cara de enterro: não quero! Deixá-lo passar. Se o homem vem de tílburi, correm até aqui a acompanhá-lo... Se o tílburi segue, bradam: naufragou! E voltam ao lugar donde não saíram os outros. É interessante ouvir-lhes o diálogo. Tu é que não correste! Conheço o homem; antes fosse, era meu o negócio...
— Mas é horrível!
— É a vida, meu caro. Aqui estacionam sete agentes; o assalto ao freguês vai pela vez, como aos sábados, nos barbeiros. Quatro oferecem grinaldas aos passageiros que saltam dos bondes; três aos que vêm a pé. Ao ver o bando ao longe há a frase: De cima! Que é o sinal. Do lado de lá! quando ele salta do lado oposto. Última! quando salta no Necrotério. um dos urubus acerta, grita: “Estou empregado!” E feito o negócio o outro avança, dizendo: Grinalda! para obter como resposta: A tua é minha...
Quando aparece por acaso algum freguês conhecido de um dos agenciadores dá-se o “combate”. Os três que ficaram “desempregados”, desejando “furar” o agenciador amigo, quando não conseguem convencê-lo arranjam meio de o cacetear até que o negócio não se realize. Nessa ocasião assistimos a cenas calorosas, a conflitos sérios, em que se faz sentir a intervenção da polícia. Mas à noite, graças aos deuses, acabado o trabalho, vão todos para a venda do Antônio, à Rua da Misericórdia, beber cerveja.
— São estes então? – fiz, voltando-me.
— Estes só, não. Há outros, os que fazem ponto no Largo da Batalha e rendem estes à hora do almoço e que só têm o posto depois de ter todas as notas dos tipos que estão na secretaria e tratar de enterros.
— Como os agentes de polícia?
— Tal qual. E terminam sempre com a nota policial: quarenta anos presumíveis.
Rimos ambos. O sol está brilhante e o céu, inteiramente azul, dá-nos desejos de viver e de compreender a vida pelos seus mais ridentes aspectos.
— Os urubus devem ter nome?
— Têm, são urubus urbanos. Vê o senhor aquele? É o Chico Basílio. Há cerca de 30 anos exerce a profissão. Está vendo aquele grupo? Encontra lá o Brasilino, o Caranguejo, o Bilu, o Espanhol da Saúde, o Mangonga. Os outros são o Joaquim, o Tatuí, o Paulino, o Cá e Lá, o Buriti, o Manduca.
Neste momento um mocinho de lápis e linguado de papel na mão indagou, entrando:
— Alguma coisa de novo?
— Sim, pode entrar.
O mocinho desapareceu. O complacente informante sorria.
— Outro urubu.
— Outro?
— São os que parecem repórteres. Vêm para a secretaria da Santa Casa munidos de tiras de almaço para copiar dos livros os nomes e residências das pessoas mortas, isto é, só copiam os daquelas cujo enterro custar mais de 100$. Saem daqui para o lugar indicado e ficam às portas à espera que o corpo saia, um, dois, cinco às vezes. Quando o cadáver sai e a família ainda está aos soluços, embarafustam com as amostras de luto. Contaram-me que chegam à concorrência, a ver quem faz o luto em 24 horas mais em conta. Neste serviço conheço o Ferraz, o Saul, o Guedes, o Matos, o Araújo, o Campos, o Mesquita.
Eu ouvia o meu informante um pouco melancólico. Que diabo! Por que urubus, naquele pedaço da cidade que cheira a cadáveres e a morte?
Não há terra onde prospere como nesta a flora dos sem ofício e dos parasitas que não trabalham. Esses sujeitinhos vestem bem, dormem bem, chegam a ter opiniões, sistema moral, ideias políticas. Ninguém lhes pergunta a fonte inexplicável do seu dinheiro. Aqueles pobres rapazes, lutando pela vida, naquele ambiente atroz da morte, vestindo a libré das pompas fúnebres, impingindo com um sorriso à tristeza coroas e crepes, só para ganhar honestamente a vida, eram dignos de respeito. Por que urubus? Maçonaria da má sorte, pelotão dos tristes, seres sem o conforto de uma simpatia, no limite do nada, encarregados de fornecer os símbolos de uma dor que cada vez a humanidade sente menos.
