segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Carlos Drummond de Andrade (O Segredo do Cofre)


A casa, construída há séculos, ou pelo menos há sessenta anos, tinha uma curiosidade: o cofre de aço embutido na parede, com fechadura de segredo. Ninguém tomava conhecimento da peça; as joias da nova dona eram poucas e não exigiam tamanho resguardo; e o dinheiro do dono cabia folgadamente no bolso, esse cofre sem segredo dos pobres.

Com o tempo, aquilo foi esquecido. Mas um dia, o menino de fora instalou-se na casa, para passar férias e empreender algumas demolições. Findos os atrativos da primeira semana, aquele dínamo em forma de gente começou a explorar o desconhecido, e, à noite, descobriu o cofre, dissimulado por trás de um quadrinho a óleo.

— Vô, quero abrir esse cofre.

— Menino, deixa o cofre sossegado.

— Como é que você deixa um cofre trancado esse tempo todo, sem ver o que tem dentro?

— Não tem nada.

— Deixa ver.

— Perdi a chave, depois eu procuro.

— Não, é agora.

— Sei lá onde eu botei a explicação do segredo.

— Procura também. Se não achar, a gente roda o botão até descobrir como é que é.

Para escapar a uma chateação, o jeito é nos resignarmos a outra. Os troféus foram encontrados depois de intensa busca: a chave, numa pirâmide de coisas enferrujadas, que toda casa conserva sem objetivo aparente; a explicação, dentro da lista amarela de telefones, que se consulta quando se quer comprar não se sabe o que a não se sabe quem, não se sabe onde.

— Fique quietinho aí que eu vou abrir esse cofre para você ver.

— Mas eu queria…

— Menino! Você não se enxerga?

O Homem subiu à mesa, tirou o abajur para ver melhor. Sentou-se, acocorou-se, ajoelhou-se, transpirou. Nada. Os números do botão móvel do cofre estavam apagados pelo tempo, a vista do Homem era curta, cansada.

— Meu pai me contou que os ladrões usam talco — informou o garoto.

— Besteira. Em todo caso, me arranje a lata de talco.

Pois não é que clareia mesmo, aviva os números?

— Onde que teu pai aprendeu essa malandragem?

— Meu pai sabe, ora.

O Homem cumpriu religiosamente os itens da explicação da Casa Vulcano: três voltas para a direita, parar no 25, uma volta para a esquerda, parar no 37, voltar novamente para a direita até encontrar o 12. Nada. Com o calor e a luz no rosto, era de amargar.

O menino sorria:

— Você não está vendo que esse cofre não pode abrir porque foi pintado a óleo e as frinchas estão tapadas?

— É mesmo, confessa o Homem. Não tinha reparado. Agora me lembro que quando mandei pintar a casa… Com uma gilete eu raspo isso.

Vendo que gilete não resolvia, e antes que o Homem, já nervoso, ficasse sem dedo, o garoto apareceu com uma raspadeira fina e um martelo.

— Experimenta isso, vô. É mais prático.

Era. Mas uma ponta da raspadeira, manejada pela mão inábil do Homem, quebrou-se e ficou no interstício, atrapalhando.

— Por hoje chega, sabe? Amanhã mando chamar o serralheiro para ver essa porcaria. E o senhor aí vá dormir, que não é hora de menino de nove anos ficar acordado.

Era tão absurdo ir para a cama, diante de um cofre rebelde, que a resposta do garoto foi voltar à caixa de ferramentas, tirar um pequeno alicate e dizer:

— Deixa por minha conta.

Subiu à mesa com ar resoluto, acenou para o Homem: “Afasta”, e, num gesto leve, fisgou a pontinha encravada. Verificando que os espaços estavam desobstruídos, fez girar a maçaneta. O cofre abriu-se docilmente, como uma blusa.

Dentro, no meio de cartas e programas antiquíssimos de cinema, tinha um dólar de prata, de 1920.

— É meu — disse o vencedor, embolsando-o imediatamente. Para espanto do Homem, que jamais soubera existir na parede de sua casa um dólar de prata.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

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