quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Pepino e chuva de arroz)

NO INTERIOR da loja vazia, o casal de funcionários tenta matar o tempo. O rapaz lê um gibi do Fantasma e o casamento dele com a linda e esfuziante Diana, na lendária “Caverna da Caveira.” A moça folheia uma Marie Claire dos idos de quando a modelo Kylie Bax (da Marilyn) ainda se constituía na sensação do momento e Marilene Felinto atravessava a caatinga e entrevistava a escritora Rachel de Queiróz. Vez em quando, crava os desconfortos de não ter nada a fazer, num painel gigantesco onde uma onça pintada na vedação provisória em frente de uma futura loja em construção se desbotou e deixou de ser um chamarisco (chamariz) para os que vem e vão. O rapaz parece absorto na história em quadrinhos. Nem pisca. A moça segue com a revista nas mãos. Seu rosto é vazio e cheio de tediosa melancolia. 

Para variar, espia demoradamente para o relógio de pulso e para um outro pregado na parede logo acima das vitrinas. As horas parecem paradas no espaço. O calor é sufocante. O ventilador de teto não dá vazão, ao contrário, faz um barulho estranho e ensurdecedor. Vento que é bom, para refrescar o ambiente, deixa a desejar. O rapaz larga a revista e some atrás de um biombo azul marinho, onde há um reservado longe das vistas do público. Prepara um café. Vira, de vez, o copo de plástico minúsculo e se queda numa fisionomia de poucos amigos. “Maldita garrafa térmica” – pensa –, enquanto se livra do copinho que atira ao cesto –, “não serve nem para manter uma bebida em temperatura agradável.” 

Volta para seu posto. Reassume a cadeira e continua a leitura de onde interrompeu. A moça, igualmente larga a revista. Nada que prenda a sua atenção. Levanta, vai também até o reservado. Pega um copo de água e emborca num gole só. Quando volta –, dá de frente com um senhor entrando na loja, atarracada a uma criança de colo nos braços. Caminha até ele, solícita, como uma boa atendente deve ser. As mãos cruzadas às costas, um sorriso forçado nos lábios carnudos. “Meu Deus, ainda bem que apareceu alguém.”
— Pois não? Em que posso ajuda-lo?
— Em nada. Estou só dando uma olhadinha. Obrigado! 
— Fique à vontade.

O cidadão não demora mais que cinco minutos. Sai, em seguida, não sem antes fazer um aceno de cabeça à jovem. Ela então o segue até a porta. Olha demoradamente para o saguão. Um número infindável de pessoas caminha, de um lado para outro. A praça onde está montado um parquinho, tem crianças de todas as idades saindo pelo ladrão. Ao contrário do seu comércio. Desolado e vazio. O rapaz larga o gibi. Resolve fazer companhia à amiga de infortúnio. Se posta ao lado dela. Fala:
— Já pensou se metade desse povo resolvesse entrar aqui?
Risos:
— Venderíamos bem.
— A comissão seria gorda.

— É verdade.
— Por que será que ninguém vem para o nosso lado?
— O produto que vendemos não faz parte daqueles considerados de primeira necessidade.
— Claro que sim.
— Faça um teste. Tente contar, no meio da multidão, quantas pessoas estão usando óculos. E quantas se cruzam mastigando um lanche.
— Vamos ver: uma, duas, três... quatro...
O tempo passa:
— Ali, aquela madame de vermelho. Cinco.
— A beldade de saia bordada. Seis.

As horas, ao contrário, parecem algemadas aos ponteiros que não deixam o tempo seguir seu curso:
— Só consegui meia dúzia.
— Conte, agora, os comilões...
— Um, dois, três, cinco, nove, doze, quinze... tem razão.
— Claro que o shopping não vive só de famintos. Observe aquela loja de calças e saias jeans. 
— Um formigueiro.
— E aquela, de calçados?
— Repleta.
— Já espiou na de eletroeletrônicos?
— Não dá nem para os vendedores respirarem.

— Consegue contar o número de cabeças nos jogos eletrônicos?
— Impossível.
— Tem gente esperando vez.
— E quanto a nós?
— Ninguém entra.
— Nem sai...  
— Engraçadinho.
— E se fizéssemos uma promoção?
— Como assim?
— Suponhamos que colocássemos nas vitrinas algo chamativo?

— Algo chamativo? Numa ótica? Só se fosse você pelada com um monte de armações penduradas no pescoço...
A jovem se irrita. Solta os cachorros: 
— Por que não chama sua mãezinha?
— Apesar dela ser bem idosa, nunca precisou dessas porcarias. Aliás, odeia qualquer tipo de armação. Quiser arranjar briga com ela é pedir para botar -, ainda que para experimentar, um óculo de sol, de descanso, ou de grau. Certamente viraria bicho. 
— Sua irmã?
— Qual é. Resolveu me ofender?

— Você começou. Pensei em algo que empanturrasse de coraçõezinhos vermelhos e pulsantes os olhos da galera. E você me vem com essa de me por exposta, e ainda por cima pelada, sem nada, na vitrine. Faça graça!
— Não precisava me levar a mal. Falei brincando. O negócio é descontrair. Cá entre nós: que iria alvoroçar com a massa circundante, não tenho a menor dúvida.
— Vamos botar você pelado. O que me diz?
— Sou muito feio...
— Aposto que abafaria. Sua feiúra ajudaria...

— Nem morto. Que tal nós?... quero dizer... cada um colocando os óculos na cara um do outro?
— Mané.
A funcionária volta, meio que furiosa, para seu lugar e se conforma em enganar o tempo “refolheando” a velha Marie Claire. Parece se interessar, por uma reportagem sobre homens grávidos. O rapaz também vem no vácuo dela. Se acomoda, amofinado. A história do Fantasma da “Caverna da Caveira” (tirando, claro, a colega pelada, exposta como veio ao mundo na vitrine), daria mais emoção e literalmente prenderia a atenção. 

Não dos possíveis clientes, obviamente, mas dele próprio. Quanto a tal questão proposta, não haveria a menor dúvida. A loja deserta de clientes viraria uma algazarra tormentosa jamais vista naquele quadrado. A ótica esquecida deixaria de ser fria como o gelo do piso e se tornaria causticante como o inferno na parte de dentro, onde a massa humana em total alvoroço, para se aproximar da peladona, não teria espaço, sequer para respirar.   

Fonte: Texto enviado pelo autor 

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