domingo, 11 de dezembro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Velhice)


LONGE, BEM LONGE, tinha se perdido tudo. Tudo mesmo. Veio, então, um vento forte e irritadiço, ofensivo e severo devastando as plantações. E não só elas. Tudo o que encontrava pela frente. A certo momento, fez as águas calmas e tranquilas do arroio se encresparem e até tremerem de frio. Era imensa a fúria do deus natureza, oculto atrás de uma daquelas muitas rochas esquecidas na vastidão verde da paisagem intocável. Os pássaros, em bandos, bem como outros animais, se retiravam. Fugiam, apavorados, desembestados, porque sabiam que em breve... em breve, uma tempestade medonha e incontrolável viria lavar toda a Terra e, de roldão, afugentaria o mavioso aprazente daquele paraíso multicolorido.

A tristeza contagiante da noite também se aproximava numa lerdeza enervante e debilitada. O pouco, bem pouco, que restava do sol, lá no alto, bem afastado, apenas se dava para distinguir uma pequena bola anêmica. Um tantinho assim, ofuscado que muito ligeiramente suportava aquecer a ternura de sua própria imensidão. Simples espectador, sentado embaixo de uma mangueira centenária, tendo em derredor uma vasta coxilha  de outeiros ásperos, eu via naquilo tudo, vislumbrava, na verdade, muito além, quase acolá, uma paisagem perfeita, como se desenhado por uma pintora de traços leves, tendo nas mãos um pincel inteiramente mágico. Ideal mesmo. Mas Ideal exatamente para quê?  

A resposta se fazia simples, tosca, bucólica, quase ingênua, bem sabia. De pronto, pesquei no ar a oportunidade exata e na medida certa, para abrir o coração descalço e chorar junto com a natureza ao meu redor, os sofrimentos de uma alma contaminada pelos dedos negros e longos da solidão. A minha alma, para ser mais preciso. De repente, num ímpeto meio que tomado por uma postura ensaiada, me pus de pé. Juntando as forças, corri ao sabor do barulho vindo de um manancial de águas cristalinas que se agigantava passos à frente, desembocando, por sua vez, num riacho enorme. Olhei sobressaltado para seu leito claro. Nesse momento, fitei meu rosto naquele espelho caminhante. Foi nessa hora, exatamente nesse minuto, que um espanto alongado veio interromper a misteriosa quietude do meu silêncio interior.

Por tudo quanto se fazia esquisito e pudesse parecer estranho e não condizente com a verdade! Não, não poderia ser meu, aquela fisionomia tremulante, refletida no fundo branco e intemerato do remanso. Não poderia ser “meu”, não poderia ser “eu!”. Impossível! Numa atitude nervosa, perturbada, drástica, alisei meu semblante. Senti, então, a aspereza das rugas nele formadas. Os olhos, tomados pela surpresa esbugalhada, exclamaram alguma coisa indistinta, babélica, que de pronto, não consegui ouvir nitidamente. Mas era eu. Quanto a isso, não havia a menor dúvida. Não tinha, de nenhuma forma, como fugir ou debandar, me ocultando daquela realidade gritante que entrementes apareceu e me sufocou o peito.

De fato, sem tirar nem por, “eu”. Em carne e osso. Mais osso que carne. Ali estavam meus farrapos e andrajos, molambos e vestimentas, cicatrizes velhas e rotas de frente para meu espanto assombroso, numa contemplação crescente, avultada, centuplicada e doente. Eu, comigo mesmo, sozinho no meio do nada, de boca aberta feito um débil mental, espiando, atônito e apalermado para uma moldura de feições agourentas e inauditas sufocando, num só tom, objetivando arrancar, num safanão tipo o nó górdio, o que estivesse preso e atravancando os fundilhos da garganta. Tinha que admitir os fatos. Não fugir deles. Me ausentando, tangenteando (*), em retrocesso, bem sabia, estaria me escondendo de mim e seria mais uma estupidez sem precedentes naquelas circunstâncias tentar tapar o sol com a peneira.

Ali estava, portanto, “meu todo” vencido, acanhado e achatado, abatido e indigesto. Um calhau (*) feio e desprotegido. Afinal, coadjuvado pelo peso dos anos de sofrimentos, o tempo inexorável me fez curvar, cansado e flagelado, diante das evidencias inevitáveis. Havia, pois, me transformado num velho aleijão. Não, mais que isso. Em resumo, um ancião, um senhorzinho em adiantado estado de decadência, os medos aflorando, a fuça perdida em algum lugar do passado. Completando a presença do lúgubre, os cabelos poucos e ralos, uma timidez medonha castigando a pele, os refolhos (*) tomando formas, delineando figuras diabólicas numa tez carcomida pelo fracasso. Com certeza, mesmo uma operação de lapidagem nessa altura do campeonato, não me faria alcançar as glórias dos cimos.

Daquele rapaz de tempos idos, apenas incisões restaram. Da mocidade distante, do diamante bem talhado, somente as marcas perpetuadas como lembranças vivas de uma criatura sem passado. Mesmo trilhar, sem história, cheio de altos e baixos, um vovozinho obstruído por visões dantescas e resquícios de horas imorredouras que não voltariam mais. A força motriz da juventude "outroral", não passava de quimeras. Do amor, pedaços, do coração no peito, bem, do coração, no peito, só um músculo atenuado, ofegante... à porta de desmoronar deslustrado e sem expressão, num cárcere como um aborto aprisionado e desfalcado da criação.

Diante desse quadro neurastemicamente esquizofrênico e letal, me vejo como o maledicente que carrega consigo as infortunidades, de se colocar no mesmo patamar dos vermes peçonhentos que se alimentam com os detritos e excrementos do mundo. Em razão dessa fase, e do pano de fundo que se me apresenta, o que me mantém vivo, na verdade, é somente um fato politicamente correto: a certeza absoluta de um dia, ou (quem sabe, daqui a pouco, no passo seguinte), vagar livre, leve e solto por estradas e sendas num viajar etéreo, sem volta e sem fim.

Desembestar, pois, ao sabor do vento, é o que me resta, por essas trilhas. Atabalhoadamente caindo aqui e adiante me levantando por entre bosques e florestas nunca pisados. Molhar os pés em outros tantos rios caudalosos, subir (ou pelo menos tentar) alcançar o cume de árvores cansadas pelo peso dos galhos e, num último suspiro, vagar por planetas de sonhos, como um anjo desgarrado da falange celestial. Nessa curva próxima do final, meu Deus, nessa esquina dos anos percorridos, longinquamente afastado das alegrias efêmeras que correm torcicoladas à minha jornada, num ainda doce florilégio que me inebria, senão mesmo apaixona, embora exaltado e melancólico, enfadado e macambúzio, é só o que me resta fazer. Aliás, grosso modo, é só o que me outorgo a fazer. Afora isso... afora isso, NADA MAIS.
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* Notas:
Calhau – Um pedaço de qualquer coisa inútil ou sem valor.
Refolhos – Rugas e vincos que se formam na pele.
Tangenteando – Sair de algum lugar sem ser notado, meio às escondidas.


Fonte:
Texto e notas enviados pelo autor.

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