"Vila Santa Cecília" eram as palavras que ocupavam, com letras góticas, o alto do arco que servia de entrada para a vila de 12 casas de porta e janela — seis de cada lado — onde moravam famílias pobres, porém honradas. Não ficava num subúrbio, mas numa travessa da Rua do Catete, perto do Palácio. Não era incomum um garoto chegar correndo com a notícia.
— Paiê. Vi o Presidente.
— O Dr. Getúlio? — desacreditava o pai. — Viu mesmo?
— Na janela do Palácio. Tava de pijama.
Se ver Presidente já era uma coisa que pouca gente no Rio tinha oportunidade, ainda mais de pijama.
Quando o carro preto passava, com batedores à frente, quem viajava nos carros ou nos bondes abaixava a cabeça numa tentativa de descobrir o Presidente no banco traseiro e nem sempre conseguia essa glória. E o menino da vila, voltando do armazém com um quilo de açúcar, vira-o. E de pijama!
Seu Olegário, um dos moradores da "Vila Santa Cecília", motorneiro à beira da aposentadoria, fazia disso um bicho de sete cabeças.
— Viu mesmo?
— De pijama — sublinhava o pai do menino a quem Deus dera a subida honra de ser testemunha da intimidade presidencial.
— Mentira.
— De pijama, colega! De terno, qualquer um pode ter visto. Até eu já vi.
— Eu também vi. — incluiu-se Olegário.
— Mas de pijama só quem viu foi o meu filho. — vangloriava-se — De pijama, só ele. Olegarinho! — gritava — Vem contar como foi que tu viu o Dr. Getúlio?
E o garoto recontava o que contara mil vezes, acrescentando, como já se habituara, qualquer coisinha no final.
— De pijama, na janela. Fazendo ginástica, como a gente faz na escola. Abrindo e fechando os braços, assim. Ginástica, sabe, moço?
Na casa 4 da vila morava Seu Pacheco, um homem mais antigo do que essa estória. Ainda usava colarinho engomado, postiço, que mandava lavar e engomar numa pequena loja da Galeria Cruzeiro. Trabalhava na Caixa Econômica fazia 19 anos. Qual a sua ocupação, ninguém sabia, mas, pela importância que se dava, calculava-se que era o homem que dizia "sim" ou "não" aos empréstimos solicitados. Creio que nem a mulher tinha conhecimento do seu serviço real. Se a própria mulher ignorava, muito menos sabiam seus filhos, que eram cinco: quatro homens e uma moça.
Esta, a moça da vila, que dá nome à estória. Maria da Glória tinha 18 anos. Era professora primária e ensinava advérbios e conjunções, numa escola pública de Laranjeiras. Morena, com a cor do sapoti e o gosto da cor. O corpo não ficava nada a dever àquele da moça sentada numa motocicleta que enfeitava a folhinha que o dono do açougue não se cansava de olhar, com pensamentos delicadamente malévolos.
Na folhinha estava o corpo de uma moça de Hollywood; em Maria da Glória, um corpo ao alcance não apenas dos olhos, mas, quem sabe... Tudo dependia de uma conversa. O homem do açougue não era dono. Viria a ser, depois que o pai morresse e ele, filho do dono, passasse a dono real das alcatras e das rabadas.
Tinha 26 anos, uma sombra azulada de barba, como os portugueses finos, e um jeito que, com boa vontade, chegava a lembrar Tyrone Power em Sangue e Areia.
— Me dá um quilo de contra-filé, Seu Nequinho — comandava Maria da Glória, na ida diária ao açougue.
— Prontinho. Pesado com carinho.
— Quanto é?
— Nada. Você pediu que eu desse, estou dando. É presente. Presentinho pra você. — falava Nequinho, mexendo muito com a boca, numa tentativa de charme.
— Oh, Seu Nequinho, deixa de coisa. — pedia sem vontade a moça da vila.
— Deixar de coisa, como? — acrescentava Nequinho, já de olhar prometendo pecado. — Eu quero é começar...
