quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Hans Christian Andersen (O pé do cardo)


Diante de um rico castelo senhorial estendia-se um belo jardim, bem tratado, cheio de árvores e de flores raras. As pessoas que iam visitar o proprietário exprimiam a sua admiração diante daqueles espécimes trazidos de países longínquos, e daqueles canteiros dispostos com tanta arte; e via-se facilmente que esses cumprimentos não eram simples fórmulas de polidez. As pessoas dos arredores, habitantes dos burgos e das aldeias vizinhas, iam aos domingos pedir permissão para passear naquelas magníficas alamedas. Quando as crianças das escolas se portavam bem, levavam-nas lá para lhes recompensar a aplicação.

Junto ao jardim, mas do lado de fora, ao pé da sebe que o cercava, havia um grande e vigoroso pé de cardo; sua raiz vivaz estendia rebentos para todos os lados, e ele sozinho formava uma moita. Ninguém, entretanto, lhe dava a menor atenção, a não ser o velho burrinho que arrastava o carrinho da leiteira. Ela costumava amarrá-lo às vezes perto da moita, e o animal esticava o pescoço para o cardo o mais que podia, dizendo-lhe:

- Que lindo estás! Mesmo a ponto de ser trincado!

Mas o cabresto era muito curto, e o burrico não podia chegar até lá.

Um dia reuniu-se no castelo numerosa sociedade. Eram pessoas finas, a maior parte provinda da capital; e entre elas havia muitas moças lindas.

Uma, mais linda de todas veio de longe. Nasceu na Escócia, descende de alta nobreza e possuía vastos domínios. Um rico partido. E os moços dizem, e as mães dos moços dizem também:

- Feliz do que for seu noivo!

Toda aquela mocidade se lança aos jogos sobre os gramados. Depois os grupos dos países no Norte, cada moça colhe uma flor e coloca-a na botoeira de um dos moços. A estrangeira leva muito tempo para escolher a sua flor: parece que não encontra nenhuma do seu gosto. Mas eis que seu olhar cai sobre a sebe, além da qual está a moita de cardo, com suas flores vermelhas e azuis.

Sorri e pede ao filho da casa que vá colher uma daquelas flores para ela.

- É a flor do meu país - explica a moça. - Figura nas armas da Escócia. Quer ir buscá-la para mim?

Apressa-se o moço em ir colher a mais bela - e não se viu quite sem se picar nos espinhos. A jovem escocesa põe-lhe na botoeira a flor vulgar, e ele se sente particularmente lisonjeado. Todos os outros moços teriam de boa vontade trocado suas flores raras por aquela, oferecida pela mão da bela estrangeira.

Se isso enchia de orgulho o filho da casa, que dizer então do cardo? Já não era só alegria o que sentia; era uma satisfação, um bem, como quando os raios do sol, depois de uma boa orvalhada, vinham reaquecê-lo.

- Sou pois alguma coisa bem mais importante do que pareço! - dizia consigo. - Sempre o desconfiei mesmo. A bem dizer, eu devia estar lá dentro da sebe e não cá fora. Mas é que neste mundo a gente nem sempre se acha no seu verdadeiro lugar. Pois sim: mas ao menos lá dentro está uma das muitas filhas, que transpôs a cerca, e até se pavoneia na botoeira de um belo cavalheiro.

E ele contava esse caso a todos os brotos que se desenvolveram sobre seu trono fértil, a todos os gominhos que lhe surgiram nos galhos.

Poucos dias depois soube, não pelas palavras dos que passavam, não pelos gorjeios dos passarinhos, mas por esses mil ecos que espalham por toda a parte o que se diz no interior dos apartamentos, quando deixamos abertas as janelas  ele soube, dizíamos, que o moço que fora adornado com a flor do cardo pela bela escocesa, obtivera também seu coração.

- E eu é que os uni! Eu é que fiz esse casamento!- gritava o cardo.

E agora, mais do que nunca, contava o memorável acontecimento a todas as flores novas que lhe cobriam os ramos.

- Agora certamente me transplantarão para o jardim - dizia ele ainda. - Bem que o mereci! Quem sabe até se não me vão meter em um vaso precioso, onde minhas raízes terão uma terra bem adubada...Parece que é essa a maior honra a que pode aspirar uma planta.

No dia seguinte estava já tão convencido de que as provas de distinção lhe choveriam em cima, que garantiu à menor de suas florzinhas que não tardariam em recolhê-las a todas e dispô-las em um vaso de faiança, e que ela própria havia de ornar a botoeira de um príncipe - a mais rara fortuna com que poderia sonhar uma flor de cardo.

Mas... essas altas esperanças não se realizaram; vaso de faiança... pois sim! Nem sequer de terracota. Também não saiu mais nenhuma flor daquela moita para florir botoeira alguma. Continuaram as flores a respirar o ar e a luz, a beber os raios do sol e as gotas de orvalho. E não receberam outra visita senão a das abelhas e dos besouros que lhes sugavam o mel.

- Ladrões! Salteadores! - gritava o cardo, indignado - Ah! Se eu pudesse espetá-los a todos com meus espinhos! Como ousam vocês roubar assim o perfume destas flores, destinadas a ornar o botoeira dos namorados?

