terça-feira, 30 de novembro de 2021

Cristovão Tezza (Aula de reforço)

Estava distraída e quase deixou queimar o pão, olhando pela janela da cozinha, quando o telefone tocou — uma, duas, três vezes. Correu, pegou o fone e voltou a tempo de salvar o pão.

— É a professora Beatriz?

Demorou a responder — o “professora” soou repentinamente estranho, como se não fosse ela.

— Sim?

— É o meu filho. Ele vai fazer vestibular. Não é que ele escreva mal, ele é muito inteligente. Mas precisa de um reforço. De um reforço em tudo — é muito dispersivo. Falaram muito bem de você! Disseram que você faz milagres. Você faz milagres? — e a mulher riu.

Beatriz arriscou um diagnóstico prévio: mãe dominadora, com um certo humor invasivo, o que duplica o perigo. Mas ela estava mesmo precisando de aulas extras.

— A gente tenta fazer milagres. Às vezes não dá certo — acrescentou, arrependendo-se em seguida. Mas a mulher não ouviu: — Você está disponível? Poderia começar hoje mesmo?

Beatriz preferia quando perguntavam antes o preço da aula. Falar de dinheiro é sempre desagradável — as pessoas baixam a voz, olham para os lados, disfarçam, cheias de dedos. Parece que somos todos traficantes nesta vida, pessoas sujas que escondem o dinheiro na bolsa e só o mostram olhando para os lados, suspeitosas — e era como se Beatriz visse a imagem que pensava. Mas algo lhe dizia, pelo tom de voz, que essa mulher pagaria bem, sem chiar. Essas pessoas que querem tudo para ontem e bancam a exigência.

— Só um minutinho, senhora.

Colocou o telefone na pia, tirou o pão da frigideira, com capricho, e colocou sobre um pires. Parecia bom, tostadinho sem queimar. Retomou o fone:

— Pode ser à tarde? À tarde estou livre. Às duas, está bem?

Estava.

— Mas talvez fosse bom nós duas conversarmos antes sobre o meu filho. Eu poderia lhe dar uma orientação. Ele é um menino... como dizer?

Não diga.

— Tudo bem, só que... o seu nome? Ah, dona Sara, a gente conversa, sim, é claro. Mas agora tenho de sair correndo. A senhora me passaria o endereço?

Desceu do ônibus próximo da rua transversal que cruzava a avenida Batel — região de gente rica, principalmente naquela sequência de três prédios para onde ela estava indo, procurando o número, 227, é ali, o prédio do meio. Pensou que talvez devesse ter vindo com uma roupa menos informal, aquele uniforme jeans, tênis azul, blusa branca, laço no pescoço, a pasta com os textos na mão, mas subindo a rampa da portaria se distraiu, bobagem, estou muito bem, mentiu, lembrando da farmácia em que teria de passar na volta. Estava deprimida. Diante do porteiro, ficou muda, uma impaciência não localizada na cabeça. Parece que a minha vida é me identificar com porteiros — sou uma vendedora de pizzas, e a ideia de que disse isso em vez do “Beatriz” suspirante que de fato confessou acabou por distraí-la novamente. O porteiro falava baixo no interfone; talvez ela fosse recusada e voltaria para a rua sem jamais conhecer o garoto dispersivo (hiperativo? déficit de atenção?) que precisava de um reforço, mas o porteiro agitou-se, levantando-se como quem súbito descobre que está diante de alguém realmente importante, o médico na urgência, o encanador que vai resolver o dilúvio no banheiro, o técnico da televisão cinco minutos antes do penúltimo capítulo da novela.

— Por aqui, senhora!

Solícito — a espinha já se curvando, os passos rápidos até o elevador, no qual se atirou em três passadas para abrir a porta antes que, vindo da garagem, ele se fosse para o alto, é no sétimo andar, uma mesura respeitosa diante da senhora, Beatriz sorriu, senhora, e desejou ardente um espelho para avaliar os 28 anos incompletos, mas deu de cara com um cãozinho repolhudo que latiu três vezes, um latido fino, agudo, irritante, aliás como a dona, esta sim uma senhora, que gentil pediu desculpa:

— Desculpe, mocinha. Essa menina aqui é muito espevitada!