De início, Maria da Glória levou na brincadeira. Mas Nequinho não se incomodava. Um dia, ela iria entender que as intenções dele eram as melhores. Ou não seriam? Tinha que insistir, persistir, incomodar. Dizia, sempre, uma frase: — De uma boa conversa ninguém escapa.
Tenta de cá, busca de lá, procura daqui, insiste dali, joga indiretas hoje, concede contra-filé amanhã, convida agora, insiste depois, propõe uma, propõe duas, um dia deu pé.
Marcaram um passeio a Paquetá, de onde Maria da Glória, a moça da vila, voltou mulher.
Acontecesse isto hoje, talvez desse para ser contornado. Mas era 1951. E, para Seu Pacheco, 1951 ainda cheirava a trinta e poucos. Basta que se diga que ainda contava lances da revolução paulista como um fato acontecido ontem.
Maria da Glória contou para a mãe, que mãe é para essas coisas. Também e principalmente.
— Minha filha, o que você foi fazer?
— Agora está feito. — resumiu Maria da Glória.
— Tá feito, tá feito, — resmungou a futura vovó — é só o que você diz. E quando seu pai souber? Ele te mata de pancada.
— Mas meu pai não vai saber.
— Quem disse?
— Eu que tou dizendo.
— O jeito é você casar.
— Casar, eu não caso.
— E por que não?
— Só caso com um homem que eu goste.
Aí é que a mãe não entendia mais nada. Se ela não gostava do Nequinho, como foi que deixou que ele...? E se não foi por amor, então por que foi que ela...? E se era só brincadeira, como é que...?
— Essas coisas acontecem, mãe. — falou Maria da Glória, com uma tranquilidade que merecia o tapa que a mãe ameaçou.
— Acontecem, sim, mas não com filha minha.
Uma filha dela não era de se levar em conta. O diabo é que tinha acontecido com uma filha do Seu Pacheco, provável proprietário da Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro.
— Quem é que já sabe? — quis saber a mãe, numa aflição compreensível. Era 1951.
— Nós três, mãe.
— Nós três, quem? Eu, você e quem mais? Quem é mais que sabe dessa desgraça, menina?
— Nequinho, né?
Claro que Nequinho sabia. Antes de D. Guiomar, inclusive. Sabia e temia; tanto, que contou ao pai cardíaco.
— Pai, estou perdido. Sabe a Maria da Glória? Aquela moça da "Vila Santa Cecília"?
— Sei. Que é que tem?
— Foi comigo domingo a Paquetá e...
— E o quê? — indagou o pai, mostrando, pela total falta de inteligência, que se morresse não faria muita falta ao mundo.
— E aí eu... entendeu?
— Você o quê, Nequinho? — redarguiu o pai, pondo em néon sua burrice.
— Executei.
O pai sentou na banqueta de dividir o boi. Sentado, ficava devendo, na altura.
O pai de Nequinho, a quem chamavam no bairro de "Metade", andou de um lado para o outro, do boi ao porco, seguidas vezes, antes de chegar à conclusão.
— Você vai pra Minas.
— Pra quê?
— Pra não casar. Ou você quer casar com ela?
— Ninguém tá falando em casar.
— Ninguém aqui em casa. Você pensa que Seu Pacheco... ela não é filha de Seu Pacheco?
— É, acho que é.
— Acha, uma ova. Você sabe que é. Você pensa que Seu Pacheco...? Você vai pra Minas e, qualquer coisa, eu nego. Nego até morrer.
— Pois pode tirar Minas da ideia, que eu não vou! — exclamou Nequinho, já meio arrependido de ter feito o pai de confidente.
— Não vai? Então, casa. Pode preparar seu enxovalzinho, porque do altar você não escapa.
Realmente, à primeira vista, não havia outra solução: casar ou fugir. A não ser que Maria da Glória — moça muito evoluída e compreensiva até demais — tivesse algo melhor a sugerir.
— Mamãe, vou para os Estados Unidos.
— Pronto. Além do mais, ficou maluca. Como é que você vai pros Estados Unidos? Você pensa que seu pai é o dono do Lóide? Pensa que ele pode pagar uma passagem, te dar e acabou?
