Tulio Buti alugara aquele quarto havia dois meses apenas. A dona da casa, Senhora Nini, boa velhota à antiga, e a filha, solteirona, desiludida, não o viam nunca. Ele costumava sair de casa, todos os dias, de manhã cedo, e só voltava à noite, a horas mortas. Sabiam que era funcionário do Ministério de Graça e Justiça; sabiam também que era advogado. Mais nada.
O quarto, pequeno e estreito, modestamente mobiliado, não conservava nenhum vestígio seu, como se ele, de propósito, quisesse aí permanecer ignorado, como num quarto de hotel. Uma caixa de madeira para a roupa branca; um armário para os ternos; mas nas paredes, sobre os outros móveis, nada; nem um estojo, nem um livro, nem um retrato; nada, nem nunca, sobre alguma cadeira, uma peça de roupa branca esquecida, um colete, uma gravata, nada enfim que pudesse confirmar a sua existência naquela casa.
Mãe e filha temiam que ele aí não permanecesse muito tempo. Fora tão difícil alugar aquele quarto! Vieram vê-lo muitos, mas ninguém o quis. Realmente, não era muito cômodo, nem muito alegre. Tinha só uma janela, que dava para uma ruazinha estreita, privada, e da qual não recebia luz nem ar, devido à casa fronteira, que o impedia.
Mãe e filha estudavam e preparavam atenções e cuidados para prender o inquilino tão almejado: "Faremos isto... diremos isto..." — e mais isto e mais aquilo; sobretudo a filha, Clotildinha... Quantas delicadezas, quantas finezas! Tudo, porém, desinteressadamente, sem malícia, sem segundas intenções... Mas como, se ele não aparecia nunca?
Se acaso o vissem, compreenderiam logo quanto era infundado o seu receio. Aquele quartinho triste, escuro, tapado pela casa fronteira, condizia bem com o temperamento do inquilino.
Tulio Buti andava sempre sozinho, sem mesmo os dois companheiros dos solitários mais equívocos: a bengala e o cigarro. Com as mãos enterradas nos bolsos do capote de ombros encolhidos, taciturno, dir-se-ia que incubasse o ódio mais profundo contra a vida.
Na repartição não trocava nem uma palavra com os seus colegas, os quais hesitavam entre os dois apelidos que lhe enquadrassem melhor: urso ou coruja.
Ainda ninguém o vira entrar, à tarde, num café; em compensação, muitos o tinham visto evitar, às pressas, as ruas mais frequentadas e iluminadas, para mergulhar na sombra das longas alamedas, direitas e solitárias, dos arrabaldes distantes, afastando-se dos muros, toda vez que encontrava o círculo de luz que os faróis projetam sobre a calçada.
Nem um gesto involuntário, nem mesmo a mínima contração dos músculos da face, nem um movimento dos olhos ou dos lábios traíam os pensamentos em que parecia absorto, o secreto pesar em que se fechava. Mas deste secreto pesar e dos lúgubres pensamentos que se lhe aninhavam no cérebro estava toda impregnada a sua fisionomia. A devastação, que eles deviam produzir naquela alma, estava flagrante na fixidez espasmódica dos olhos claros, agudos, na lividez do rosto desfigurado, nos precoces fios grisalhos da barba crespa e desleixada.
Tulio Buti não escrevia nem recebia cartas; não lia jornais; não parava nem se virava para ver o que quer que acontecesse pela rua e que atraísse a alheia curiosidade e, se alguma vez a chuva o colhia de improviso, continuava caminhando, no mesmo passo, como se nada tivesse acontecido.
Por que insistia em viver desse modo, era o que ninguém sabia... Nem ele mesmo, talvez. Vivia... Nem sequer suspeitava que fosse possível viver de modo diverso, ou então, que, vivendo-se diversamente, se poderia diminuir o peso da tristeza e do tédio.
Não tivera infância, não fora moço. As cenas selvagens a que assistira, no lar, desde os mais tenros anos, motivadas pela brutalidade e pela tirania feroz do pai, lhe haviam crestado no espírito todos os germes de vida.
Morta a mãe, vítima de atrozes sevícias do marido, a família se dispersara: uma irmã entrou para o convento, um irmão fugiu para a, América, ele também fugira e, errante, graças a incríveis sacrifícios, tinha conseguido alcançar a posição que hoje ocupava.