Mas por mais que falasse, não se modificava a situação. As flores acabaram por curvar a cabecinha. Empalideceram, fanaram-se; mas iam sempre brotando outras novas. E a cada flor nova que nascia dizia o pai, com uma confiança inalterável:

- Chegas mesmo como o bacalhau na quaresma. Não podias vir mais a propósito! Espero a todo o instante passar para o outro lado da sebe.

Algumas margaridas inocentes e uma humilde bonina que ficavam ali perto ouviram essas palavras e acreditavam  nelas, com a maior candura. E daí em diante passaram a testemunhar grande admiração ao cardo que, em troca, as desprezava profundamente.

O velho asno, mais ou menos cético por natureza, não confiava tão cegamente no que o cardo proclamava com tanta segurança. todavia, para se precaver contra qualquer eventualidade, fez novos esforços para apanhar a apreciada planta, antes que ela fosse transplantada para  lugar inacessível. Mas puxava em vão o cabresto: era curto demais, e ele não conseguia parti-lo.

De tanto pensar o cardo glorioso que figura nas armas da Escócia, persuadiu-se afinal o outro de que era da sua descendência; que tinha seus antepassados naquela família ilustre, e que provinha de algum rebento vindo da Escócia em tempos remotos. Eram pensamentos esses bastante exagerados, mas as grandes ideias iam bem em um cardo tão grande que formava por si só uma moita.

A vizinha urtiga aprovava-o inteiramente:

- Muitas pessoas são de alto nascimento sem o saber; é coisa que se vê todo o dia. Pois eu, por exemplo, estou convencida de que não sou uma planta vulgar. Não forneço a mais fina musselina, a que serve para vestir as rainhas?

Passou o verão, passou depois o outono. As árvores despiram-se de sua folhagem. As flores vão tomando tons mais carregados, e já tem menos perfume. Enquanto isso o jardineiro, que recolhe as hastes, canta com toda a força dos pulmões:

Rio acima, rio abaixo,
Desce e sobe na corrente;
Assim subindo e descendo
Vai indo a vida da gente!


Os pinheirinhos novos do mato voltam a pensar no Natal, naquele belo dia em que se veem enfeitados de laços de fita, de bombos e velinhas de cor. Aspiram a esse destino brilhante sabendo, embora que o pagarão com a vida. E o cardo dizia:

- Como! Ainda estou aqui, e há oito dias que se celebrou o casamento! Contudo, fui eu que o fiz, esse casamento! E parece que ninguém lá se lembra de mim... é como se eu nem existisse! Deixam-me aqui para brotar de novo. Mas eu sou muito orgulho; não dou um só passo para aqueles ingratos! É verdade que não posso nem mexer-me... Só o que me resta é ter paciência, paciência ainda.

Passaram-se algumas semanas. Lá estava o cardo, com a sua única e derradeira flor; era uma flor grande e viçosa: parecia até uma flor de alcachofra. Brotara junto da raiz, e era uma flor robusta. Mas começou o vento frio a castigá-la; desapareceram as cores tão vivas. E elas ficou feito um sol prateado.

Um dia, o casal novo - pois eram agora marido e mulher - foi passear no jardim. Aproximaram-se os dois da sebe, e a bela escocesa olhou por cima, para o campo, e disse:

- Olha! Lá está ainda aquele cardo. Que pena! Não tem mais flores!

- Sim, sim: lá está ainda uma . ou pelo menos o espectro dela - disse o moço, mostrando o cálice já ressequido e esbranquiçado.

- Pois olha, é muito bonita assim – replicou. - Vamos apanhá-la, para mandar reproduzi-la no quadro do nosso retrato?

E o moço teve de ir colher a flor fanada. Esta não deixou de picá-lo fortemente; não a chamara de espectro? Mas ele não se incomodou por isso: sua jovem esposa estava contente!

Ela levou a flor para o salão. Lá estava uma tela com o retrato dos dois esposos: o marido tinha uma flor de cardo na botoeira. Falaram muito naquela flor e também na outra, a última , que brilhava como prata e que ia ser esculpida na moldura.

O ar levou longe tudo quanto disseram.

- Eis o que é a vida! - disse o cardo. - Minha filha mais velha achou lugar em um botoeira, e meu último rebento foi posto em um quadro dourado. E eu - onde me meterão?

O burro estava amarrado ali perto, e deitou-lhe um olhar de esguelha, dizendo:

- Se queres ficar bem acomodado, muito bem acomodado mesmo, ao abrigo do frio, vem para dentro do meu estômago, minha joia! Aproxima-te, que eu não te alcanço: esta maldita soga (corda de esparto) é muito curta.

Nada respondeu o cardo a essas grosseiras, propostas. Foi ficando cada vez mais sonhador, e, de tanto virar e revirar seus pensamentos na cabeça, lá por volta do Natal chegou a esta nobre conclusão - muito acima, certamente, da sua baixa origem:

- Ora, contanto que meus filhos se achem bem colocados, eu, seu pai, posso resignar-me a ficar fora da sebe, neste lugar mesmo onde nasci!

– É um pensamento que te honra muito, sem dúvida. - disse o último raio de sol. - E não ficarás esquecido, acredita!

- Alguém vai por-me em um vaso? Ou irei para algum quadro?

- Nem uma coisa nem outra - segredou o raio de sol, antes de se eclipsar. - Vais ser posto em um conto!

Fonte:
Contos da Tita

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