— Já resolvi. Vou pros Estados Unidos.
— Eu posso saber com que roupa?
— Não sei. De que jeito, não sei, mas eu vou, eu vou.
Pessoa alguma ficou sabendo o jeito que deu. Mas antes que a barriguinha se fizesse notar, Maria da Glória tinha passaporte, passagem, alguns dólares e as malas arrumadas.
Seu Pacheco aceitou a ideia da filha ir para aquela "terra de gente louca", graças à invejável catequese de D. Guiomar.
Maria da Glória tinha que agradecer à mãe não apenas a compreensão pela desgraça, mas o auxílio enorme para o consentimento do pai. Iria, mesmo sem o "sim" do Seu Pacheco, mas assim, com o beneplácito dele, era melhor.
E foi de avião.
A "Vila Santa Cecília", em peso, compareceu ao bota-fora, no aeroporto. E também foram duas pessoas do "Açougue Modelo".
Seu Pacheco recebia duas cartas por mês. Lia-as no banheiro para que ninguém o visse chorar. As cartas contavam apenas novidades da terra. Dizia dos aparelhos elétricos, das máquinas formidáveis, do conforto excepcional, das majestosas estradas de alta velocidade, dos filmes que ela já entendia (já falava inglês) e dos teatros onde "você nem pode calcular quanta coisa divina apresentam". Falava da Broadway.
— "Comparada à Broadway, a Cinelândia é um deserto" — escrevia numa das cartas, o que fez Seu Pacheco calcular a claridade que havia, pois em 1951 a Cinelândia era a Broadway do Brasil.
— Deve ser dia.
— Só pode ser! — concordava D. Guiomar, preparando o guisado. — Não foram eles que inventaram a luz, Pacheco? Luz, lá, ninguém paga. Eles inventaram a luz, a luz, pra eles, é de graça.
— Mas você já notou uma coisa? Maria da Glória fala de tudo, mas não fala dela.
— Ora, Pacheco, — desconversava a mãe da ex-moça — não fala porque não tem o que falar. Ou você quer que a menina invente que é artista de cinema? Você tem cada ideia, Pacheco! Maria da Glória ser artista.
Seu Pacheco bem que já tinha admitido esta hipótese: a filha nas telas. Não estava na terra onde se fazem filmes? Não havia nada de espantar se, um dia, na rua, um homem do cinema olhasse para a filha...
Nas vezes em que ia ao Politeama ou ao São Luís, quando era filme passado em Nova Iorque, ele perdia o enredo, a tentar descobrir, no meio dos transeuntes, a figura da filha.
— Capaz dela estar por aí — cutucava D. Guiomar, sem saber que há muito ela procurava também descobrir a filha no povo da rua, que o filme ia mostrando.
— Acho que não. — respondia da boca pra fora. Achava que não, mas o fato é que desejava vê-la ali ainda mais do que o marido. Por dentro, tinha certeza de que ali a filha nunca seria vista. A não ser que fosse cena noturna.
Primeiro chegou a carta em que Maria da Glória contava do desejo de voltar. Depois veio outra em que ela falava que não suportava mais a saudade. A terceira já trazia a data da chegada.
No dia em que ela ia retornar, a "Vila Santa Cecília" botou roupa de festa. Seu Pacheco, fugindo ao padrão de economia em que pautava seus gestos, mandou até fazer um terno de S-120, no "London Taylor's".
O irmão mais velho, casado e pai de dois meninos, que já não morava na vila, mas num quarto-e-sala, no Rio Comprido, compareceu para a recepção.
Chegou sem os filhos. D. Guiomar intrigou-se.
— Por que não trouxe meus netos?
— Porque não.
Ela entendeu a curta resposta.
O dono do botequim emprestou o carro que, dirigido pelo filho do seu Olegário (o que vira Dr. Getúlio de pijama), conduziu a família ao cais do porto.
