segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XX

É sabido que a feminista Simone de Beauvoir, com a obra Le deuxième sexe (O segundo sexo), escrita em 1949, já se mostrava a “nova mulher”, uma vez que silenciou o mundo para que ouvissem que essa ideia de dominação patriarcal devia ser abolida da sociedade. Além disso, o seu apelo se estendeu pela abolição do mito do “eterno feminino”, assim como ela o denominava. Assim como Beauvoir, Angela Carter também aderiu ao Movimento Feminista, e suas ideias eram bastante transparentes em suas obras. De acordo com Vivian Wyler, Carter explicava a sua adesão ao movimento desta forma:

Se o louco persiste em sua loucura, ele se torna sábio. Eu imagino que seja desta maneira que eu tenha alcançado o feminismo, ao analisar a sensação de que sempre havia algo que ficava do lado de fora do quadro, e descobrir que era uma coisa bem importante, afinal, porque todo o tempo que eu pensara que as coisas estavam indo muito bem, estava sendo considerada uma cidadã de segunda classe. (CARTER apud WYLER, 1999, p. xiii)
                     
Carter não só se desfez do tradicional início dos contos de fadas, como também relativizou o “sempre”, em “eles viveram felizes para sempre”,  comprovando o contrário, pois nem sempre os casamentos são duradouros, nem sempre se vive feliz em um único relacionamento e nem sempre a mulher tem que assumir o papel de eterna vítima em uma união, ou sofrer calada nas mãos de um algoz. De certo modo, Murat já havia questionado, não o início como Carter, mas a frase final dos contos de fadas, ainda no século XVII.

Em A Bela e a Fera, como já foi visto, Beaumont também mostrava indignação pela mulher ter que seguir um roteiro pré-estabelecido para sua vida, uma vez que esse não permitia outras escolhas à mulher, além do casamento e da maternidade. Beaumont ainda também se mostrava contrária a casamentos escolhidos e impostos pela família dos noivos, sendo que os familiares geralmente visavam o somatório de bens financeiros. Tratava-se de negócios e não de relacionamentos amorosos.

Ao longo do conto, percebe-se que a personagem de Carter em momento algum deixou transparecer ingenuidade ao narrar os momentos íntimos que teve com seu marido. De forma realista, consciente percebeu que aqueles momentos vividos, para ela não apresentavam nada de magicidade. Ironicamente, evidenciava-se a dura realidade, ou seja, o seu casamento era um negócio, onde ela era a mercadoria e o Barba-Azul, o comprador.

Além disso, o casamento, para a personagem, em O quarto de Barba-Azul, não significava amarrá-la ao monstro para sempre ou por toda vida. A autora mostra que a mulher não se atrela única e exclusivamente àquele homem específico por ter tido relacionamentos íntimos com o mesmo. Percebe-se ainda nesse conto que a personagem, herdeira de medos e culpas do passado, está soltando as suas amarras. Desse modo, a protagonista de Carter é a nova personagem que também retrata a nova mulher na esfera social, ou seja, é uma mulher autêntica, bem informada, inteligente, de personalidade forte assim como a mãe. É aquela que mostra a sua intelectualidade e é capaz de, senão conduzir na medida certa o seu sentimentalismo, saber muito bem que a excitação pode ser sentida sem estar acompanhada de amor.

E comecei a tremer como cavalo antes da corrida, ainda com uma espécie de medo, porque sentia excitação a um tempo estranha e impessoal de amor e repugnância, excitação que eu não era capaz de sufocar, por sua carne branca e pesada [...] (CARTER, 1999, p. 17)

Estava deitada sozinha na cama. E desejava-o e ele repugnava-me. (CARTER, 1999, p. 28)

                     
Já no século XVII, Julie Murat, em Le palais de la vengeance havia defendido sutilmente a ideia de que o amor com o tempo podia se esvair. Evidentemente que, para aquela época, contestar a verdade consagrada do discurso masculino não era tarefa fácil, por isso o que se pensava era escrito implicitamente.

Felizmente, os novos tempos e a coragem de escritoras do passado propiciaram que mulheres como Carter não mandassem recados e, sim, escrevessem sobre a transparência dos sentimentos femininos. Evidentemente que, ao contrário de Perrault, Carter não direcionou as suas obras ao público infantil, pois percebe-se que o erotismo explícito é mostrado constantemente em suas narrativas. Na verdade, Carter retoma a sexualidade feminina, sufocada ainda em um passado não muito distante. Tanto que a escritora descreve a sexualidade à flor da pele, em contrapartida com a decadência do amor.

[...] Senti-me tonta, como à beira do precipício; tive medo, não tanto dele, da sua presença monstruosa, pesada, como se ao nascer lhe tivessem dado o dom de uma gravidade maior que a de todos nós, presença que, mesmo quando eu me sentia mais apaixonada por ele, mesmo quando ela me oprimia sutilmente... Não, eu não tinha medo dele; mas de mim. (CARTER, 1999, p. 25-26)
De outro modo, a personagem-protagonista de Carter queria algo mais em um relacionamento, além de somente ser objeto de desejo sexual. Em O quarto do Barba-Azul, a protagonista, quando se deparou com a partida inesperada do marido, confessou (lamentando o único momento de intimidade que teve com o Barba-Azul): “E tive de me contentar com isso” (CARTER, 1999, p. 23).

Situação semelhante ocorre em A noiva do tigre, uma vez que Bela não consegue entender as atitudes da Fera, visto que ela o deseja sexualmente, no entanto, ele somente quer vê-la nua: “Julguei que a Fera tinha desejado muito pouco perto do que eu estava preparada para lhe oferecer [...]” (CARTER, 1999, p. 108).