Despedi-me, comecei a andar devagar. Um dos urubus aproximou-se.
— Estiveram contando coisas a nosso respeito?
— Não, absolutamente.
— Que se há de fazer? A comissão é tão pequena! Quando quiser uma coroa...
— Deus queira que não! fiz assustado.
E apertei a mão do homem urubu com um tremor de superstição e de susto.
Fonte: João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Publicado em 1908. Disponível em Domínio Público.
— Não quero!
— Deixá-lo passar!
— Naufragou!
— Eu vinha vindo com o frescor da manhã por aquele trecho da praia de Santa Luzia, tão suave e tão formoso, onde se amontoam as coisas lúgubres da cidade — a Santa Casa, o Necrotério, o serviço de enterramentos. Entre as árvores fronteiras ao hospital vendedores ambulantes vociferavam os pregões de canjica, de mingau, de pães doces; dos bondes pejados de gente saltavam criaturas doentes, paralíticas algumas, de óculos outras. Pelas escadas de pedra lavada formigava constantemente a turba doente, mostrando as mazelas, como um insulto e uma afronta aos que estavam sãos, entre os enfermeiros do hospital, de calça de zuarte azul e dólmã pardo, nédios e sadios. Eu vinha precisamente pensando como gozam saúde os enfermeiros, e aquelas frases maçônicas fizeram-me mal. Parei, consultei o relógio. Os
quatro tipos não se ralavam mais com a minha presença. Dois olhavam com avidez os bondes que vinham da Rua do Passeio; dois estavam totalmente voltados para o lado da Faculdade. Ao aparecer um bonde, um magrinho bradou:
— Largo!
Prestei atenção. Do bonde em movimento saltou um cavalheiro defronte do Necrotério.
— De cima! bradou outro tipo.
— Última! regorgitou o terceiro.
E cercaram o cavalheiro.
— Vossa senhoria há de aceitar um cartãozinho da nossa casa. Não precisa de se incomodar. Tratamos de tudo! Faça negócio comigo!
A um tempo falavam todos, e o cavalheiro, coberto de luto, com o lenço empapado de suor e de lágrimas, murmurava, como se estivesse a receber pêsames:
— Muito obrigado! Muito obrigado!
Aproximei-me de um dos funcionários do serviço mortuário.
— Que espécie de gente é essa?
— Oh! Não conhece? São os urubus!
— Urubus?
— Sim, os urubus... É o nome pelo qual são conhecidos aqui agenciadores de coroas e fazendas para luto. Não é muito numerosa a classe, mas que faro, que atividade!
Totalmente interessado, tive uma dessas exclamações de pasmo que lisonjeiam sempre os informantes e nada exprimem de definitivo. E sorriu, tossiu e falou. Foi prodigioso.
— Os agenciadores de coroas levantam-se de madrugada e compram todos os jornais para ver quais os homens importantes falecidos na véspera. Defunto pobre não precisa de luxo, e coroa é luxo. Logo que tomam as notas disparam para a casa do morto e propõem adiantar o que for necessário para o enterro, com a condição de se lhes comprarem as coroas. Algumas casas têm mesmo nos cartões os seguintes dizeres — encarregam-se de tratar de enterros sem cobrar comissão de espécie alguma. E os títulos dessas casas davam para um tratado de psicologia recreativa. Há os poéticos os delicados, os floridos, os babosos, os fúnebres — “Tributo da Saudade, “Coroa de Violetas”, “Flor de Lis”, “Bogari”, “A Jardineira”, “Coroa de Rosas”...
— Mas... e estes homens aqui?
— Estes homens são os urubus de Santa Luzia, serviço especial e maçônico. Três ficam à entrada principal da Santa Casa. Quando avistam um tipo, brada o primeiro: estou esperando! Se o tipo não tem cara de enterro: não quero! Deixá-lo passar. Se o homem vem de tílburi, correm até aqui a acompanhá-lo... Se o tílburi segue, bradam: naufragou! E voltam ao lugar donde não saíram os outros. É interessante ouvir-lhes o diálogo. Tu é que não correste! Conheço o homem; antes fosse, era meu o negócio...
— Mas é horrível!