Seu Pacheco ficava na ponta dos pés, querendo descobrir a filha no convés. Lembrou, por um segundo, do tempo em que procurava descobri-la na multidão, nos filmes.
— Ali, perto do padre! — gritou uma voz.
— Não é ela. A não ser que tenha engordado. — contestou outra voz.
— Lá! — aponta a D. Guiomar. — Lá, junto do comandante.
— Já vi. Está de vestido branco e chapéu — afirmou o filho do Seu Olegário, homem que se vira o Dr. Getúlio na janela, por que não veria Maria da Glória no convés?
— Onde? — perguntava sem parar Seu Pacheco. — Onde, que só eu não vejo?
— Perto da escada, papai — indicou o irmão mais velho, sem o menor entusiasmo.
— Ah, já vi. É ela, sim. Está dando adeus.
E todos os braços se ergueram no aceno de boas-vindas. D. Guiomar agitava o lenço — o mesmo que usava para aparar as lágrimas que insistiam em cair. Seu Pacheco desabotoou o paletó, para que a filha visse que ele já usava gravata colorida.
Maria da Glória gritava de lá, a vila gritava daqui, e os gritos caíam no mar onde o navio deslizava lerdamente, na atracação. Desceram a escada, e Maria da Glória não chegou para os abraços.
— Está a mesma coisa.
— Como vai, minha filha?
— Glorinha, é verdade que lá tudo que a gente ganha vai pro Governo?
— Trouxe o meu gravador?
— E o rádio?
— O que foi que você trouxe?
— Quantas malas?
— Você viu o Marlon Brando?
— Como é a televisão colorida?
Maria da Glória não disse uma palavra do porto até a vila. Não havia tempo de responder às perguntas que se sucediam, num metralhar histérico e incontrolável. Ela apenas segurava a mão da mãe, num aperto tão forte que contava a verdade.
— Até menininho de dois anos fala inglês, não é?
— Tu sabe falar inglês, mesmo?
— Fala aí, pra gente ver.
— E a moda?
— Por que você veio de chapéu?
— Não é verdade que lá só se come cachorro-quente?
Quando o carro parou na entrada da vila, parecia que era um deputado quem estava chegando. O povo fez um corredor por onde ela passou sob palmas e perguntas.
— Lá faz frio?
— Você pisou na neve?
— Cinema lá também tem letreiro?
— Veio pra voltar ou veio de vez?
Ela entrou em casa no silêncio em que vinha. Sentou na poltrona da sala sem notar que o estofamento tinha sido mudado, e de repente, como se todos tivessem combinado, na casa 4 da vila só estava a família. Seu Pacheco, de terno novo, D. Guiomar — de lenço nos olhos — e os 4 irmãos: 3 com um sorriso de esperança e o mais velho — sentado de costas — descascando uma tangerina. Seu Pacheco foi quem quebrou o silêncio.
— Glorinha, você, nas suas cartas — tá tudo guardado na gaveta da sua mãe — nunca disse o que era que fazia lá. Você era o quê, menina?
Maria da Glória olhou para o irmão mais velho, que se levantou em direção à cozinha, depois passou o olhar pela mãe, que lhe sorriu a compreensão materna. Espiou os três irmãos, que se afligiam de expectativa pelos presentes e, por fim, encarou o pai.
— Eu trouxe o gravador, Julinho. E trouxe o rádio japonês, também, José. Pra você, Mário, eu trouxe 5 discos de música de juventude. Trouxe uma torradeira pra mamãe. Uma torradeira que a torrada pula, quando está pronta. E pro senhor, papai, sabe o que eu trouxe? Um relógio que marca a data.
— Como é? — perguntou o irmão com cabelo de recruta.
— Estou dizendo. Tem os ponteiros, que marcam as horas, e, num canto, um quadradinho que marca o dia. O dia que for o relógio marca. Deixa abrir as malas que eu mostro.
— Mas você não me respondeu. — insistiu Seu Pacheco. — Você lá era o quê, Glorinha?
Foi D. Guiomar quem respondeu.
— Modelo, Pacheco. Eu nunca disse, porque podia ser que você não gostasse. Glorinha era modelo.