Agora, não sofria mais. Parecia que sofria, mas até o sentimento da dor se obliterara nele. Parecia que estava absorto sempre em pensamento, – engano - já nem sequer pensava. O espírito ficara-lhe como que suspenso numa espécie de atônita obscuridade, que só lhe permitia perceber um quê de amargo na garganta. À noite, passeando pelas ruas solitárias, contava, mentalmente, os lampiões, mais nada, ou olhava para a sua sombra ou escutava o som dos seus passos, ou alguma vez, parava diante dos jardins das vilas, a contemplar os ciprestes mudos e fechados como ele, mais noturnos do que a própria noite.
Naquele domingo, cansado do longo passeio pela rua Ápia antiga, e contra os seus hábitos, decidiu recolher-se. Era ainda cedo para a ceia. Ficaria esperando no quarto, que o dia acabasse de morrer.
Para as Nini, mãe e filha, foi uma surpresa bastante agradável. Clotildinha até bateu as mãos de contente. Quais dos muitos cuidados e atenções estudados e preparados, quais das muitas finezas e distinções particulares, dispensar-lhe em primeiro lugar? A mãe e a filha confabularam, e de repente, Clotildinha firmou um pé e bateu com a mão na testa. Ó, santo Deus, antes de tudo, a luz! Era preciso levar-lhe o lampião, o melhor, o que estava guardado de propósito, que tinha umas papoulas pintadas na porcelana, e era de globo esmerilhado. Acendeu-o, e foi bater discretamente à porta do inquilino. Tremia tanto, de emoção, que o globo, oscilando, batia no tubo, que ameaçava esfumaçar-se.
— Com licença? O lampião...
— Não, muito obrigado. — respondeu Buti, do outro lado. — Eu saio já.
A solteirona fez uma careta, e de olhos abaixados, como se o inquilino a estivesse vendo, insistiu:
— Tenho-o aqui... É para não deixá-lo no escuro...
Buti, porém, repetiu secamente:
— Não, muito obrigado.
Estava sentado no pequeno canapé, em frente à mesa, e escancarava os olhos na sombra que, pouco a pouco se ia adensando no quartinho, enquanto nos vidros da janela tristemente desmaiava o último reflexo do crepúsculo.
Quanto tempo esteve assim, inerte, com os olhos escancarados, sem pensar, sem perceber as trevas que já o tinham envolvido?
De repente, os seus olhos viram. Olhou em torno de si, espantado. O quarto se havia realmente iluminado, de improviso, como se um sopro misterioso o tivesse enchido de um brando lume discreto.
Que era? Que acontecera?
Isto: a luz da outra casa. Acendera-se, na casa fronteira, um lampião. Era o hálito de uma vida exterior que vinha desfazer as trevas, o vácuo, o deserto de sua existência...
Ficou, longo tempo, contemplando aquele clarão, como se fosse efeito de magia, e uma angústia intensa lhe apertou a garganta ao notar com que suave carícia ele se pousava sobre o seu leito, sobre a parede, e sobre as suas mãos pálidas abandonadas sobre a mesa. Surgiu-lhe no meio daquela angústia, a lembrança do seu lar destruído, da sua infância oprimida, de sua mãe, foi como se a luz de uma alvorada, de uma alvorada distante, expirasse na noite do seu espírito.
Ergueu-se, foi à janela e, furtivamente, por trás dos vidros, olhou para a casa fronteira, para a janela de onde lhe vinha aquele raio de luz.
Viu uma família pequena reunida em torno da mesa de jantar: três meninos, o pai, que estava sentado, e a mãe que, ainda de pé, os estava servindo e procurando — segundo o que ele deduzia dos movimentos — refrear a impaciência dos dois maiores, que brandiam a colher e se sacudiam na cadeira. O último esticava o pescoço, agitava a cabecinha loira: evidentemente, lhe haviam amarrado com muita força o guardanapo, mas se a mãe se apressasse em servir-lhe a sopa, ele não mais se queixaria daquele nó muito forte. Era isso mesmo. Com que voracidade começou a comer! Enfiava a colher inteira na boca... E o pai, através do fumo que se erguia do seu prato, ria. Agora, a mãe também se havia sentado ao lado deles, ali mesmo, em frente.... Tulio Buti tentou recuar, instintivamente, vendo que ela, ao sentar-se, erguera os olhos para a janela, mas lembrou-se de que, estando no escuro, não podia ser visto, e continuou a assistir a ceia daquela pequena família, esquecendo-se prontamente da sua.
