segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Figueiredo Pimentel (A moça encontrada no mar)

As leis do reino de Sarinhã – grande e riquíssima nação, que há séculos e séculos deslumbrou o mundo pelos altos feitos do seus príncipes e pela sua opulência, – obrigavam o soberano reinante a casar-se assim que completasse quinze anos de idade.

O príncipe Altir, que governava Sarinhã, na época em que se passa esta história, querendo conformar-se com as leis, resolveu casar-se. Para realizar o seu desígnio, ordenou que lhe apresentassem as moças mais famosas que existissem no país, embora morassem nos confins do reino.

Os emissários, já haviam corrido todas as cidades, vilas, aldeias, povoados de casa em casa, e nenhuma das jovens apresentadas a Altir lhe tinham agradado. Tinha ele perdido a esperança de casar com a moça mais linda do país, conforme desejava, e por isso vivia muito triste, quando se deu um fato interessante.

O batalhão que dava a guarda de honra do palácio, unicamente composto de moços fidalgos, escolhidos entre os mais ricos, instruídos, famosos e valentes do reino, tinha ido assistir à missa na capela real. Entre os soldados, havia um jovem marquês, nascido numa província longínqua, filho de nobilíssima e antiga família, e que pouco antes fora admitido nas guardas do rei.

Era a primeira vez que ele entrava na real capela, pois não havia ainda um mês que chegara à capital. Estava admirando o luxo, o esplendor, a arquitetura do templo, um dos mais elegantes e célebres do mundo inteiro e percorria com o olhar as imagens, nos altares, cada qual mais primorosamente executada por afamado artista, quando fitou a de N. S. do Rosário, que ficava justamente a seu lado.

Não pôde deixar de soltar um grito de espanto, ao mesmo tempo que de seus olhos jorravam lágrimas abundantes.

O general comandante, que era o príncipe Seraf, estranhando aquele procedimento, indagou do jovem marquês, cujo nome era Odern, a causa da exclamação que soltara e do pranto que derramava.

Odern disse que chorava porque havia se lembrado de repente de sua família, de sua casa, situada havia um mês de viagem, e lembrara-se ao ver a imagem de N. S. do Rosário, que era o retrato exatíssimo, perfeito, de uma de suas quatro irmãs, Gabi, a mais moça.

A notícia correu de boca em boca. Muita gente zombava, não acreditando, porquanto essa imagem era uma perfeição, um primor de escultura, um ideal de beleza, e não podia existir uma criatura humana que se parecesse com ela, quanto mais que fosse a mesma coisa, o modelo vivo.

No entanto a notícia chegou aos ouvidos do príncipe Altir, que mandou chamar Odern, a quem falou:

– Se tua irmã é assim tão bonita, dize-me onde mora tua família, que quero mandar buscá-la para minha esposa.

– Saberá vossa real majestade, respondeu o marquês, que meus pais moram nos desfiladeiros do monte Camocim, distante daqui dez mil léguas por terra e cinco mil por mar.

O rei mandou imediatamente preparar uma esquadra par ir buscar a jovem Gabi, enviando para isso embaixadores ao pai, pedindo-a em casamento. Odern fez parte dessa embaixada.
***

Ao cabo de três meses de viagem, os navios aportaram finalmente em Camocim. Todos, ao verem a moça, ficaram maravilhados com sua beleza extraordinária.

O embaixador entregou a carta do rei ao velho duque Odern, que aceitou o honroso pedido do rei Altir, e deixou a formosa Gabi partir, em companhia de seu irmão.

Regressava a esquadra, quando caiu um grande temporal, que obrigou os navegantes a procurar o primeiro abrigo que se lhes deparou. Era uma enseada desconhecida, que não figurava em mapa algum.

Mas ninguém se importou com aquilo, e todos saltaram em terra, indo pedir pousada à casa de uma velhinha que ali morava. Era uma velhinha com perto de noventa anos, magra, baixa, e horrorosamente feia, caolha e aleijada. Devia ser com certeza uma bruxa, mas disse que se chamava Sarda.

Em conversa indagou donde vinham e para onde iam tão ilustres navegantes, e soube assim o destino da embaixada real. Aproveitando-se de uma ocasião favorável, convidou Gabi para dar um passeio pela horta, e aí chegando atirou a pobre menina no poço que ali havia. Para não darem por falta dela, pôs em seu lugar uma filha que tinha, moça em verdade, mas horrível de feia.

Como já era noite os viajantes não deram pela troca, e conduziram-na para bordo. Quando os navios levantaram ferro, a velha foi ao poço, tirou dele a moça, cortou-lhe os cabelos, furou-lhe os olhos e deitou-a num caixão, que atirou ao mar.

Mas o caixão, em vez de afundar, flutuou, e foi chegar ao reino primeiro que a esquadra real. Pedro, um pescador, achou-o. Vendo-o muito pesado, julgou ter dinheiro, e começou a gabar-se que havia achado uma fortuna no fundo do mar, e que por isso seria mais rico que o rei.

Sendo chamado à presença do monarca, Pedro disse que de fato tinha achado um caixão com dinheiro.

Altir mandou que os guardas fossem se certificar o que havia de verdade no que dizia o pescador. Aberto o caixão, deram com a moça dentro, ficando todos com pena, de ver uma jovem formosíssima. divinamente bela, mas cega e com os cabelos cortados.

Os soldados voltaram conduzindo a moça, chegando ao palácio, um dia depois de ter aportado a embaixada trazendo a filha da velha. O embaixador, dando conta da missão, disse ao rei:

– Real majestade, fui alegre e volto triste; sujeito-me, porém, à pena que me quiserdes dar.

Quanto ao marquês Odern, ao ver a irmã ficar tão feia, de um dia para o outro, receando a justa cólera de vossa majestade, lançou-se ao mar.

– Não há remédio, disse o rei, casar-me-ei com essa mulher feia.

Efetuou-se o casamento, mas o rei conservou-se sempre triste. No outro dia, quando lhe apresentaram a moça dos olhos furados e cabelos cortados, todos da embaixada reconheceram sem demora a formosa Gabi Odern.

Contando-se-lhe o que havia ocorrido com o temporal e a hospedagem na casinha da velha Sarda, Altir desconfiou da infame bruxa, e mandou buscá-la por um navio veloz.

Sarda a princípio negou tudo, e até fingiu desconhecer sua própria filha, mas esta era muito parecia com ela, de sorte que se descobriu toda a falsidade das duas malvadas feiticeiras.

Por castigo, o rei mandou furar os olhos da velha e cortar-lhe os cabelos. Assim que cumpriram a ordem real, os olhos de Gabi ficaram perfeitos, e cresceram-lhe os cabelos, tornando-se ela ainda mais formosa, mais deslumbrante, o verdadeiro tipo da beleza.

O marquês Odern não havia morrido afogado. Tenho sido lançado à praia, foi recolhido pelo mesmo pescador Pedro. Sabendo que sua irmã estava viva e sã, e que casara com o rei Altir, apresentou-se no palácio, sendo magnificamente recebido pela rainha, sua irmã, e pelo seu real cunhado.

A família do duque de Odern deixou os desfiladeiros de Camocim, e veio residir na capital do reino de Sarinhã, onde viveu sempre feliz e considerada.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

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