— Não gostar por quê? É uma profissão muito decente!
E repetia: "muito decente, muito decente", já agora abrindo os presentes que a filha trouxera.
— Paiê. Vi o Presidente.
— O Dr. Getúlio? — desacreditava o pai. — Viu mesmo?
— Na janela do Palácio. Tava de pijama.
Se ver Presidente já era uma coisa que pouca gente no Rio tinha oportunidade, ainda mais de pijama.
Quando o carro preto passava, com batedores à frente, quem viajava nos carros ou nos bondes abaixava a cabeça numa tentativa de descobrir o Presidente no banco traseiro e nem sempre conseguia essa glória. E o menino da vila, voltando do armazém com um quilo de açúcar, vira-o. E de pijama!
Seu Olegário, um dos moradores da "Vila Santa Cecília", motorneiro à beira da aposentadoria, fazia disso um bicho de sete cabeças.
— Viu mesmo?
— De pijama — sublinhava o pai do menino a quem Deus dera a subida honra de ser testemunha da intimidade presidencial.
— Mentira.
— De pijama, colega! De terno, qualquer um pode ter visto. Até eu já vi.
— Eu também vi. — incluiu-se Olegário.
— Mas de pijama só quem viu foi o meu filho. — vangloriava-se — De pijama, só ele. Olegarinho! — gritava — Vem contar como foi que tu viu o Dr. Getúlio?
E o garoto recontava o que contara mil vezes, acrescentando, como já se habituara, qualquer coisinha no final.
— De pijama, na janela. Fazendo ginástica, como a gente faz na escola. Abrindo e fechando os braços, assim. Ginástica, sabe, moço?
Na casa 4 da vila morava Seu Pacheco, um homem mais antigo do que essa estória. Ainda usava colarinho engomado, postiço, que mandava lavar e engomar numa pequena loja da Galeria Cruzeiro. Trabalhava na Caixa Econômica fazia 19 anos. Qual a sua ocupação, ninguém sabia, mas, pela importância que se dava, calculava-se que era o homem que dizia "sim" ou "não" aos empréstimos solicitados. Creio que nem a mulher tinha conhecimento do seu serviço real. Se a própria mulher ignorava, muito menos sabiam seus filhos, que eram cinco: quatro homens e uma moça.
Esta, a moça da vila, que dá nome à estória. Maria da Glória tinha 18 anos. Era professora primária e ensinava advérbios e conjunções, numa escola pública de Laranjeiras. Morena, com a cor do sapoti e o gosto da cor. O corpo não ficava nada a dever àquele da moça sentada numa motocicleta que enfeitava a folhinha que o dono do açougue não se cansava de olhar, com pensamentos delicadamente malévolos.
Na folhinha estava o corpo de uma moça de Hollywood; em Maria da Glória, um corpo ao alcance não apenas dos olhos, mas, quem sabe... Tudo dependia de uma conversa. O homem do açougue não era dono. Viria a ser, depois que o pai morresse e ele, filho do dono, passasse a dono real das alcatras e das rabadas.
Tinha 26 anos, uma sombra azulada de barba, como os portugueses finos, e um jeito que, com boa vontade, chegava a lembrar Tyrone Power em Sangue e Areia.
— Me dá um quilo de contra-filé, Seu Nequinho — comandava Maria da Glória, na ida diária ao açougue.
— Prontinho. Pesado com carinho.
— Quanto é?
— Nada. Você pediu que eu desse, estou dando. É presente. Presentinho pra você. — falava Nequinho, mexendo muito com a boca, numa tentativa de charme.
— Oh, Seu Nequinho, deixa de coisa. — pedia sem vontade a moça da vila.
— Deixar de coisa, como? — acrescentava Nequinho, já de olhar prometendo pecado. — Eu quero é começar...
De início, Maria da Glória levou na brincadeira. Mas Nequinho não se incomodava. Um dia, ela iria entender que as intenções dele eram as melhores. Ou não seriam? Tinha que insistir, persistir, incomodar. Dizia, sempre, uma frase: — De uma boa conversa ninguém escapa.
