domingo, 1 de outubro de 2023

Marques de Carvalho (Complicações psicológicas)

Velas soltas, bandeira encaixada no mastro grande, o minúsculo iate de Alfredo singrava galhardo as aguas do Guajará, em rumo do oceano.

Manhã clara, duma beleza diáfana e prazenteira. O rio tinha cintilações prateadas, fluindo numa suavidade infinita. Aqui e ali, para os lados da foz, os panos das embarcações tapuias espalmavam-se no horizonte, destacadas em vivo contraste sobre o azul esplendente do céu. Em terra, traquinando, borboletas enormes polvilhavam sobre os aningais das margens a luminosa poeira das asas pintalgadas. E toda a vida das matas levantava-se em gorjeios, grasnidos e aromas.

A bordo do Nymphéa, na diminuta coberta, acabara agora mesmo o serviço do café matinal. Xícaras disseminadas pelos bancos da amurada rescendiam ainda do alegre cheiro da infusão escaldante; e já os cigarros de ótimo Bragança fumegavam, — enquanto ao ruído da palestra juntava-se, à meia-nau, o ranger dos moitões e cabos do velame desfraldado.

De irrepreensível corte, a nave oferecia interior e externamente uma perfeição de linhas e uma limpeza completa. Nela estava a mirar-se, orgulhoso, o proprietário, ali deitado, à popa, em fina rede branca de fio de carretel. Eis a sua maior dita, viajar no pequeno iate, veleiro e gracioso. Nem a certeza dos bens pecuniários herdados anos antes, nem a sedução das valsas em que rodopiara outrora pelos salões à moda, enlaçando frágeis bustos de morenitas embriagantes, — tiveram jamais para Alfredo semelhante dom de encantamento, esta vertigem inefável, que recebia ao deslizar, à flor das ondas, caminho do Atlântico, a bordo da sua adorada miniatura de navio. Era, com efeito, um júbilo veemente e incomparável, uma sensação de liberdade, que o exaltava em deliciosos arroubos. Julgava-se então um ser à parte, um privilegiado da vida, — predestinada criatura para quem o dinheiro, longe de tornar-se elemento de desequilíbrio mental, com a alucinação das grandezas, fora apenas o meio de realizar aspirações de isolamento que o afastassem, com intervalos felizes, do convívio comum. E cada vez que assim velejava sobre a agua, na manhã triunfal, suas conversas com o mestre eram menos uma palestra coordenada, do que expansões da alma entusiasmada por estas fugas marítimas, em meio á rude gente da faina.

O mancebo sorvia em largos goles a brisa esperta do largo; e, impelindo a rede com o bico do pé de encontro ao anteparo metálico da amurada, exclamava num solilóquio enlevado:

— Voga, Nymphéa! Voga, meu iate! Além, numa enseadazinha da costa assoalhada e calma, — é o sossego infinito que nos aguarda: a ti, os beijos cadenciados das vagas; a mim, os ósculos da única mulher verdadeiramente sincera que já encontrei!

E seus olhos, percorrendo a coberta, beijavam também, com ternuras de pai, os âmbitos do iate.
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Podia-se afirmar que estava ali um homem verdadeiramente experimentado. Herdeiro único de grande fortuna, que o pai amoedara na vida comercial, em Belém, Alfredo vira-se emancipado, independente e cheio de saúde, aos 20 anos de idade.

Os primeiros tempos decorridos após a morte de seu progenitor foram para ele uma incessante peregrinação pelos mais remotos países. Sequioso de novidade, partira da terra paraense com a pasta pejada de cartas de ordens sobre bancos de além-mar e a alma transbordante da ânsia de tudo ver e fruir. A febre do açodamento juvenil espicaçava-lhe a indômita curiosidade. Viajou toda a Europa, num grande gozo de intelectual aproveitado. Passou depois ao Oriente, cujo exotismo tamanhas tentações lhe oferecera desde a adolescência; e assim percorreu estranhos países de lenda, rebuscando embalde as fantasias dos poetas nas decepções da desilusória realidade. Mas, cansado o próprio ideal, tornou à civilização do Ocidente, cujas requintadas complicações ainda mais o intrigaram, após a recente digressão às terras do paganismo.

