quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Ribeiro Couto (Clube das esposas enganadas)

Parti para Petrópolis naquela manhã mesmo. Agora, todos os perigos ficavam para trás, na planície. Perto da Raiz da Serra, quando os primeiros lírios me enviaram aromas, apoderou-se de mim um desejo imenso de saber a fundo o Direito Marítimo, a História Diplomática, o Internacional Privado. A natureza agia por contrastes: em vez de um completo abandono do meu ser ao gosto físico de respirar, eu experimentava uma vontade intensa de conhecer pelo miúdo o Tratado de Tordesilhas - e parecia-me sentir, transfigurado pela paisagem, o cheiro de papel velho dos meus volumes de ciências. O trem galgava as ladeiras. O ar balsâmico do mato infiltrava-me a consciência perfeita de uma libertação. Acompanhando a estrada, arvoredos silvestres davam na janela tapas afetuosos, com ramos longos, debruçados. Era a natureza que me enviava mensagens. Lá em cima, na cidade silenciosa (maio inaugurava a estação morta) a existência nova começaria - a paz fecunda dos estudos, a tranquilidade do quarto cheio de sol e, pela noite adiante, a boa lâmpada em vigília.

Instalei num quarto do Hotel Max Meyer um pequeno quadro-negro que levara, os mapas murais e os livros. Dali agora ninguém me arrancava, a não ser o próprio Ministro das Relações Exteriores no dia das provas escritas, quando os jornais publicassem a chamada.

Como ficaria tia Clarice, ao saber da defecção? Furiosa, naturalmente. Caprichei na longa carta que lhe escrevi. Argumentei com a verdade abundante. Entre os motivos que me assistiam estava aquela irritante indagação dos amigos, quando  agora os encontrava. "Então, Clarimundo, como vai o clube?" Outros me batiam nas costas: "Seu felizardo, então essas esposas enganadas?"

Não era possível continuar no Rio enquanto durasse aquela brincadeira. Era preciso riscar o meu nome da fachada do clube invisível. Depois, as funções de secretário, que a princípio eu julgara leves, eram trabalhosíssimas, a julgar pelas primeiras cinqunta e tantas cartas. Só a correspondência me tomaria o tempo inteiro. Assim, como o concurso se aproximava, só em Petrópolis eu poderia - em criatura de memória infiel - ter sossego para recapitular certos pontos de direito, de história, de geografia, de línguas, particularmente ingratos à minha retentiva caprichosa.

Terminava oferecendo-lhe a chave do apartamento, que deixara com Lúcia, e acrescentava:

"Espero, minha boa tia, que a senhora disporá com franqueza de todo o espaço e de todo o mobiliário. A casa é sua. Entre os meus livros, há alguns que podem interessar à biblioteca futura do clube. Permito-me desde já assinalar a Fisiologia  do casamento de Balzac."

Tia Clarice telegrafou: "Ingrato desnaturado exijo explicação insinuações Fisiologia Casamento."

Ora essa, o livro devia ser útil ao clube. Mandei-lhe então uma enorme cesta de hortênsias.

Desta vez ela tornou mansa, com um simples cartão, mas surpreendente: "Trânsfuga! Os jornais falam cada vez mais em você."

Era verdade. Tendo publicado a segunda notícia, que tia Clarice lhes enviara pelo correio, os cronistas insistiam nas referências ao meu nome. Dava para desesperar.

Tomei a resolução de não ler mais jornais. O trabalho absorveu-me. Só uma recordação vinha perturbá-lo à noite, na hora avançada (por vezes alta madrugada) em que eu me enfiava dentro dos lençóis gelados...

Sem dúvida, podia considerar-me um sujeito invejável. Deliciosa Lúcia... A modéstia, entretanto, me aconselhava a não dar importância àqueles caprichos de uma noite.

Não era de crer que Lúcia tivesse por mim um sentimento durável. Fora tudo, como no verso de Bilac, resultado da ... cumplicidade Da sombra, do silêncio, do perfume...

O cavalheirismo consistia em não lhe escrever, em não lhe dar notícias minhas. O contrário pareceria presunção de quem se inculca. Quando viesse a encontrá-la de novo no Rio, exageraria minha frieza, requintaria na polidez superficial.