Muito es-pe-vi-ta-di-nha! — esfregava o focinho no focinho do bicho:

— Sua bagunceirinha! Fica latindo para as visitas! Que feio!

Será essa a mulher? — assustou-se Beatriz, mas não; no quinto andar a senhora pediu licença e saiu do elevador; o cãozinho latiu de novo, quase pulando do colo da mulher para morder Beatriz. A porta se fechou e ela ouviu mais repreensões da mãe para a filhinha, que sumiram em fade out até que o sétimo céu, o sétimo andar, corrigiu-se ela, estou maluca, se abrisse e uma mulher grande lhe estendesse os braços que também pareciam enormes:

— Professora Beatriz!? — Parecia uma velha tia, vendo a sobrinha cinco anos depois; só faltava dizer como você cresceu, mas chegou perto: — Você é uma gracinha de menina! — e os braços se esticavam, as mãos nos ombros de Beatriz, avaliando a peça. — Eu não sabia que você era tão nova! — Puxava-a pela mão: — Venha por aqui, vamos conversar.

Atravessou o breve hall cheio de peças douradas, plantas e quadros, percebendo que no prédio havia um só apartamento por andar, e em seguida passou pela porta imensa que dava a uma sala igualmente imensa com uma profusão de tapetes, mesas, poltronas, cores, luminárias, cortinas, tudo muito limpo e sólido, nenhum livro nas paredes, mas o olhar não conseguia se deter, a mulher era rápida — num momento, viu um vulto que apareceu na moldura de uma porta, e sumiu em seguida, como quem se esconde. E agora estava sentada diante da mulher, numa mesa de uma outra sala, menor.

— Que bom que você veio — e sorriam os olhinhos miúdos da mulher, os cabelos vermelhos em torno de um rosto redondo como uma bolacha recheada, bochechas salientes logo acima de dois queixos discretos acima de um pescoço curto. Havia entretanto uma perquirição residual no olhar, alguém que ainda precisa se convencer de que está fazendo um bom negócio.

Tímida, Beatriz restou desconfortável naquele breve momento, em busca do que dizer; a ideia de que provavelmente seria bem paga (na mesa nua, havia apenas um silencioso talão de cheques com uma caneta atravessada, a um palmo da mão direita, gordinha, de dona Sara) contrabalançava-se com a ideia de que aquilo seria muito chato.

— O Eduardo (a gente chama ele de Dudu), o Dudu é muito dispersivo. Rapaz inteligente. — Ela baixou a voz: — É filho do meu primeiro casamento. Você é solteira? Ele...

Seria o vulto da porta? Aliás, com todas as portas escancaradas, o Duduzinho estaria ouvindo a interminável metralhadora. A clássica mãe superprotetora com sentimento de culpa. Isso cansa. Num lapso, Beatriz lembrou o aborto que fez, sete meses depois de casada, e levantou-se, súbita, olhando para o relógio, ainda tentando ser gentil:

— Dona Sara, eu tenho outra aula às quatro. Talvez a gente deva começar.

— Isso mesmo! — concordou dona Sara imediatamente, levantando-se também, decidida, como se fosse dela a ideia de começar logo.

— Faça uma avaliação e conversamos!

De volta à sala maior, ela se viu enfim diante de Dudu, ao centro de uma mesa humilhante de tão pesada e bonita, um de cada lado, como numa conferência da ONU. Um garoto bonito, delicado, inseguro e tímido, as mãos enormes sobre a mesa, pontas visíveis de uma alma ainda incompleta; custou a olhar para ela; quando olhou, ela imaginou ver lá no fundo dos olhos azuis um pedido de socorro, mas isso era só uma transferência do sentimento dela, quando enfim dona Sara desapareceu dali, ainda que deixando todas as portas abertas; não parecia uma casa; parecia um conjunto de salões e corredores.

Uma aula particular é uma consulta médica, ela fantasiou — é preciso privacidade. Praticamente cochichavam:

— Eduardo, vamos fazer alguns exercícios, só para eu conferir como você está. Tudo bem?

