sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Arthur de Azevedo (Fatalidade)


I

O Tenente de Cavalaria Remígio Soares, teve a infelicidade ver, uma noite, D. Andréia num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes, e por aqueles belos olhos negros e rasgados.

Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão, que se apresentava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia.

Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o Tenente Soares acompanhou, a certa distância, casal até o Largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele – um bonde do Bispo -, sentando-se, como por acaso, o lado de D. Andréia.

Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda, seria faltar à verdade. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, D. Andréia, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.

Ele ficou sabendo onde ela morava.

II

O Tenente Remígio Soares foi para a casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!

Mas – que contrariedade! -~ as janelas de D. Andréia estavam fechadas.

O cavaleiro foi até a Rua de Santa Alexandrina, e voltou patati, patatá, patati, patatá! e as janelas não se tinham aberto!

O passeio foi novamente renovado à tarde, – o tenente passou, tornou a passar, – continuavam fechadas as janelas!

Malditas janelas!…

Durante quatro dias o namorado foi e veio, a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!

– Mas, ao quinto dia – 0h! ventura! – ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.

Soube nessa ocasião que ela se chamava Andréia. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento: proibia expressamente à senhora sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérebros; uma tia do marido e um jardineiro muito fiel ao patrão.

Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar à patroa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta – digamos-lo para vergonha daquela formosa desmiolada – a resposta não se fez esperar por muito tempo.

Ei-la:

“O senhor pede-me uma entrevista e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?… onde?… quando?… Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós… Como há um deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos ambos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”

Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de D. Andréia; procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta D. Andréia fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar-lhe uma cartinha.

III

Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa é esperar por ela.

Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita e mais vigiada de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!

Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência, violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.

IV

Os leitores, – e principalmente as leitoras – me desculparão de não pôr no final deste ligeiro conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco à Armando Silvestre. Em todo o caso, verão que a moral não é sacrificada.

O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.

Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.

– Que tens tu?

– Ainda me perguntas!

– Paciência, meu velho; Jacó esperou quatorze anos.

– Esta coisa tem-me posto doente… – Bem sabes que gozava uma saúde de ferro… Pois bem neste momento a cabeça pesa-me uma arroba…. tenho tonteiras!

– Isso é calor; a tua Andréia não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos cerebrais. Queres um conselho? Manda buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para tonteiras!

O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo de benemérito laxativo.

Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto de D. Andréia, anunciando-lhe uma carta.

Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.

“A velha amanheceu hoje com febre, e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico da confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”

O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de D. Andréia!

Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento; nenhum namorado faria confissões dessa ordem…

O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:

“Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir! Quando algum dia houver certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza de que me perdoarás.”

V

Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:

– Vê tu que grande remédio é a água de Janos! Um só copo serviu para três cabeças!

– Como três?

– A tua, que tinha tonteiras, – a de D. Andréia que estava cheia de fantasias, – e a do marido que andava muito arriscada.

Efetivamente, a moça não perdoou.

O Tenente Remígio Soares nunca mais a viu.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Nenhum comentário: