terça-feira, 3 de setembro de 2019

André Kondo (A Espada [ou A Katana])


Nas proximidades de Kamakura, a cidade do grande Buda de bronze, o velho mestre se concentrava em sua última obra. A sua profissão era a mais respeitada, a mais nobre de todas: forjador de almas. O espírito do samurai residia na lâmina da katana, a própria vida do guerreiro em forma de espada. Sendo assim, grandes samurais se curvavam diante do mestre, honrando o homem que afiou os seus espíritos.

Mestre Konosuke nunca havia falhado na confecção de uma katana. Nunca. Seu jovem discípulo, não jovem em idade, mas em experiência, pois ele forjava espadas há apenas dez anos, admirava a perfeição do mestre. Nenhuma lâmina que nascera das mãos do velho Konosuke havia se partido, nenhuma havia sequer se riscado em combate, A espada de mestre Konosuke era o próprio Bushido, o código samurai, escrito em aço.

Quando todo o Japão descobriu que o grande mestre da katana iria se recolher às montanhas, para terminar seus dias meditando até que a sua alma fosse levada ao vento, tal qual uma pétala de flor de cerejeira, muitos foram os guerreiros que bateram à sua porta. Para demonstrarem valor e merecimento, chegaram a exibir suas habilidades, organizando duelos mortais. Mas o velho Konosuke se mostrava impassível. Como sempre, esperava o guerreiro ideal para a espada que estava forjando.

Acreditava-se até que não era ele quem fabricava as espadas, mas os próprios deuses, que conduziam as mãos do mestre para levarem honra ao coração do samurai. Sendo assim, não era o guerreiro que encomendava a espada. Pelo contrário, era a espada que encomendava o guerreiro. Para entregar tanto poder a um homem, era preciso primeiro aliar o senso de justiça em seu coração...

Konosuke esperava pelo samurai que mereceria a sua última katana. Haveria de ser um guerreiro excepcional, por isso, Konosuke concentrava-se ainda mais em sua última espada.

Durante o processo de afiar uma alma, o bloco de aço passa por um longo processo, revezando-se entre fornalha e martelo, até que a liga perfeita nasce e o mestre passa a moldar seu caráter. Com o olhar, Konosuke golpeia o aço. Com as lágrimas, o esfria. Com o sopro da vida, o define. Com a alma percorre cada detalhe, cada partícula do aço que se transforma em espada. Porém, é apenas na etapa final que a lâmina pode se tornar venerável. Assim como a vida afia o homem mais forte e quebra o mais fraco, é nessa fase que o mestre descobre do que realmente é feita a sua espada.

Os dias se afiaram em semanas e as semanas cortaram os meses. Sem parar, o mestre se esmerava na lâmina de sua última espada. Começou com uma lixa grossa, passando a outras cada vez mais finas. Quando as lixas se tomaram mais delicadas do que papel de arroz, passou a usar apenas pó com água, esfregando a lâmina com o dedo. Retirando o pó, usava só a digital para afiar. E, por fim, apenas o próprio sopro.

Os guerreiros sobreviventes se cansaram de tanta espera e partiram. Mas enquanto partiam, outro guerreiro chegou naquele instante. Impaciente e desrespeitoso, o recém-chegado arrebentou a porta da oficina do velho Konosuke. Olhou-o com fúria, exigindo a espada. O mestre não se moveu. O guerreiro, indignado, sacou a espada e velozmente a fez zunir.

Konosuke manteve-se impassível. O guerreiro avançou com a espada, congelando sua extremidade a um milímetro do olho do mestre. Da inerte órbita, uma lágrima caiu sobre o aço da espada que estava sendo afiada. Uma única lágrima. O guerreiro recolheu a katana, dizendo que o próximo golpe lhe arrancaria a cabeça. O velho Konosuke despencou o olhar para a lágrima no metal, que tanto tempo havia sido afiado. Nunca havia passado tanto tempo em uma única lâmina. De fato, após tanto acariciar o aço, com os olhos marejados, não quis entregar a última katana ao guerreiro. Hesitava, mas nada pôde fazer para evitar a iminente separação.

Com os rumores do que se passava na casa do velho mestre, alguns aldeões para lá acorreram. Mas ninguém tinha coragem de enfrentar o ameaçador guerreiro, pois aquele era Goemon, o mais temido de todos os ronins. Aquele era o homem que havia desonrado todos os samurais, matando o seu próprio senhor. Muitos tentaram acabar com o monstro, mas nem trinta samurais foram capazes, tombando todos mortos.

O que poucos podiam compreender era por que Goemon havia poupado a vida do velho Konosuke. Ninguém nunca havia sobrevivido depois que o ronin desembainhava a espada. O que ninguém sabia era que Goemon era filho de Konosuke. Restava, ainda, uma gota de piedade filial no corpo do monstro.

Antes de se tomar um mestre em forjar espadas, Konosuke também havia sido samurai. E a sua habilidade em usar a espada era ainda maior do que a de afiá-la. Era um mestre destinado aos maiores feitos. Quando o filho nasceu, decidiu que faria dele um guerreiro insuperável. Ensinou-o com devoção. Sob sol e chuva, Konosuke o treinou. O pequeno Goemon não brincava. Nunca brincou. Nunca recebeu sequer um carinho do pai. Apenas treinava.