Tenta de cá, busca de lá, procura daqui, insiste dali, joga indiretas hoje, concede contra-filé amanhã, convida agora, insiste depois, propõe uma, propõe duas, um dia deu pé.
Marcaram um passeio a Paquetá, de onde Maria da Glória, a moça da vila, voltou mulher.
Acontecesse isto hoje, talvez desse para ser contornado. Mas era 1951. E, para Seu Pacheco, 1951 ainda cheirava a trinta e poucos. Basta que se diga que ainda contava lances da revolução paulista como um fato acontecido ontem.
Maria da Glória contou para a mãe, que mãe é para essas coisas. Também e principalmente.
— Minha filha, o que você foi fazer?
— Agora está feito. — resumiu Maria da Glória.
— Tá feito, tá feito, — resmungou a futura vovó — é só o que você diz. E quando seu pai souber? Ele te mata de pancada.
— Mas meu pai não vai saber.
— Quem disse?
— Eu que tou dizendo.
— O jeito é você casar.
— Casar, eu não caso.
— E por que não?
— Só caso com um homem que eu goste.
Aí é que a mãe não entendia mais nada. Se ela não gostava do Nequinho, como foi que deixou que ele...? E se não foi por amor, então por que foi que ela...? E se era só brincadeira, como é que...?
— Essas coisas acontecem, mãe. — falou Maria da Glória, com uma tranquilidade que merecia o tapa que a mãe ameaçou.
— Acontecem, sim, mas não com filha minha.
Uma filha dela não era de se levar em conta. O diabo é que tinha acontecido com uma filha do Seu Pacheco, provável proprietário da Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro.
— Quem é que já sabe? — quis saber a mãe, numa aflição compreensível. Era 1951.
— Nós três, mãe.
— Nós três, quem? Eu, você e quem mais? Quem é mais que sabe dessa desgraça, menina?
— Nequinho, né?
Claro que Nequinho sabia. Antes de D. Guiomar, inclusive. Sabia e temia; tanto, que contou ao pai cardíaco.
— Pai, estou perdido. Sabe a Maria da Glória? Aquela moça da "Vila Santa Cecília"?
— Sei. Que é que tem?
— Foi comigo domingo a Paquetá e...
— E o quê? — indagou o pai, mostrando, pela total falta de inteligência, que se morresse não faria muita falta ao mundo.
— E aí eu... entendeu?
— Você o quê, Nequinho? — redarguiu o pai, pondo em néon sua burrice.
— Executei.
O pai sentou na banqueta de dividir o boi. Sentado, ficava devendo, na altura.
O pai de Nequinho, a quem chamavam no bairro de "Metade", andou de um lado para o outro, do boi ao porco, seguidas vezes, antes de chegar à conclusão.
— Você vai pra Minas.
— Pra quê?
— Pra não casar. Ou você quer casar com ela?
— Ninguém tá falando em casar.
— Ninguém aqui em casa. Você pensa que Seu Pacheco... ela não é filha de Seu Pacheco?
— É, acho que é.
— Acha, uma ova. Você sabe que é. Você pensa que Seu Pacheco...? Você vai pra Minas e, qualquer coisa, eu nego. Nego até morrer.
— Pois pode tirar Minas da ideia, que eu não vou! — exclamou Nequinho, já meio arrependido de ter feito o pai de confidente.
— Não vai? Então, casa. Pode preparar seu enxovalzinho, porque do altar você não escapa.
Realmente, à primeira vista, não havia outra solução: casar ou fugir. A não ser que Maria da Glória — moça muito evoluída e compreensiva até demais — tivesse algo melhor a sugerir.
— Mamãe, vou para os Estados Unidos.
— Pronto. Além do mais, ficou maluca. Como é que você vai pros Estados Unidos? Você pensa que seu pai é o dono do Lóide? Pensa que ele pode pagar uma passagem, te dar e acabou?
— Já resolvi. Vou pros Estados Unidos.
— Eu posso saber com que roupa?