Desse dia em diante, todas as tardes, saindo da repartição, ao invés de se dirigir para os seus habituais passeios solitários, enveredava pelo caminho da sua casa, esperava, todas as tardes, que as trevas do seu quarto se desfizessem, suavemente, sob a luz da outra casa, e aí ficava, atrás dos vidros, como um mendigo, a saborear, com angústia infinita, aquela doce e amorável intimidade, de que os outros gozavam e de que ele, em criança, numa ou noutra rara tarde de paz, gozara também, quando a mãe... a sua mãe... como aquela... e chorava.
Sim. A luz da outra casa operou este prodígio. A obscuridade atônita em que seu espírito permanecera suspenso durante tantos anos, se dissolveu sob o influxo daquela luz suave. Entretanto, Tulio Buti não pensou em todas as suposições estranhas que a sua atitude devia fazer nascer na dona da casa e na filha.
Por mais duas vezes, Clotildinha tentara oferecer-lhe o lampião. Tivesse, ao menos, acendido a vela! Não, nem isso. Porventura, sentia-se mal? 0usara perguntar-lhe Clotildinha, com voz meiga, na segunda vez que lhe fora bater à porta. Ele lhe havia respondido:
— Não! Estou bem assim...
Mas, santo Deus! Não precisava realmente de luz... Clotildinha espiava pelo buraco da fechadura e vira, maravilhada, no quarto do inquilino, a luz difusa da outra casa, exatamente da casa da família Masci, e o que é pior, vira ele, por trás dos vidros da janela preocupado em contemplar a casa da família Masci... E Clotildinha correra toda sobressaltada, a anunciar à mãe a grande descoberta:
— Ele está enamorado de Margarida! De Margarida Masci!
Poucos dias depois, uma tarde, enquanto estava a contemplar, Tulio Buti viu, com surpresa, naquela sala fronteira, onde a pequena família habitualmente — (naquela tarde faltava o pai) — se reunia ao jantar, viu entrar a velhinha, sua dona de casa e a filha, que foram acolhidas como amigas de longa data.
Num dado instante, Tulio Buti recuou, de um salto, ansioso, perturbado. A mãezinha e os três pequenos tinham erguido os olhos, na direção da sua janela. Sem dúvida, aquelas duas estavam falando dele.
E agora? Agora, talvez tudo estivesse acabado!
Na tarde seguinte, aquela mãezinha ou o marido, sabendo que no quartinho em frente havia um homem que misteriosamente os espiava na escuridão, fechariam as janelas, e assim daí por diante não lhe viria mais aquela luz de que vivia, aquela luz que era o seu gozo inocente, o seu consolo...
Mas não foi o que aconteceu.
Naquela mesma noite, assim que a luz da outra casa se apagou, e ele mergulhado na treva, depois de ter esperado ainda um pouco que a família se recolhesse, foi abrir cautelosamente a janela para renovar o ar, viu que a janela de lá estava também aberta, viu pouco depois (e, mesmo no escuro, teve um estremecimento de espanto), viu assomar àquela janela a mulher, talvez curiosa de tudo quanto lhe haviam contado dele as Nini, mãe e filha.
Aquelas duas casas muito altas, que abriam, tão perto um do outro, os olhos das suas janelas, não deixavam ver em cima a faixa clara do céu, nem embaixo a faixa escura da terra, fechada numa das extremidades por um portão, não deixavam penetrar jamais nem um raio de sol, nem um raio de lua.
Ela, portanto, não podia ter assomado à janela senão por causa dele e, naturalmente, porque percebera que ele também se achava debruçado na sua janela apagada.
Na escuridão, mal se podiam distinguir. Ele, porém, sabia desde algum tempo que ela era formosa; já lhe conhecia todo o encanto dos seus movimentos, os lampejos dos seus olhos pretos, os sorrisos dos seus lábios vermelhos...
Antes de tudo, porém, naquela primeira vez, devido à surpresa que o revolvia todo e lhe tolhia a respiração, num frêmito de inquietude, ele teve pena; foi preciso fazer um esforço violento sobre si mesmo para não recuar, para esperar que ela se retirasse antes dele.