— É a vida, meu caro. Aqui estacionam sete agentes; o assalto ao freguês vai pela vez, como aos sábados, nos barbeiros. Quatro oferecem grinaldas aos passageiros que saltam dos bondes; três aos que vêm a pé. Ao ver o bando ao longe há a frase: De cima! Que é o sinal. Do lado de lá! quando ele salta do lado oposto. Última! quando salta no Necrotério. um dos urubus acerta, grita: “Estou empregado!” E feito o negócio o outro avança, dizendo: Grinalda! para obter como resposta: A tua é minha...
Quando aparece por acaso algum freguês conhecido de um dos agenciadores dá-se o “combate”. Os três que ficaram “desempregados”, desejando “furar” o agenciador amigo, quando não conseguem convencê-lo arranjam meio de o cacetear até que o negócio não se realize. Nessa ocasião assistimos a cenas calorosas, a conflitos sérios, em que se faz sentir a intervenção da polícia. Mas à noite, graças aos deuses, acabado o trabalho, vão todos para a venda do Antônio, à Rua da Misericórdia, beber cerveja.
— São estes então? – fiz, voltando-me.
— Estes só, não. Há outros, os que fazem ponto no Largo da Batalha e rendem estes à hora do almoço e que só têm o posto depois de ter todas as notas dos tipos que estão na secretaria e tratar de enterros.
— Como os agentes de polícia?
— Tal qual. E terminam sempre com a nota policial: quarenta anos presumíveis.
Rimos ambos. O sol está brilhante e o céu, inteiramente azul, dá-nos desejos de viver e de compreender a vida pelos seus mais ridentes aspectos.
— Os urubus devem ter nome?
— Têm, são urubus urbanos. Vê o senhor aquele? É o Chico Basílio. Há cerca de 30 anos exerce a profissão. Está vendo aquele grupo? Encontra lá o Brasilino, o Caranguejo, o Bilu, o Espanhol da Saúde, o Mangonga. Os outros são o Joaquim, o Tatuí, o Paulino, o Cá e Lá, o Buriti, o Manduca.
Neste momento um mocinho de lápis e linguado de papel na mão indagou, entrando:
— Alguma coisa de novo?
— Sim, pode entrar.
O mocinho desapareceu. O complacente informante sorria.
— Outro urubu.
— Outro?
— São os que parecem repórteres. Vêm para a secretaria da Santa Casa munidos de tiras de almaço para copiar dos livros os nomes e residências das pessoas mortas, isto é, só copiam os daquelas cujo enterro custar mais de 100$. Saem daqui para o lugar indicado e ficam às portas à espera que o corpo saia, um, dois, cinco às vezes. Quando o cadáver sai e a família ainda está aos soluços, embarafustam com as amostras de luto. Contaram-me que chegam à concorrência, a ver quem faz o luto em 24 horas mais em conta. Neste serviço conheço o Ferraz, o Saul, o Guedes, o Matos, o Araújo, o Campos, o Mesquita.
Eu ouvia o meu informante um pouco melancólico. Que diabo! Por que urubus, naquele pedaço da cidade que cheira a cadáveres e a morte?
Não há terra onde prospere como nesta a flora dos sem ofício e dos parasitas que não trabalham. Esses sujeitinhos vestem bem, dormem bem, chegam a ter opiniões, sistema moral, ideias políticas. Ninguém lhes pergunta a fonte inexplicável do seu dinheiro. Aqueles pobres rapazes, lutando pela vida, naquele ambiente atroz da morte, vestindo a libré das pompas fúnebres, impingindo com um sorriso à tristeza coroas e crepes, só para ganhar honestamente a vida, eram dignos de respeito. Por que urubus? Maçonaria da má sorte, pelotão dos tristes, seres sem o conforto de uma simpatia, no limite do nada, encarregados de fornecer os símbolos de uma dor que cada vez a humanidade sente menos.
Despedi-me, comecei a andar devagar. Um dos urubus aproximou-se.
— Estiveram contando coisas a nosso respeito?
— Não, absolutamente.
— Que se há de fazer? A comissão é tão pequena! Quando quiser uma coroa...
— Deus queira que não! fiz assustado.
E apertei a mão do homem urubu com um tremor de superstição e de susto.
Fonte: João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Publicado em 1908. Disponível em Domínio Público.
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