— Não sei. De que jeito, não sei, mas eu vou, eu vou.
Pessoa alguma ficou sabendo o jeito que deu. Mas antes que a barriguinha se fizesse notar, Maria da Glória tinha passaporte, passagem, alguns dólares e as malas arrumadas.
Seu Pacheco aceitou a ideia da filha ir para aquela "terra de gente louca", graças à invejável catequese de D. Guiomar.
Maria da Glória tinha que agradecer à mãe não apenas a compreensão pela desgraça, mas o auxílio enorme para o consentimento do pai. Iria, mesmo sem o "sim" do Seu Pacheco, mas assim, com o beneplácito dele, era melhor.
E foi de avião.
A "Vila Santa Cecília", em peso, compareceu ao bota-fora, no aeroporto. E também foram duas pessoas do "Açougue Modelo".
Seu Pacheco recebia duas cartas por mês. Lia-as no banheiro para que ninguém o visse chorar. As cartas contavam apenas novidades da terra. Dizia dos aparelhos elétricos, das máquinas formidáveis, do conforto excepcional, das majestosas estradas de alta velocidade, dos filmes que ela já entendia (já falava inglês) e dos teatros onde "você nem pode calcular quanta coisa divina apresentam". Falava da Broadway.
— "Comparada à Broadway, a Cinelândia é um deserto" — escrevia numa das cartas, o que fez Seu Pacheco calcular a claridade que havia, pois em 1951 a Cinelândia era a Broadway do Brasil.
— Deve ser dia.
— Só pode ser! — concordava D. Guiomar, preparando o guisado. — Não foram eles que inventaram a luz, Pacheco? Luz, lá, ninguém paga. Eles inventaram a luz, a luz, pra eles, é de graça.
— Mas você já notou uma coisa? Maria da Glória fala de tudo, mas não fala dela.
— Ora, Pacheco, — desconversava a mãe da ex-moça — não fala porque não tem o que falar. Ou você quer que a menina invente que é artista de cinema? Você tem cada ideia, Pacheco! Maria da Glória ser artista.
Seu Pacheco bem que já tinha admitido esta hipótese: a filha nas telas. Não estava na terra onde se fazem filmes? Não havia nada de espantar se, um dia, na rua, um homem do cinema olhasse para a filha...
Nas vezes em que ia ao Politeama ou ao São Luís, quando era filme passado em Nova Iorque, ele perdia o enredo, a tentar descobrir, no meio dos transeuntes, a figura da filha.
— Capaz dela estar por aí — cutucava D. Guiomar, sem saber que há muito ela procurava também descobrir a filha no povo da rua, que o filme ia mostrando.
— Acho que não. — respondia da boca pra fora. Achava que não, mas o fato é que desejava vê-la ali ainda mais do que o marido. Por dentro, tinha certeza de que ali a filha nunca seria vista. A não ser que fosse cena noturna.
Primeiro chegou a carta em que Maria da Glória contava do desejo de voltar. Depois veio outra em que ela falava que não suportava mais a saudade. A terceira já trazia a data da chegada.
No dia em que ela ia retornar, a "Vila Santa Cecília" botou roupa de festa. Seu Pacheco, fugindo ao padrão de economia em que pautava seus gestos, mandou até fazer um terno de S-120, no "London Taylor's".
O irmão mais velho, casado e pai de dois meninos, que já não morava na vila, mas num quarto-e-sala, no Rio Comprido, compareceu para a recepção.
Chegou sem os filhos. D. Guiomar intrigou-se.
— Por que não trouxe meus netos?
— Porque não.
Ela entendeu a curta resposta.
O dono do botequim emprestou o carro que, dirigido pelo filho do seu Olegário (o que vira Dr. Getúlio de pijama), conduziu a família ao cais do porto.
Seu Pacheco ficava na ponta dos pés, querendo descobrir a filha no convés. Lembrou, por um segundo, do tempo em que procurava descobri-la na multidão, nos filmes.
— Ali, perto do padre! — gritou uma voz.
