sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa -2 -


ANTÔNIO FERREIRA
Lisboa, 1528 – 1569

Se erra minh'alma...


Se erra minh’alma, em contemplar-vos tanto,
e estes meus olhos tristes, em vos ver,
se erra meu amor grande, em não querer
crer que outra coisa há aí de mor espanto;

se erra meu espírito, em levantar seu canto
em vós, e em vosso nome só escrever,
se erra minha vida, em assi viver
por vós continuamente em dor, e pranto;

se erra minha esperança, em se enganar
já tantas vezes, e assi enganada
tornar-se a seus enganos conhecidos;

se erra meu bom desejo, em confiar
que algu’hora serão meus males cridos,
vós em meus erros só sereis culpada.
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ESTÊVÃO RODRIGUES DE CASTRO
Lisboa, 1559 – 1638, Florença/Itália

Ausente, pensativo, solitário


Ausente, pensativo, solitário,
como se vos tivera ali presente,
dou e tomo as razões ousadamente
firme em amor, em pensamentos vário.

Quando venho ante vós com temerário
fervor renovo n’alma juntamente
quantos cuidados tive estando ausente,
que tudo em tal aperto é necessário.

Uns aos outros se impedem na saída
e querem cometer e não se abalam,
e vou para falar e fico mudo.

Porém, meus olhos, minha cor perdida,
meu pasmo, meu silêncio, por mim falam,
e não dizendo nada, digo tudo.
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FERNÃO ÁLVARES DO ORIENTE
Goa, 1540 – 1600?, ?????

Armada de aspereza minha estrela


Armada de aspereza minha estrela
a nova dor me leva e me encaminha;
mas se uma glória vi perder-se asinha,
foi por quem a perdi, glória perdê-la.

Sucede nova dor, nova querela
à liberdade que gozado tinha:
não sei remédio dar à mágoa minha;
e quem lho pode dar não sabe dela.

Que alívio logo em meu tormento espero,
se a que mo censura na alma, não o sente?
Senão se o vê nos olhos com que o vejo.

Porém, ah, doce amor, eu antes quero
passar convosco a vida descontente,
que contente viver sem meu desejo.
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LUÍS DE CAMÕES
Lisboa, 1524 – 1580

Alma minha gentil que te partiste


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no céu eternamente
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
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SÁ DE MIRANDA
Coimbra, 1481 – 1558, Amaraes

Quando eu, senhora...


Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma em si
e vou tresvariando, como em sonho.

Isto passado, quando me disponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m’espanto às vezes, outras m’avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
quando me era mister tant’outr’ajuda
de que me valerei se alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.

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