Percebeu nela mesma o tom quase severo da professora, o breve peso da autoridade que compensa a insegurança diante de uma situação nova; talvez o menino se sentisse traído, imaginou. De qualquer modo, sentiu-se bem: estava no seu papel, e era sempre um prazer descobrir o que as pessoas sentem quando escrevem, o que elas escrevem, o mistério daquelas palavras sofridas em sequência. Cada caso era mesmo sempre um caso, negando o chavão com um chavão. Vamos ao trabalho, disse ela, apresentando-lhe uma folha impressa que tirou da pasta: junte as duas sentenças em uma única frase, fazendo as modificações necessárias. Primeiro: O homem fugiu. O casaco do homem era verde. Segundo: Estava chovendo. Ele saiu sem guardachuva. (Use “embora”).

Dudu era canhoto. Enquanto ele escrevia um tanto penosamente — a letra quase ilegível, Beatriz avaliou, de ponta-cabeça, enquanto as linhas saíam da caneta esferográfica que ele tentava esmagar com os dedos —, ela chegou a ver mais uma vez a cabeça de dona Sara lá adiante, como uma aparição, desaparecendo em seguida. Talvez ela queira que a gente fale mais alto, para poder nos ouvir. Conferiu o resultado, que o garoto estendeu lentamente, talvez temendo a resposta:

- O homem que o casaco era verde fugiu. Embora chovendo, ele saiu sem guarda-chuva. Ela sorriu, estimulante. Ele não conhece o cujo e não sabe usar subjuntivo. Em duas frases, o retrato inteiro para um estudo de caso. A segunda frase não estava tecnicamente errada, ainda que ambígua. Ficou tranquila: teria serviço para alguns meses. Estavam em abril, o vestibular é em dezembro. Estendeu para ele uma outra folha, com um texto informativo de três parágrafos sobre o desmatamento na Amazônia.

— Leia em voz alta esse texto. Eu vou fazer algumas perguntas, a gente conversa um pouco, e então você escreve um resumo usando 50 palavras. Tudo bem?

— Você não quer um cafezinho? — a voz da mulher reapareceu lá de longe, alta, como quem chama alguém no outro lado da rua.

— Não, obrigada, dona Sara. É melhor a gente se concentrar na aula.

Uma ligeira repreensão no tom de voz. O rapaz olhava para o texto, sem ler, visivelmente pensando em outra coisa — e então estendeu a mão e pediu licença para conferir de novo as frases que havia escrito.

— Eu poderia usar o “cujo” aqui? Tipo, o rapaz cujo o casaco era verde fugiu?

Ela sorriu, animada:

— Sim, é claro; seria o justo. Mas não “cujo o”; apenas “cujo casaco”. As expressões cujo, cuja, cujos, cujas já incluem o artigo.

— Mas ninguém fala assim. Todo mundo diz a pessoa que o casaco.

Ela sentiu que ele queria marcar território.

— Certo! Mas escreve-se assim. É a chamada língua padrão, norma culta.

— Eu imaginei que a pessoa nessa frase estava falando e não escrevendo.

Ela conferiu nos olhos dele: havia um toque de humor. Apenas uma breve pegadinha, não uma provocação. Sorriu:

— Sim, você está certo. O registro da frase não estava adequado. Que ótimo que você percebeu! Vamos à leitura?

Ele lia razoavelmente bem, com uma voz quase feminina. Atrapalhou-se apenas com uma sequência de orações subordinadas, que ele teve de refazer para que acabassem em pergunta; e não sabia o que significa diáfano e rotundamente. Ela explicou — e sugeriu que ele comprasse um dicionário.

— O dicionário é fundamental para quem escreve.

— Eu tenho a versão eletrônica no computador.

O resumo não ficou bom — ele queimou as 50 palavras apenas com o assunto do primeiro parágrafo —, mas o texto estava até razoável: só um erro de concordância (acontece queimadas todos os meses) e outro de ortografia (encontrarão por encontraram). Enfim: estava diante de um caso típico. Já tinha praticamente um curso completo destinado a ele, só venderia a mão de obra — e quando dona Sara se aproximou, uma hora depois, conclamando-a para tomar um café, começou a pensar no preço que cobraria. Súbito, o rapaz desapareceu e ela se viu diante de outra mesa, em outra sala, tendo de decidir entre o chá e o café. Havia uns cinco tipos de bolachas — uma empregada uniformizada surgiu de lugar nenhum, depositou outra bandeja e se retirou em silêncio para o fundo de um corredor de onde vinha o som distante de uma televisão. Beatriz começou a se sentir desconfortável, a mão quente da mulher sobre o seu braço.

