sábado, 13 de novembro de 2021

Fernando Sabino (Primeiro andar)

— O senhor não devia continuar morando aqui. Convinha ir para Minas, para Campos do Jordão, qualquer lugar assim.

Depois que o médico saiu, ele deixou cair pesadamente o corpo na cama-patente, as molas rangeram. Ficou fumando para o teto sem pensar em nada. Aos poucos o quarto ia-se escurecendo. Pela janela estreita o reflexo vermelho de um anúncio luminoso. Lá embaixo na rua o ruído do tráfego. Findo o cigarro, esmagou-o no cinzeiro de ferro e ergueu-se, espreguiçando. Tossiu duas vezes, foi até a pia a um canto e escarrou. Acendeu a luz para ver: não havia mais sangue. Deixou que a água da torneira corresse um instante, depois ficou a andar pelo quarto — em duas passadas percorria-o em toda a sua extensão. Deteve-se diante da mesinha, encheu meio cálice de conhaque e bebeu. Era o que restava na garrafa. Bateram à porta.

— Entra! — resmungou, aborrecido:

O porteiro entrou, olhando-o alarmado:

— O senhor está melhor?

— Não foi nada! — explicou, displicente. — Um acesso à toa, já estou acostumado. Bom sujeito, esse médico que você me arranjou, não quis cobrar nada.

O outro continuava a olhá-lo como a um fantasma.

— Que cara é essa? Nunca me viu?

— O médico disse...

— Esquece isso.

Voltou a andar de um lado para outro. Acostumara-se àquele quarto, às luzes da Cinelândia que mal podia vislumbrar da janela, ao elevador de grades enferrujadas que subia rangendo até o quinto andar. Era um hotelzinho antigo, apertado entre dois grandes prédios do centro — em breve seria vendido para demolição. Viera para ali apenas de passagem, depois do apartamento de que tivera de se desfazer. E fora ficando. As coisas não andavam nada boas para um homem de rádio como ele, sem emprego fixo, compositor de outros tempos, doente e, o que era pior, de inspiração escassa. Acabara se afeiçoando ao porteiro: um ratinho assustado que deslizava sem ruído pelos corredores, e de quem sabia desenterrar velhos casos do hotel, ainda nos seus bons tempos. Já pensara até em dedicar-lhe um samba.

— Olha aí! — mostrou-lhe a garrafa — Já acabou.

Fora o único que se lembrara dele no último Natal, tivera a suprema delicadeza de lhe trazer aquele conhaque — nacional, mas dos melhores.

— Como é? Vamos jantar?

De vez em quando jantavam juntos num restaurante da Lapa, cada um pagava o seu. Mais de uma vez, porém, o homenzinho lhe emprestara dinheiro.

— O senhor, com essa sua saúde, não devia ficar bebendo não.

— Essa é boa! Foi você mesmo quem me deu!

— Sabe? O senhor, assim doente, morando aqui...

Via-se que ele queria dizer alguma coisa, não sabia como:

— Já sei! Você acha que eu devia me internar.

— Não! Eu acho é que o senhor devia se mudar para o primeiro andar.

— Primeiro andar? Mas se eu preciso é justamente de ar fresco... Devia me mudar é para o andar de cima.

— Não, não! — fez o homenzinho, cada vez mais aflito — O senhor não está me entendendo! Um quarto no primeiro andar seria melhor.

— Os do primeiro andar são tão ruins como este, meu velho.

— É, mas aqui tem esse elevador que não cabe nada dentro.

Olhou-o, intrigado:

— Onde é que você quer chegar com essa conversa? Fale de uma vez, homem.

— O senhor por favor não me leve a mal. É que se acontecer alguma coisa... vai criar um problema para mim. Já imaginou? A dificuldade?

Só então, estupefato, entendeu o que o outro, na sua aflição, não tinha coragem de dizer. Sua primeira reação foi achar graça:

— Você acha que eu estou tão mal assim, é?

— Quem, eu? Não, longe de mim. Ê que o médico disse...

— Eu não seria o primeiro a morrer neste hotel, que é que há? — riu-se ele.

— O senhor está rindo? Deus me livre que aconteça uma coisa dessas, mas imagine minha situação se acontece. O senhor é muito comprido, olha só o tamanho das suas pernas. E o elevador...

— Desce pela escada. — sugeriu.

— Não dá! — o outro atalhou com intensidade — Já estive estudando a situação. Não dá de jeito nenhum. É muito apertadinha, cheia de curvas.

Resolveu interessar-se pelo problema:

— Como é que não dá? Vamos até ali fora para ver.

Saíram os dois do quarto e junto à escada puseram-se de frente um para o outro, curvados, como se transportassem uma coisa pesada.

— Assim. Agora vai virando devagar. Olha aí, eu não dizia? Chegando aqui tem uma quina, não passa de jeito nenhum.

— E são cinco andares...

— Para o senhor ver.

— Pela janela?

— Ah, isso então nem é bom pensar. Calaram-se, ficando olhando um para o outro.

— Está bem! — encerrou ele - Eu me mudo. Agora, por favor esquece isso e vamos jantar.

Foram jantar, e no dia seguinte ele se mudava para o primeiro andar.

Morreu dois meses depois. Na rua.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

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