De toda a parte, surgiam-lhe dúvidas ponderáveis, — terríveis incógnitas dos problemas sociológicos, que a sua alma, de tendências equitativas, em vão queria resolver. Onde está a justiça, na prática humana?

Esta hesitação, esta irresoluta indecisão que nada satisfazia, bem lhe dava a entender quão mesquinhas e oscilantes são as bases em que a sociedade assenta os princípios com os quais pretende reger-se. Chegou-lhe então o primeiro engulho do primeiro enfaro (tedioso): aos 25 anos!

Foi por causa desta decepção que resolvera fugir da Europa. Embarcou para o novo mundo, em direção aos Estados Unidos. A princípio, teve um deslumbramento sem par. Aquela admirável atividade das populações operárias, congregadas à voz do capital onipotente em torno às fornalhas, às bigornas, às maquinas, às retortas, — aquela atividade única chegou a dar-lhe vertigens de entusiasmo. Ali ele encontrava, enfim, o ideal da raça humana, buliçosa na incessante produção, colmeia enorme compenetrada de que a rapidez da vida não permite mais um instante de folga sem prejuízo imediato.

Contudo, um curto exame de poucos dias revelou-lhe que os mesmos vícios de origem lá campeavam também, trazidos no sangue europeu. A matéria podia agir com afinco maior; mas o espírito sofria de idênticas enfermidades, — a sede das aspirações irrealizadas, o embate dos preconceitos, a agrura das competências políticas e industriais, toda a emaranhada engrenagem das misérias de um século de egoística injustiça a arrastar e esmagar os fracos, os desprotegidos, os simples.

Abalou, por isso, terras afora. Veio à América Central, — emblema da inconstância da vida na inconstância dos seus governos e leis. Sem deter-se, ultrapassou o istmo, desceu mais ao sul, transpondo os alcantis dos Andes, e remirou as faces emaciadas na fria onda marulhosa do estreito de Magalhães. Além, nos países de idioma espanhol, aguardava-o uma surpresa dolorosa. Habituara-se a ouvir tratarem-nos de republiquetas e foram, na maioria, fortes nações progressistas que se lhe depararam. Onde pensava achar povos depauperados e cidades estacionárias, encontrou uma raça viril e ardorosa, e capitães magníficos, e belos núcleos urbanos, de feição moderna, amplamente revolvidos e reedificados sob a direção de patriotas inteligentes. E a convicção de que, mais uma vez, andara errada a balofa ignorância do chauvinismo brasileiro, trouxe-lhe aos olhos duas lágrimas sinceras e uma nova desilusão ao fundo da alma angustiada.

Foi após este derradeiro desgosto que regressou ao Brasil.
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Vogava sempre a embarcação, águas abaixo, impelida na dupla força do vento e da correnteza. Andava na claridade do espaço a hilariante alegria dos belos domingos nortistas. A natureza em torno possuía, nessa manhã, uma aparência de tranquilidade edênica, propícia às meditações de Alfredo.

Sempre estendido na rede, a balançar-se, fumando consecutivas cigarrilhas, o moço passava em revista, no caleidoscópio da alma, as peregrinações de antanho. Como essa quadra agitada sumira-se fugace! Perdia-se agora nos longos esbatidos das simples recordações da primeira juventude. Viagens; vai-vém do bulício humano em grandes centros populosos; cavalgadas pelas lezirias do Tejo e nas estepes russas; ascensões alpinas; travessias perigosas de barrancos na Pérsia e cataratas americanas, — tudo ficava atrás, sem saudades, na meia sombra dos fatos abandonados, para cuja observação o tempo lhe assinalava um sítio impessoal, de simples espectador desiludido.