No entanto, ela pediria a tia Clarice o meu endereço. E uma tarde ouvi pelo telefone uma doce voz que me chamava de malcriado, de mufle, de monstro... Essa voz tornou nítida e tentadora na minha imaginação a imagem adorável.

- Não é possível explicar coisa alguma pelo telefone...

- Então desça ao Rio. Desça hoje.

- Não é possível! - gemi.

- Bom, nesse caso, vou eu...

Meu coração bateu deliciado. Lúcia, ali no Max Meyer, sozinha comigo, na noite fria de maio, exalando "Cesoirou jamais"... Súbito, uma covardia de complicações me invadiu. O major ia chegar de um momento para outro, descobrir, fazer um escândalo... Adeus, concurso! Não poderia apresentar-me ao concurso coberto de escândalo.

- Pelo último trem. Adeus.

-Alô? Ouça...

- Pelo último trem. Adeus.

Chirriou um beijo garoto e desligou. Já no resto daquele dia não pude trabalhar. Meu desejo era ir por ali, pelas ruas ermas, sob as árvores, absorvendo no ar úmido o contentamento de viver. Da janela, eu olhava com ternura o casario da cidade.

Os vilinos estavam fechados. Nos jardins abandonados havia hortências empalidecidas e rosas que se despetalavam. Ao sol brusco, seria bom ir à toa, com Lúcia pelo braço, fazendo projetos, dizendo tolices meigas, até que a noite nos encontrasse perdidos pelos caminhos da Westfalia ou da Cascatinha.

Em todo caso, ela viria - viria quando fosse tarde, pela noite adentro, e quando uma fria neblina envolvesse o sono da cidade, com os lampiões amortecendo nas esquinas, as águas do Piabanha correndo geladas entre os barrancos.

"Da natureza jurídica do navio. Sua individualização: nome, capacidade, domicílio e nacionalidade." Era odioso, o Direito Marítimo. Desci ao bar do hotel para ouvir gramofone e preparar a alma com um tango argentino.

À noite, pelo último trem como dissera, Lúcia irrompeu na plataforma da estação, descendo ágil do carro ainda em movimento, espalhando no ar "Ce soir ou jamais". Foi-me estendendo a boca e dizendo:

- Cínico!

Voltou ao Rio no dia seguinte muito cedo.

Tonto de êxtases prolongados, vaguei por Petrópolis, achando um acordo inefável entre a minha euforia e aquela bruma insinuante, que convida aos sentimentos delicados. Era amor que eu sentia? Qualquer coisa de inquietante, sim... O princípio da paixão... Ou era apenas a alegria do episódio? Não, devia ser amor, o grande e esperado amor...

Por trás dos morros, a claridade do sol ia-se tornando mais nítida, a bruma começava a esgarçar-se. Dentro de mim parecia haver também claridades nascentes. Até então eu supunha que o amor, o grande amor que aparece nos romances e nas lendas, só se alimentava de impossibilidades - pertencia ao nobre domínio da imaginação.

Parecia-me absurdo que ele sobreviesse à força dos sentidos, revelação nova. Todas as minhas noções, até aquela data, se resumiam, mesquinhas e fáceis, no verso mesureiro da "Ceia dos Cardeais":

A conquista era tudo, a posse quase nada.

Estava perplexo. Seria verdadeiramente o amor? Nesse caso, ele nascia depois... O que eu poderia chamar a conquista provocava-me um sentimento de pesar. Teria desejado que Lúcia fosse minha sem que eu mesmo percebesse como, por um milagre do qual não guardasse memória; que a nossa vida epidérmica tivesse começado na noite dos tempos, com o aparecer sobre a terra das primeiras flores, das primeiras vozes.

Por outro lado, o que o cardeal chamava a posse não era quase nada, era tudo. A forma ideal e definitiva da existência eram aquelas horas que eu vivera, primeiro na Rua Silva Manuel, depois no sobradinho do Max Meyer, momentos antes, quando a vida universal morrera para além de quatro paredes de um quarto - coberto de mapas dos cinco continentes inúteis.

Fonte:
Ribeiro Couto. Clube das esposas enganadas. Publicado em 1933.

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