É sabido que, em tempos precedentes, jamais se discutia quanto à vontade sexual da mulher, tanto que a virgindade era um fator essencial para que a mesma se casasse e fosse aceita pela sociedade, uma vez que a moça considerada impura era posta fora de seu lar e não mais era aceita no convívio familiar. Tanto que para homens como o Barba-Azul, ignorantes ogros, a castidade feminina era motivo de orgulho. O Barba-Azul, em Carter, comparou sua recente esposa casta às demais, que possuíam vida pública e, com isso, sentiu-se enaltecido em sua virilidade masculina em desposar uma menina nessa situação.

- A criada já deve ter trocado as roupas de cama - ele anunciou. - Não penduramos na janela os lençóis ensanguentados para que toda a Bretanha soubesse que você era virgem, porque isso já não se faz nestes tempos civilizados. Mas devo dizer que teria sido a primeira vez que em meus vários casamentos que poderia ostentar tal bandeira. (CARTER, 1999, p. 23)                     
Em O quarto do Barba-Azul, Carter desnuda a fêmea para mostrar o seu corpo e seus desejos que em nada diferem dos masculinos, como em: “Minha pele arrepiava-se quando ele me tocava” (CARTER, 1999, p. 9). Sendo assim, Carter evidencia que o corpo da mulher possui uma linguagem que deve ser ouvida, tanto que a autora desvincula o amor de sexo, ideal imposto às mulheres. Em relação a isso Vivian Wyler (1999) menciona que o conto do Barba-Azul:

[...] propõe uma mulher que escolhe o lugar certo de colocar seu desejo, que desvincula sexo de amor, que pode até aceitar o sadomasoquismo se esta for uma troca negociada entre os parceiros. No decorrer da década de 8O, Carter seria apelidada de “sacerdotisa da pornografia pós-graduada”. (WYLER, 1999, p. xv)
Angela Carter mostra que hoje a virgindade não é considerada tema em voga para a figura feminina, visto que a mulher se desfez dos espartilhos e de vestimentas físicas e morais que a amordaçam e a escondam dos conturbados olhos masculinos.

Em O quarto do Barba-Azul, a escritora criou um personagem cego, o afinador de pianos e, com isso, comprovou aquele antigo ditado popular “cego é aquele que não quer ver”, uma vez que esse personagem enxergou além do que os olhos humanos são capazes de ver, ou seja, ele desvendou o mistério de Barba-Azul com o auxílio da personagem-protagonista.

Possivelmente, a partir dessa situação, enxergar o que os olhos não veem, a escritora quisesse mostrar aos leitores que as características humanas, não somente as femininas, são inatas, uma vez que, por um determinado tempo, essas podem ser escondidas, abafadas, mas, em um certo momento, o inevitável acontece, elas afloram, é uma situação normal à natureza humana. Por exemplo, em contos precedentes, as mães das heroínas assumiam posturas submissas. Enquanto em Branca de neve se tem uma mãe pensativa quanto à cor de cabelo e de pele de seu futuro bebê, em Bela adormecida e Cinderela a figura materna se fez ausente, em O quarto do Barba-Azul, de Carter, a figura materna foi descrita em um cenário digno de filme de faroeste, ou seja, ela vinha cortando os ventos, montada em um cavalo, com a saia erguida até a cintura e trazendo consigo uma pistola. A mãe, neste conto, é uma heroína, que chega velozmente tal qual uma fera para proteger sua amada cria, matando o agressor da mesma. No entanto, a valentia dessa mulher não tomou forma somente neste momento, segundo sua filha, a coragem já há muito acompanhava sua mãe:

Ao completar 18 anos, minha mãe abatera um tigre que estava devorando um homem e que tinha atacado as aldeias montesinas a norte de Hanói. Agora, sem hesitar um momento, levantou a pistola de meu pai, apontando-a e disparou uma única e impecável bala, que atravessou a cabeça de meu marido. (CARTER, 1999, p. 58)                     
Percebe-se que Carter, além de narrar a cena da chegada da mãe da protagonista de forma bem humorada, deseja algo mais, ou seja, as palavras da autora ditam novas ideias que se configuram em atitudes revolucionárias, impressionantes. Na verdade, essa cena recompõe outra cena, a tradicional dos contos de fadas, em que o príncipe chega, montado em seu cavalo, para salvar a princesa.

Além disso, a mãe não era uma personagem ingênua que veio salvar a filha, auxiliada por uma fada madrinha. Nada disso aconteceu, a mãe, mulher decidida, forte e inteligente, trouxe consigo um revólver e, pelo jeito, sabia muito bem usá-lo. E o homem rendeu-se diante do poder desta mulher.

Ironicamente este personagem reconstrói a nova imagem feminina que não inutiliza o velho. A imagem já bem conhecida de que a mulher é mãe e zelosa pelo seu filho permanece, mas a partir daí se propõe uma figura recém-criada, saída do forno, que extrapola os limites impostos para a figura feminina, uma vez que ela se mostra aguerrida, corajosa e dotada de um sentido a mais em relação aos homens, a sensibilidade,    caracterizando a mulher, hoje e sempre. Somando-se a isso, a autora brinca, ironiza com a imagem masculina consagrada em contos passados, ou seja, a mãe resolve o caso com as suas próprias mãos, enquanto o homem que a acompanhou durante o trajeto até o castelo só era um mero espectador, um adorno imóvel que nada acresceu à situação.

continua...

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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