– E que tal o meu filho? Não é inteligente?

Sim, sim, ele é ótimo, ele é muito melhor que a senhora”, ela quase disse, - E sabe o que eu ia propor a você, eu achei que ele gostou tanto de você que — e Beatriz se serviu de café, apenas café, e escolheu um modelo de bolacha que parecia apetitosa, e era — que eu estava pensando se; mas se sirva, por favor. - Oitenta reais  não, é muito. Se o meu padrão é quarenta, posso pedir cinquenta, talvez sessenta a hora, ela calculou, quem sabe duas, três aulas por semana, isso representaria um desafogo bom enquanto ela — enquanto ela o quê? O café estava bom, forte, e ela pôs um pouco mais de açúcar, esperando o momento para encaixar seu preço, mas dona Sara falava sem parar: sim, sim, eu digo mesmo sair com ele, respirar um pouco outro ar, acho que a minha presença — ela baixou a voz para confessar — é um tanto, assim quero dizer, eu intimido, sabe? Ele está nessa fase terrível. - Mas do que essa mulher está falando? — e pegou outra bolacha, sentindo a clássica pontada no pescoço que sempre reaparecia em seus momentos de tensão. Bem, a aula pode ser em outro lugar, é claro, ela acabou dizendo, sem oferecer a própria casa, embora fosse o ideal, não precisaria pegar ônibus — Ir ao cinema, eu digo, temas de redações, tudo isso seria muito bom para ele, escrever sobre a vida, os dedos quentes de dona Sara como que pediam socorro e desculpa ao mesmo tempo, apertando-lhe suavemente o braço, enquanto a cabeça se aproximava, - isso seria muito bom e vocês ficariam à vontade, compreende? Até na mesa de um barzinho, se fosse o caso — e colocou a mão na boca, um escândalo envergonhado: — Eu acho até que ele é virgem! — e deu uma risadinha nervosa. Na verdade ela não quer saber como o filho escreve, surpreendeu-se Beatriz, a bolacha na boca, como uma ficha que entala — Ele passa o dia no computador e isso não é bom, é — bem, ele precisa ver gente, nem tem namorada, nada, e isso afeta o estudo, é claro. Mais café? - Enfim mastigou a bolacha, lentamente, pensando: oitenta reais e desaparecer por aquela porta para nunca mais voltar. Controlou o desejo de se erguer súbita e sair dali. Viu a mulher estender o pratinho — experimente esse, de amora, é uma delícia de recheio — e depois puxar para si o talão de cheques que não saiu da mesa em nenhum momento, como uma boia de segurança:

— Pensei em cem reais a hora cheia, Beatriz. Está bom para você?

Uma letra rápida e criptográfica preenchia o cheque, quase que antes mesmo de ouvir aquele “sim, mas” tímido que ela balbuciou tentando articular uma estratégia qualquer que colocasse as coisas nitidamente nos seus lugares para todo o sempre, o que afinal essa bruxa está querendo de mim?

— Aqui está o telefone dele, você pode marcar com o Dudu mesmo.

E virou-se para o vulto da empregada que reapareceu no corredor, Fulana, eles vão entregar o baú daqui a pouco, e a mulher disse, a voz séria e rouca, Sim, dona Sara, e Beatriz viu-se quase abandonada na sala, dona Sara desculpou-se, comprei um baú lindo, tinha o que fazer, obrigado, menina, você é ótima, um fantasma que troca súbito de script. Levou outro susto ao ver diante do elevador a figura alta de Eduardo, abrindo gentil a porta para ela, e ela temeu que ele descesse junto para acertarem os detalhes, mas não — ele só queria dizer, sussurrando: Desculpe, minha mãe é louca. Ligue diretamente para mim — e antes de a porta fechar ela viu o vulto da mãe reaparecendo lá adiante, discreta, contemplando a despedida, como quem confere se tudo correu de acordo.

Dois andares abaixo, o cãozinho latiu de novo de algum lugar distante no espaço. Ela lembrou que teria de passar na farmácia, e abriu a bolsa para conferir se o cheque estava mesmo certo.

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

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