segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minha Estante de Livros (“Um solitário à espreita”, de Milton Hatoum)

A literatura, os afetos e a realidade examinados com lirismo e inteligência por um dos maiores ficcionistas brasileiros da atualidade. O amazonense Milton Hatoum é um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea, traduzido no exterior, reconhecido por um vasto número de leitores e admirado pela melhor crítica.

Além de ficcionista, Hatoum também é cronista de mão cheia, espraiando seu texto leve e inteligente por diversas publicações. É o caso das crônicas selecionadas para este volume, noventa e seis amostras do texto sensível e arguto do autor de Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e outros títulos.

Dividido em quatro seções que dão conta de temas como língua e literatura, a realidade, a memória e os afetos, além de pequenas fabulações, Um solitário à espreita traz para a forma da crônica, este gênero tradicionalmente praticado por alguns dos melhores autores brasileiros, a visão de mundo e as opiniões de Milton Hatoum. O futuro da literatura, a dureza dos anos vividos sob o regime militar, a realidade cambiante das nossas grandes cidades - tudo isso vem embalado numa prosa tão gentil quanto especulativa, tão sagaz quanto calorosa. Um passeio delicioso, em suma.

Na coletânea Um solitário à espreita o autor sempre relaciona  algumas  crônicas  com sua  infância  e  adolescência  em  meio  ao  cenário  manauara, Manaus  tem  uma  grande importância para o autor, pois ele faz questão de relata-la de maneira que se fixe bem para seu leitor  os valores  culturais  e  arquitetônicos, a modificação  do  espaço  geográfico,  com  o abandono  e destruição  do cenário histórico o  inquieta, talvez  por  isso percebe-se  nestas crônicas,a tamanha importância de retomar o passado, para deixar registrado que Manaus foi algo  deslumbrante  e  que  hoje,  assim  como  toda  grande  metrópole,  teve  e  vem  sendo modificada drasticamente perdendo um pouco sua identidade ou buscando uma.

Em Segredos da Marquesa, por exemplo, podemos perceber algumas palavras típicas da região e que provavelmente irá despertar a curiosidade do leitor e que retrata a Manaus antiga, rica, porém contrastava com a pobreza de seus moradores. o autor retoma a infância para falar de uma mulher, e busca palavras da região, assim como comidas típicas, a riqueza citando cinemas e teatros. O leitor, não sendo da região amazônica, nunca irá saber o que é curumins e cunhantãs, tacacá, a grandeza que era o cine Guarany e Odeon, a menos que se busque na história, na época da borracha, o qual significante ela foi para a região. Utilizou-se do tema de adultério do qual a marquesa era o centro da crônica, para narrar como era a vida urbana em Manaus, o seu despontar na época da borracha, o que se refletia nos cinemas e teatros.

Outro ponto principal, é que a crônica além de registrar fatos do cotidiano, ela fixa época, e para Hatoum a fixação na maioria das vezes vem acompanhada de ficção, na qual deixa para que o leitor essa escolha (realidade ou ficção) dos fatos que registram estes acontecimentos socioculturais da época, já que os eventos narrados estão situados no contexto histórico, em determinados lugares, espaço e tempo, hora psicológico, hora cronológico.

Para Hatoum ao falar de sua mãe, o ser mais afetuoso que maioria de nós a cultuamos, para ele não é diferente, mais a coloca de forma também de lembrança, como em um retrato, em um telefonema, indo ao dentista, a feira, coisas simples que a torna admirável e por quem se criou afeto.

No livro ele demonstra outros afetos, como por exemplo, pela cidade de Manaus, ao lembrar-se da sua infância e vindas depois de alguns anos fora, pelos familiares e amigos, por seu papagaio de estimação, a vizinhos, a professores, aos lugares que viveu, enfim, realmente Hatoum é um ser afetuoso e que não esconde isso, pelo contrário, o expõe de maneira simples e bem deliciosa de se ler, seria a forma de retribuir seu afeto ao público.

Um Solitário à Espreita é um livro desafiador, devido sua forma híbrida: meio crônica, meio conto, meio tábua de memória, com a reunião do que de melhor Hatoum escreveu em revistas, jornais e sítios literários pelo Brasil e mundo afora nos últimos anos. O título do livro por si só, Um Solitário à Espreita, desafia-nos a pensar no ato de um sujeito que sonda o cotidiano, trazendo para o lado do autor, seria ele como o criador, o solitário, com seus pensamentos que é terra de ninguém somente dele, transpondo para a escrita o que vê, as pessoas, a natureza, a vida. E ao mesmo tempo o leitor sem a solidão, pois diante de um livro ninguém é solitário, mesmo que para isso se esteja em silêncio, pois na verdade, é o silêncio que nos espreita, fazendo-nos transportar, pensar, concordar ou discordar, viver o que está ali registrado.

Algo bem interessante do livro é a metalinguagem que permeia a maioria dos textos. O livro Um Solitário à Espreita é um espelho, pode servir como uma espécie de modelo para quem almeja a escrita, como belo exemplo de roteiro podemos citar, as crônicas “Um Inseto Sentimental” e “Celebridades, Personagens e Bananas”. Sua humildade e maturidade faz com que Hatoum se importe em transparecer, na sua escrita, essa “cartilha” o passo-a-passo aos que se interessam em aprender a dominar a escrita. Somado a isso ele deixa no rastro de sua escrita um rol de autores, livros e personagens: J. L. Borges, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Max Martins, Charles Baudelaire, Nicolas Behr, João Cabral de Melo Neto, Juan Carlo Onetti, Gustave Flaubert, entre outros.

Não é a toa, que Hatoum é considerado um dos principais ficcionistas brasileiros da atualidade, nada pretensioso ele mescla, ficção e realidade, leituras e autores marcantes, bem como seus personagens inesquecíveis. Ao falar de política, trata com ironia e critica; ao falar da pobreza e miséria, aflora sua revolta e humanismo; ao relembrar suas viagens, é como se retomasse as aventuras e experiências que o fizeram melhorar; também fala do exílio e migração assuntos que percebemos a solidariedade e o lado sensível para com seus amigos e desconhecidos.

Porém o que mais chama atenção no livro é o fato de que pode ser lido como uma coletânea de textos de experiências que se fez fixadora na memória de Hatoum. Manaus tem uma grande oportunidade de fixação de seus valores culturais e arquitetônicos, a destruição do passado histórico percebe-se nas páginas, incomoda sobremaneira o cronista. Com narrativas curtas, também característica da crônica, é como se o que está escrito houvesse a finalidade fixar-se na mente e no imaginário de quem a ler, de maneira rápida, porém duradoura.

Embora Manaus (e os arredores do Rio Negro) funcione como uma espécie de eco simbólico da infância do autor, Belém também tem seus momentos de citação, em quatro crônicas do livro. Enfim, Um Solitário à Espreita é uma obra que nos toca e nos faz lembrar e ter um olhar diferente diante de coisas que outrora eram despercebidas, como a simplicidade do vendedor de frutas, um inseto, uma conversa, a ida ao médico, a chuva ou um dia de sol, tudo que se espreitar, que é o observar atentamente, pode ter a dimensão que se quer e se tornar inesquecível ao ser registrado através da escrita.

Fontes:
Companhia das Letras.
– Trechos do artigo de Manoela da Silva Rodrigues. Análise sobre as crônicas de Milton Hatoum: Um solitário à espreita. Revista Decifrar. vol. 04, n. 07. Manaus/AM: Universidade Federal do Amazonas – UFAM, Janl/Jun-2016.

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