Aquele sonho de paz, de amor, de suave e doce intimidade, que ele imaginara reinar sobre aquela pequena família e de que ele também, por reflexo, tinha até gozado, se desmanchava todo, se aquela mulher às escondidas, no escuro, vinha à janela por causa de um estranho... Mas este estranho não era ele? E antes de se retirar, antes de fechar a vidraça, ela lhe sussurrou:
— Boa-noite!
Que coisas haviam fantasiado a seu respeito as duas mulheres que o hospedavam, e que excitaram e acenderam tanto a curiosidade daquela mulher? Que atração estranha, poderosa, operava sobre ela o mistério daquela sua vida enclausurada, se desde a primeira vez ela, deixando de lado os seus filhinhos, viera a ele, como que para fazer-lhe companhia?
Sim, um em frente ao outro, ainda que ambos tivessem evitado olhar-se e tivessem quase fingido, reciprocamente, que estavam à janela sem nenhuma intenção, ambos sim, ambos — ele estava certo disso — tinham vibrado pelo mesmo frêmito de expectativa, ignorada, espantados da atração que, tão de perto, os envolvia no escuro.
Quando, muito tarde, ele fechou a janela, teve a certeza de que na tarde seguinte, depois de apagada a luz, ela voltaria por causa dele. E foi de fato assim.
Daí por diante, Tulio Buti não esperou mais no seu quarto a luz da outra casa; ao contrário esperou com impaciência que a luz se apagasse.
A paixão do amor, ainda não experimentada, irrompeu, devoradora, tremenda, no coração daquele homem que estivera por tantos anos fora da vida, e investiu, absorveu, arrastou, como num turbilhão, aquela mulher.
No mesmo dia em que ele se retirou do quartinho da casa das Nini, explodiu como uma bomba a notícia de que a senhora do terceiro andar, ao lado, a Masci, tinha abandonado o marido e os três filhos.
Ficou vazio o quartinho que hospedara, durante quase quatro meses, ao Buti; ficou apagada, por algumas semanas, a sala da frente, onde a pequena família costumava reunir-se à hora do jantar.
Depois, acendeu-se de novo a luz sobre aquela mesa triste em torno da qual um pai apalermado pela desgraça contemplava os rostos espantados de três crianças, que não ousavam volver os olhos para a porta, por onde a mãe costumava entrar todas as noites, com a sopeira fumegante.
Aquela luz reacendida sobre a mesa triste tornou, então, a clarear suavemente o quartinho fronteiro, vazio.
Lembraram-se dela, alguns meses após a sua cruel loucura, Tulio Buti e a amante?
Uma noite as Nini, espantadas, viram aparecer diante delas, desfigurado e convulso, o seu estranho inquilino, que queria o quarto, se ainda estivesse desalugado!
Não, não para si, não para morar! Mas poder ficar aí, todas as tardes, uma hora apenas, às escondidas! Ah, por piedade, por piedade daquela pobre mãe que desejava rever, de longe, sem ser vista, os seus filhinhos! Tomariam todas as precauções necessárias, se fosse preciso, se mascarariam, aproveitariam todas as tardes o momento em que não houvesse ninguém pelas escadas; ele pagaria o dobro, o triplo pelo aluguel, só para aquele minuto breve...
— Não. As Nini não quiseram consentir. Apenas enquanto o quartinho estivesse desalugado, consentiram que algumas vezes, muito raras...— Oh, mas pelo amor de Deus! Com a condição de que ninguém os descobrisse!... Algumas raras vezes...
Na tarde seguinte, eles vieram, como dois ladrões. Entraram, quase cambaleando, no quartinho às escuras, e esperaram, e esperaram que ele alvorecesse de novo sob a luz da outra casa.
Dessa luz deviam viver eles, assim, de longe.
E a luz apareceu!
Tulio Buti, a princípio, não pôde suportá-la. Como lhe pareceu gelada agora, ríspida, cruel, espectral, criminosa! Ela, porém, com os soluços que lhe borbulhavam na garganta, teve sede daquela luz, bebeu-a de um hausto, precipitou-se para os vidros da janela, apertando o lenço contra a boca. Os seus filhinhos... os seus filhinhos... os seus filhinhos estavam lá... à mesa, inocentes...
Ele correu a ampará-la nos braços, e ambos ficaram ali, estreitamente unidos, como que pregados, espiando.
Fonte: Luigi Pirandello. A luz da outra casa: novelas escolhidas. Publicado em 1932.
Disponível em Domínio Público
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