O APARTAMENTO DEFRONTE AO QUE TERREMOTO reside possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampa cinza e, no meio, um buraquinho redondo, com duas pernas de fios soltas. Quando chega alguém à cata do morador (que nunca ninguém viu, nem mais gordo, nem mais magro, nem mesmo Terremoto), existe abaixo do olho mágico uma caixinha dessas modernas, ou melhor, a campainha de verdade, para que seja comprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que há gente a sua espera do lado de fora.
Sempre que surge uma pessoa no corredor, Terremoto logo fica sabendo, não porque bisbilhote o tempo todo mas, simplesmente, porque o alarme sonoro do subir e descer do elevador disparava um“plim” e, corroborando com a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas da velha porta da engenhoca começam a ranger desesperadamente.
Nessas ocasiões, Terremoto aproveita para espiar pelo olho mágico e ver quem é a visita que anda em busca do vizinho fantasma. Curiosidade de quem já trabalhou muito na vida, se aposentou com um bom salário por mês e não tem, realmente, o que fazer, além de dormir e não fazer nada. Contudo, um excelente exercício para matar o tempo ocioso, vez que se depara com as situações mais engraçadas e inusitadas possíveis.
Dias atrás, uma moça com os cabelos vermelhos elegantemente vestida, procurava pela campainha. Como todos os demais, ela não viu diante de si a caixinha, abaixo do olho mágico e, por essa razão, começou a futucar aqui e ali, na esperança de enfiar um dos dedos no orifício da tampa cinza e juntar os fios. Os dedos não ajudaram em nada. Talvez fossem as unhas compridas ou os anéis que atrapalhassem. Quem sabe nem uma coisa nem outra. Em seguida, ela introduziu o polegar e o indicador com o objetivo de, a qualquer custo, fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Um faniquito repentino a fez sair furiosa, cuspindo marimbondos.
Não foi diferente com um cidadão baixinho, de chapéu na cabeça e uma bolsa dessas 007. Possivelmente cobrador. O infeliz chegou ao cúmulo de, a certa altura das frustradas tentativas, meter o nariz no olho mágico, objetivando ver se enxergava alguma coisa no interior do apartamento. Também teve problemas com os fios. Quase certo que pelo ar desagradável que se fechou em seu rosto, tomou uma tremenda descarga. Desistiu, pois, da empreitada. Resmungando, deu meia volta e desapareceu.
Terremoto chegou à conclusão de que as pessoas, de um modo geral, são levadas e expostas ao ridículo por pura comodidade. Ninguém para por alguns instantes com a intenção de analisar o que está posto e visível diante do óbvio. Pensar numa solução simples que desencadeie algum resultado prático. Às vezes, uma insignificância de solução clara está logo ali, atropelando, mas a pressa e o nervosismo juntos, de mãos dadas com a velha burrice botam tudo a perder.
O cômico na história do vizinho extravagante se resumia num só objetivo. Quem quer que pintasse no pedaço, se via logo às voltas com os fios da campainha. Talvez, no fundo, fosse essa a verdadeira intenção do engraçadinho. Dar choque nos chatos que não desistiam de vir até sua residência perturbar o sossego. Com certeza, o canastrão deveria rir um bocado e se divertir às expensas dos apalermados. De qualquer forma, deixava claro que não queria, decididamente, ser incomodado por ninguém. Pairava no ar uma dúvida cruel. E essa dúvida deixava Terremoto com a pulga atrás da orelha. Por que o cidadão divulgava aquele endereço, se não queria ser encontrado nele? E se espalhava com qual objetivo? Fazer pouco caso? Tirar sarro? Zombar dos seus semelhantes? Mais cômodo seria indicar um local público, um shopping, ou marcar um barzinho.
Perto dali havia um café expresso espetacular, com garçonetes lindas de serem vistas. Tudo bem que as pessoas devam preservar a sua individualidade, resguardar a sua privacidade com unhas e dentes. Com fios desencapados, certamente, o cúmulo do absurdo. As duas pernas de fios soltas da suposta campainha, de certa forma, instigavam a atenção dos que acampavam diante da entrada, fossem quais fossem os motivos que os levassem a estar ali. Pelo sim, pelo não, os que se aventuravam, esqueciam de atentar para um detalhe insignificante, qual seja, fazer soar o botãozinho politicamente correto, e à vista de um cego, logo abaixo do tal olho mágico.
Terremoto percebeu, nessas olhadelas, que cada ser humano reagia de uma maneira diferente. Uns xingavam, outros faziam caretas, alguns chutavam as paredes. A maioria olhava para os lados, desconfiada. Teve um visitante que se deu ao trabalho de encarar o olho mágico de Terremoto. Não se sabe com qual finalidade. Levou um baita susto. Ficou evidente que se descobrira com a boca na botija. As mulheres eram as mais interessantes de serem reparadas: puxavam a calcinha, penteavam os cabelos, retocavam a maquiagem do rosto, refaziam o batom dos lábios.
Os homens, como sempre, menos exigentes com a aparência, limitavam-se a corrigir o nó da gravata, dar uma ajeitadinha nos óculos, e uma batidinha discreta no paletó, para afastar algum cisco por ventura deixado como vento. Pensavam em tudo, esses ilustres visitantes, mas esqueciam do mais trivial: Premir com o indicador o botãozinho da segunda campainha, logo abaixo do olho mágico ou, por outra, de bater suavemente, com os nós dos dedos, produzindo um leve toc, toc, toc, no sisudo e silencioso portal do esquisito morador.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. A outra perna do saci. SP: Ed. Sucesso, 2009.
Livro enviado pelo autor.
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