Era afiado por Konosuke para se tomar o guerreiro perfeito... Goemon cresceu, sendo aguçado ao extremo. Até que, um dia, Goemon se revoltou. E tão cortante era a sua revolta, que acabou ceifando muitas vidas. Desde esse dia, Konosuke nunca mais ousou levantar uma espada, a não ser para avaliar-lhe a curvatura.

Pois era esse o Goemon que, após anos espalhando o terror pelo Japão, reencontrava o velho pai para tomar-lhe a sua última espada. E foi esse Goemon que foi parado ao sair da oficina de Konosuke, por um camponês, cujo pai havia sido assassinado pelo monstro. Todos lançaram ao camponês um olhar que se joga a um morto.

O pobre rapaz segurava apenas um pedaço de pau, enquanto Goemon portava a espada mais afiada do mundo. Isso sem contar com as habilidades de guerreiro, que o camponês sequer possuía. Goemon riu tanto que não percebeu o avanço do camponês, que com um golpe visou a cabeça do oponente. Goemon defendeu-se com a espada, elevando-a entre o pedaço de pau e a sua cabeça.

Uma espada como aquela deveria fatiar até o tronco de um pinheiro. Entretanto, incrivelmente, a espada se partiu, Goemon recebeu o golpe na cabeça e tombou.

Konosuke correu em direção ao filho. Ajoelhou--se, Goemon olhou para o pai. O sangue cobrindo a face. Pela primeira vez na vida: a carícia no rosto do filho. Pediu-lhe perdão. Goemon balbuciou:

"Agora... que sei o que é o carinho de um pai... arrependo-me por todos os pais que matei... Estou pronto para reencontrar todos... E, depois, receber o castigo que mereço". Dizendo isso, o filho partiu antes do pai.

Dolorosos dias depois, Konosuke, com os olhos voltados para as distantes montanhas, disse ao seu discípulo:

— Nunca busque a perfeição em seu ofício...

— Como assim, mestre? Acaso isso tem a ver com a falha de sua última espada? — o aprendiz disse, arrependendo-se em seguida. — Perdoe-me, mestre. Não tive a intenção...

Não havia o que perdoar. A última espada de Konosuke havia apenas cumprido o seu destino. O mestre ergueu a cabeça e disse:

— Quando focava a última espada, imaginava para quem ela seria destinada. Todas as outras espadas haviam encontrado um guerreiro honrado. Quando eu terminava de afiar a espada, quando usava a última lixa, o guerreiro certo sempre aparecia e eu lhe entregava a katana... Mas nunca havia demorado tanto para que a espada e o guerreiro se encontrassem. Há muito já havia terminado de afiar a última espada, mas não podia acreditar que o serviço estivesse terminado até que o guerreiro certo a tomasse em suas mãos. Continuei afiando uma espada que já estava afiada. Persisti, pois imaginava que o momento de parar ainda não havia chegado. Pensei que os deuses queriam que eu atingisse a perfeição, porque, sendo aquela a última espada, deveria estar destinada ao guerreiro perfeito.

O discípulo ouvia com atenção.

— Fiquei surpreso quando, após tanta espera, o meu filho apareceu. Imaginei que os deuses haviam sido bondosos comigo. O meu amado filho havia voltado. Havia voltado para receber a última katana do velho pai. Meu coração estava tão repleto de alegria que nem percebi que o meu filho me apontava uma espada. E tão emocionado fiquei que derramei, sobre a lâmina que afiava, uma lágrima... Refeito, observei a lágrima sobre a lâmina. Ela escorria sobre uma minúscula fissura. Estava tão cego em minha missão de afiar ao máximo a espada, que não percebi que com isso eu a arruinava... Foi assim com o meu filho também. Queria que ele fosse perfeito e por isso eu o arruinei... Foi por isso que o meu filho não foi capaz de enxergar o amor em meus olhos. Ameaçou-me, exigindo a espada que eu já lhe desejava entregar, de coração, junto com um abraço que há tanto esperava dar...

Konosuke fez uma pausa, suspirou e continuou;

— Na busca pela perfeição, imaginava que quanto mais afiada fosse uma espada, mais perfeita ela seria. Agora, só no fim, aprendi que a perfeição reside em tornar a espada suficientemente afiada para nos defender de quem nos quer mal, mas sempre mantendo a capacidade de receber uma lágrima... de quem nos quer bem.

O mestre partiu. As cerejeiras já desabrochavam nas montanhas. A brisa era gentil, acariciava as flores... Mas tão apaixonada pelas pétalas estava a brisa, que não percebeu quando o seu intenso sentimento se tornou vento... que arrancou as flores de cerejeira, em um último suspiro.

[2. lugar no XV Concurso Literário da Academia Caxiense de Letras/RS; menção honrosa no XIV Concurso de Contos Alípio Mendes, do Ateneu Angrense de Letras e Artes (RJ); menção honrosa no XVI Prêmio Jorge Andrade, da Academia Barretense de Cultura/SP]

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

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