sábado, 27 de novembro de 2021

Rita Marciano Mourão (Quarto mandamento)

Confesso que sou meio nostálgica. Vivo a escarafunchar o baú das minhas lembranças, sem contudo, me deixar prender ao passado. A vida deve ser vivida cada minuto, sem pressa. Procuro vivê-la assim, com a consciência apegada aos menores acontecimentos, para que mais tarde eu não venha sentir na pele os espinhos do remorso.

Hoje, bem no fundo dos meus guardados, encontrei uma mulher que marcou para sempre meu jeito de viver. Nunca mais deixo para depois o que posso fazer agora. O depois é uma palavra que apazigua, mas pode se transformar na metáfora de um nunca mais.

Era essa mulher uma pessoa iluminada! Mãe extremosa, forte, exemplar. Seu nome era Matilde, mas, naquele sertão mineiro em que vivia, todos a conheciam como Dona Tide.

Passara a vida ali, cuidando do sítio e dos quatro filhos que lhe deixara o marido.

“Dona Tide é uma mulherzinha forte” – diziam as pessoas que presenciavam a sua luta e conheciam a sua história. “Qualquer outra se queixaria, mas dona Tide, não. É conformada, resistente. Uma árvore boa que não se curva aos vendavais”. Tinha um olhar distante, procurando (quem sabe) entender o passado e conformar-se com o presente. Acreditava firme que, se não houvesse curvas no caminho, não existiriam surpresas boas.

Quando seu homem se foi embora com a loira do povoado, ela ignorou o fato e nunca falou a ninguém sobre seus desencantos, suas preocupações. E não se acomodou diante da dura lida. Cuidava sozinha dos afazeres do sítio, das poucas vacas leiteiras e, ainda, fazia doces, biscoitinhos de nata e muitas outras guloseimas que vendia na venda do seu Justino.

“Tenho que trabalhar dobrado e dar aos meus filhos um pouco mais de estudo. Eles serão melhores do que eu” – dizia para todos. Como se no mundo pudesse haver alguém melhor do que dona Tide. Mas ela se referia ao duro trabalho que lhe pesava o corpo, às duras frustrações que lhe arranhavam a alma, guardando só para si o cansaço e as dores que a ingratidão provocara.

Os anos foram se passando e tudo foi fugindo do seu controle, do seu alcance. E uma lembrança doce foi ocupando o velho espaço de um tempo de sonhos, semeaduras. As imagens dos filhos pequenos, porém, continuavam vivas, tagarelando dentro dela. Eles haviam crescido e foram para a “cidade grande” aperfeiçoar os estudos, melhorar a vida. O último a se despedir foi Cláudio, o filho caçula. Ah, como doeu em dona Tide essa despedida! Ela sabia que acabava de perder o último carinho que lhe restara, o último companheiro para o café da manhã e para as conversas, à noite, ao pé do fogão à lenha.

Mais uma vez, dona Tide engoliu seco aquela dor e guardou-a só para si. Resignada, continuou dizendo que eram separações necessárias. A vida exigia isso.

No começo, em datas especiais, os filhos apareciam. Então era aquela festa. Nessas ocasiões o trabalho era redobrado. Fazia doces e mais doces, punha flores na jarra e ajeitava até a própria aparência. Tinha que se mostrar elegante, para as noras, para os filhos e netos. O cansaço? A chegada dos seus “meninos”, a alegria da família reunida vencia tudo. Depois, as visitas foram ficando raras, as saudades mais intensas. Dentro de dona Tide chegava a doer de tanta saudade, mas só ela sabia da existência dessa dor. Os vizinhos diziam: “Ingratos, será que se esqueceram da mãe? Qualquer dia ela morre e eles nem vão ficar sabendo”. E dona Tide, de cabeça erguida, nos lábios um sorriso que só ela sabia o quanto lhe custava, sempre encontrava meios para justificar a ausência dos filhos. “Eles ainda me amam, eu sei disso. Filhos são como pombos-correios. Vão, às vezes demoram, mas sempre voltam trazendo um ramo verde para nos ofertar”.

Naquela tarde de dezembro, dona Tide não cabia em si de tanta felicidade. Depois de muito tempo sem dar notícias, os filhos mandaram-lhe dizer que viriam passar o Natal com ela. Logo que recebeu o telegrama, dona Tide trabalhou, trabalhou que até a semana lhe pareceu mais curta. Encheu os potes de doces, biscoitinhos de nata e de tudo o que pudesse agradar o apetite dos seus “meninos”. Caprichou nos arranjos da casa e até a talha em que mantinha a água sempre fresquinha recebera cuidados especiais. Era uma velha talha impregnada de passado, mas ficara bem mais bonita depois daquele banho com sapólio. Embora sentisse que o trabalho mexera com seus oitenta e cinco anos, dona Tide estava feliz, realizada. “Tudo preparado, no capricho, agora é só esperar” – disse-me quando fui visitá-la.

Tomou um banho reconfortante, vestiu uma roupa florida e foi sentar-se na frente da antiga casinha de pau-a-pique. Dona Tide estava pronta para abraçar os filhos que não tardariam. Tudo nela era só alegria. O sorriso solto, as vestes coloridas, o diadema dourado sobre os cabelos grisalhos. Da cozinha, o cheiro das carnes e dos quitutes se espalhava pelos arredores do enorme terreiro.

Sentada e reflexiva, ela contemplava o por-do-sol mais bonito que já vira. Era um por-do-sol diferente, com cores de esperança.

Com os olhos fixos no horizonte e a respiração meio ofegante, dona Tide esperava paciente, cansada, sonolenta. Lá longe, na curva da estrada, uma tira de poeira vermelha anunciou a surpresa há muito desejada. As buzinas dos carros repicavam e um burburinho confuso foi se apossando de todos os sentidos de dona Tide.

Seus olhos pesados, ainda vislumbraram os carros e os acenos dos filhos, das noras, dos netos. Aos poucos, as imagens foram se desintegrando das suas retinas e foram se transformando em um sonho profundo, sonho bom, animado pela tagarelice dos seus meninos.

Quando chamaram por ela, dona Tide não quis mais acordar. Teve medo de sair daquele sonho grande, daquela felicidade sublime e perder de novo os filhos queridos.

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