domingo, 14 de novembro de 2021

Rachel de Queiroz (Pedra encantada)

A pedra é grande, escura, e fica debaixo de uma ingazeira, à beira do riacho. Tem vagamente a forma de uma mulher de joelhos.

É a pedra encantada. Pelo menos é o nome que lhe deram, e muita gente acredita.

A história é que toda véspera de ano-bom, ao bater da meia-noite, a pedra se desencanta. Diz que vai amolecendo, amolecendo; não muda num átimo, pelo contrário. A pedra primeiro abranda, aos poucos perde o grão áspero e se torna macia, depois a corcunda se apruma, levanta-se a cabeça, vão brotando as feições do rosto, o pescoço se alongando, os braços se estiram e se abrem, os seios apontam e se arredondam, o gargalo da cintura se afina e depois se alarga nas ancas — molda-se a mulher toda na pedra mole como o barro no torno do oleiro.

E por fim está a moça toda pronta, mas ainda adormecida, ainda na cor limosa da pedra. Sempre lentamente, ela então se desencanta do sono, abre os olhos, corre a vista em redor e examina o próprio corpo. Verifica com horror que conserva a pele suja da pedra, exposta à chuva, ao sol e à poeira nos 12 meses do ano. Se já choveu em dezembro e o riacho empoçou água, a moça se encaminha até lá embaixo, em passos trôpegos, mais rolando que andando, banha-se no poço, e a sua cor se limpa.

Mas se ainda não choveu e o riacho está seco, ela fica muito tempo ajoelhada na areia e diz que é no sereno da noite que se lava — custa mais a desencantar direito, claro, esperando que a marugem do orvalho lhe banhe o corpo todo, e assim mesmo a pele não fica tal qual ela queria, alva e lustrosa. Por isso se conta também que, em certos anos, a mulher da pedra encantada é uma moça branca e em outras é cabocla roxa, como bugra do mato.

Depois de lavada, torna a moça a subir ao seu lugar e procura imitar a posição em que estava quando virada em pedra: de cabeça baixa e ajoelhada, Para uns, essa hora é de penitência — a mulher fica rezando e pedindo perdão dos pecados de outros tempos, que foram muitos. Para outros, fica assim apenas imaginando, se recordando de quem é, do que veio fazer, acabando de despertar daquele sono comprido de 12 meses.

A maioria, entretanto, diz que não é nada disso, que a bruxa fica assim só de maldade, que bem esperta já é ela desde o tempo em que ainda nem era pedra. Se se põe assim encolhida é para enganar os passantes, a fim de que não sintam falta do vulto corcovado que estavam habituados a encontrar ali.

Tem ano em que toda santa noite a mulher espera em vão, e não passa quem ela quer. Com o nascer do dia ela volta a se encantar, mas com uma raiva tão danada que durante o ano inteiro, quando o sol lhe bate de rijo, vê-se uma fumacinha serpeando no ar, saída da pedra: é a raiva da moça, fervendo lá dentro.

Mas nas noites de sorte, aponta no caminho estreito, entre as moitas, o moço bonito que ela já havia escolhido. Sim, porque durante o ano que se passou muitos moços hão de ter andado diariamente por ali, dando ensejo a que a bruxa da pedra escolha o seu preferido — o mais bonito de todos.

E assim vem vindo ele, coitadinho, de repente dá com os olhos naquela moça ajoelhada — nua! — com a cabeça caída sobre o peito — os braços cruzados —, e no alvoroço de vê-la já nem lhe ocorre perguntar por que estará a mulher no mesmo lugar em que sempre costumou haver uma grande pedra. E ela, sentindo a presença do homem, levanta a cabeça, abre os olhos, abre devagar os braços, se desvenda toda — e o moço então se perde, porque nunca o atraiu chamado igual. Se entrega, se abandona como se fosse se matar.

E por fim, exausto, dorme, e quando o dia amanhece ele acorda à beira d'água, junto às moitas de muçambê, e vê a pedra escura ao seu lado, e tudo lhe diz que as suas lembranças foram um sonho.

Mas que sonho esse, meu Deus! É um sonho que ele não esquece jamais. Todo o seu resto de vida ele ficará escravo daquele sonho, e mal anoitece procura o lugar à beira do riacho, e abranda o passo ao chegar — mas a pedra continua preta e morta. Ignora ele que só uma vez por ano poderá reencontrar aqueles braços.

E de tanta ansiedade o moço vai se consumindo, envelhecendo, se desgastando, só naquela esperança. Mas afinal chega a nova noite de Ano. Como em todas as outras noites, ele passa fielmente à hora certa — aquela hora de antes, em que a criatura o recebeu nos braços. Maravilhado descobre que ela está ali de novo, bem o seu coração lhe dizia, bem teimava! Mas em pleno abraço de amor a lua clareia e a moça enxerga a face do seu amante, enrugada, escaveirada, que não é mais a cara bonita, radiante de mocidade que ela escolhera. Fica então furiosa e jura que o homem é outro, não o moço que ela ama. Daí, talvez nem seja maldade nem ingratidão. Ela é fiel a um homem, um rosto, um nariz, uma boca, um corpo. Mas se aquilo se gasta e se transforma, como é que ela vai saber que ainda é o mesmo — ela que não conhece idade nem velhice e pelos tempos afora é sempre a mesma, de carne ou de pedra?

Aí ela expulsa o homem, na sua fúria, e, se ele teima, pode até matá-lo com aqueles braços que têm a força da pedra onde se geraram. E o desgraçado, mesmo quando escapa, para ele é pior do que se morresse, porque fica ali rondando, feito um louco, e sempre volta, até que outro lhe toma o lugar,

O povo, durante anos, não sabia por que na noite de ano-bom muitas vezes se encontrava à beira do riacho um homem morto, estrangulado. Certa vez foram mesmo achados dois mortos. Eram o velho e o novo amante da pedra encantada que se tinham pegado à faca. E, quando se descobriu o mistério, resolveram arrancar a pedra dali. Trouxeram um trator, mas o trator nem aluiu o rochedo, era como se ele estivesse enterrado a cem braças do chão. Tentaram em seguida dar um tiro de dinamite, mas também a dinamite falhou; detonou só um pequeno estalo que mal arrancou uma lasca da pedra.

Estavam estudando outro jeito — quando alguém que olhava a pedra deu um grito, e todo mundo, vendo o que era, largou de mão, assustado.

Na lasca da pedra, que a dinamite abrira, saía correndo um filete de sangue, bem vermelho, sangue vivo, lustroso na luz do sol.

Fonte:
Rachel de Queiroz. Pedra encantada e outras histórias. RJ: José Olympio, 2011.

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