— Não é ela. A não ser que tenha engordado. — contestou outra voz.
— Lá! — aponta a D. Guiomar. — Lá, junto do comandante.
— Já vi. Está de vestido branco e chapéu — afirmou o filho do Seu Olegário, homem que se vira o Dr. Getúlio na janela, por que não veria Maria da Glória no convés?
— Onde? — perguntava sem parar Seu Pacheco. — Onde, que só eu não vejo?
— Perto da escada, papai — indicou o irmão mais velho, sem o menor entusiasmo.
— Ah, já vi. É ela, sim. Está dando adeus.
E todos os braços se ergueram no aceno de boas-vindas. D. Guiomar agitava o lenço — o mesmo que usava para aparar as lágrimas que insistiam em cair. Seu Pacheco desabotoou o paletó, para que a filha visse que ele já usava gravata colorida.
Maria da Glória gritava de lá, a vila gritava daqui, e os gritos caíam no mar onde o navio deslizava lerdamente, na atracação. Desceram a escada, e Maria da Glória não chegou para os abraços.
— Está a mesma coisa.
— Como vai, minha filha?
— Glorinha, é verdade que lá tudo que a gente ganha vai pro Governo?
— Trouxe o meu gravador?
— E o rádio?
— O que foi que você trouxe?
— Quantas malas?
— Você viu o Marlon Brando?
— Como é a televisão colorida?
Maria da Glória não disse uma palavra do porto até a vila. Não havia tempo de responder às perguntas que se sucediam, num metralhar histérico e incontrolável. Ela apenas segurava a mão da mãe, num aperto tão forte que contava a verdade.
— Até menininho de dois anos fala inglês, não é?
— Tu sabe falar inglês, mesmo?
— Fala aí, pra gente ver.
— E a moda?
— Por que você veio de chapéu?
— Não é verdade que lá só se come cachorro-quente?
Quando o carro parou na entrada da vila, parecia que era um deputado quem estava chegando. O povo fez um corredor por onde ela passou sob palmas e perguntas.
— Lá faz frio?
— Você pisou na neve?
— Cinema lá também tem letreiro?
— Veio pra voltar ou veio de vez?
Ela entrou em casa no silêncio em que vinha. Sentou na poltrona da sala sem notar que o estofamento tinha sido mudado, e de repente, como se todos tivessem combinado, na casa 4 da vila só estava a família. Seu Pacheco, de terno novo, D. Guiomar — de lenço nos olhos — e os 4 irmãos: 3 com um sorriso de esperança e o mais velho — sentado de costas — descascando uma tangerina. Seu Pacheco foi quem quebrou o silêncio.
— Glorinha, você, nas suas cartas — tá tudo guardado na gaveta da sua mãe — nunca disse o que era que fazia lá. Você era o quê, menina?
Maria da Glória olhou para o irmão mais velho, que se levantou em direção à cozinha, depois passou o olhar pela mãe, que lhe sorriu a compreensão materna. Espiou os três irmãos, que se afligiam de expectativa pelos presentes e, por fim, encarou o pai.
— Eu trouxe o gravador, Julinho. E trouxe o rádio japonês, também, José. Pra você, Mário, eu trouxe 5 discos de música de juventude. Trouxe uma torradeira pra mamãe. Uma torradeira que a torrada pula, quando está pronta. E pro senhor, papai, sabe o que eu trouxe? Um relógio que marca a data.
— Como é? — perguntou o irmão com cabelo de recruta.
— Estou dizendo. Tem os ponteiros, que marcam as horas, e, num canto, um quadradinho que marca o dia. O dia que for o relógio marca. Deixa abrir as malas que eu mostro.
— Mas você não me respondeu. — insistiu Seu Pacheco. — Você lá era o quê, Glorinha?
Foi D. Guiomar quem respondeu.
— Modelo, Pacheco. Eu nunca disse, porque podia ser que você não gostasse. Glorinha era modelo.
— Não gostar por quê? É uma profissão muito decente!
E repetia: "muito decente, muito decente", já agora abrindo os presentes que a filha trouxera.
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
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