Só lhe interessava agora o presente, que ele resumia no iate e em certa caboclinha, amante estremecida. Para esta última eram os seus garbos de cavalheiro e os seus mais assíduos pensamentos de namorado. De que servia o passado, se representava apenas a sombra de emoções extintas? A própria lembrança de antigos amores não tinha mais a força de desviar-lhe a atenção por longos minutos nem de arrancar-lhe um suspiro mais acentuado. E, contudo, se, noutros tempos, alguém lhe afirmasse que tal houvera de suceder, quiçá arriscasse ouvir esperta reprimenda!

Fossem lá dizer-lhe que as seduções da tapuia paraense, mimosa e ingênua, — duas vezes adorável pela graça e pela ignorância tímida, — seriam capazes de o transportar aos requintes da ventura, absorvendo-o de corpo e alma, perenemente, e purificando-o dos primitivos contatos como numa piscina miraculosa... Protestaria de certo, e com veemência. Mas a realidade era essa, entretanto...

No decorrer das viagens, claro está que o amor, — ao menos o que pensamos dever ser o amor, aos 25 anos, — ocupou-lhe boa parte dos sonhos e vigílias. O seu álbum de recordações amorosas oferecia uma admirável série complexa de perfis femininos, coleção cosmopolita, que abrangia desde a irresistível parisiense até a fascinante baiadeira, da mousmé, estranha na coloração estridente dos garridos arrebiques, á simples gentia sul-americana, melancólica e bondosa na sua passividade fatalista. E havia também flores de opostos climas, fitas, amuletos, cartas, — um delicado museu de objetos desbotados, trescalando o vago odor das coisas esquecidas.

Era tudo isto que desfilava pela mente de Alfredo, nesse mesmo instante. Aprazia-lhe, às vezes, no capricho da sua volúpia, evocar assim antigas épocas e rememorar passadas peripécias prazenteiras, para melhor fruir a atual ventura do seu grande e saboroso amor da maturidade. Nenhuma paixão fora comparável a esta, que tamanhas atenções lhe merecia. Das sensações antigas, nem o ressabio lhe ficara, ao toque do intenso afeto de hoje, tão fundo lhe invadira a alma, com a subjugação abençoada de predileta tirania. E por vezes, revolvendo papéis velhos, quedava-se interdito, quase envergonhado, ao lobrigar uma florzinha murcha ou triste cacho de cabelos descorados; interdito, por ter-lhes esquecido a procedência, envergonhado de havê-los guardado por tanto tempo, assim avaramente, quando nem o coração conservara o sentimento que os tornara valiosos, nem a memória volúvel pudera reter-lhes a lembrança.

Tudo passara, na dissolvência dos sonhos, na voragem dos anos. Ilusões patrióticas e entusiasmo pelos gozos instáveis, tragara-os o tempo, impassivelmente. Alfredo não lamentava este resultado; pelo contrário, sentia-se feliz ao verificar que o coração, liberto de antigas peias, estava apto a consagrar toda a energia afetiva ao doce culto de um só amor, espontâneo e livre, no seio olente da floresta compassiva.

Suas aspirações de reformas radicais, seus impulsos para a propaganda em prol dos ideais regeneradores da sociedade, perderam também o ardor militante de outrora. Evidentemente, a noção de uma justiça exata é o paradoxo mais estranho que a razão ilógica do homem criou num dia de sarcasmo, para o próprio engodo. Então, de nada valia esbaforir-se em santo frenesi, conclamando a necessidade da restauração dos princípios equitativos. A maldade humana predominaria para todo o sempre, irresistível, vencedora. Restava-lhe, pois, submeter-se ao embate da onda larga da convenção. E, vencido, era nos arcanos de um novo amor que ele, ao mesmo tempo incrédulo e piedoso, levado velozmente pelo minúsculo iate, na clara manhã ensolarada, ia buscar o doce bálsamo dos beijos sinceros, o supremo conforto para as tremendas desilusões que as complicações psicológicas lhe proporcionaram.

Fonte:
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907.
Disponível em Domínio Público

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