sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Carolina Ramos (Desilusão)


Azuis! Tão azuis quanto um retalho de céu de abril, os olhos de Cássio. Qualquer emoção mais forte lhes acentuava a cor, tornando-os ainda mais bonitos.

A aula terminara mais cedo. Os garotos, cuja idade não chegava aos nove, valiam-se da folga para dirimir dúvidas e acertar as turmas.

Interiorana, a cidade vibrava com o acontecimento. Papai Noel chegaria de helicóptero, na tarde seguinte, para distribuição farta de presentes á criançada.

A meninada fervilhava como formigueiro em tempo de correição.

Os grupos dividiam-se. De um lado, os sabichões que não acreditavam no bom velhinho de barbas brancas. Do outro, aqueles, talvez mais jovens, talvez mais ingênuos, que nem sequer admitiam a possibilidade de dúvidas. Cássio liderando-os.

Houve provocações, e Cássio não fugiu à polêmica. No dia imediato, todos haveriam de ver de que lado estava a razão!

O garoto que chefiava os céticos, metido a valentão, foi além:

— "Seus bobocas... Papai Noel não existe!... é o pai da gente! Será que vocês não entendem? Pai Noel é o pai da gente!"

— "Bobocas!... Bobocas!..." — o coral de vozes provocativas fez ferver o sangue de Cássio. Sentiu-se ofendido dos pés à cabeça. Sequer tinha pai. E, nem por isso, em todos os natais, seus sapatos deixavam de estar cheios de presentes, modestos, sim, mas, sempre os que mais desejara! Os olhos azuis brilhavam mais azuis do que nunca!

Retrucou, triplicando o insulto:

~ "Bobocas são vocês... seus trouxas... seus burros! Esperem só... amanhã, quero ver quem tem cara pra abrir o bico!"

As faces coradas e os pequenos punhos em guarda, falavam ainda com maior veemência.

Engalfinhados, os dois chefes rolaram na calçada, trocando sopapos, sob o estímulo vibrante dos dois grupos adversos.

Finda a luta, tão logo o diretor da escola apareceu, chamando os brigões à realidade, sobraram, como rescaldo, algumas escoriações sem importância, rasgões nas roupas e botões arrancados.

Sem sacudir as roupas, Cássio correu para casa levando joelhos esfolados e um nariz que sangrava. Relutou em entregar à mãe as causas do entrevero. Acabou cedendo. Olhos fitos nos dela, disparou a pergunta, esperando, tenso, e torcendo pela resposta afirmativa:

— Mãe, Papai Noel existe mesmo, não é? — afirmava duvidando... duvidava afirmando.

Surpresa, a mãe hesitou. Perdera o marido quando Cássio estava para nascer. Para o menino, o pai era um ídolo. Ídolo criado e alimentado pelo carinho materno, através dos tempos. Um mito que tinha raízes na ausência da figura paterna. Agora, sem coragem de roubar ao filho a ilusão que o fazia feliz, defrontava-se com um dilema. Após um segundo de hesitação, mentiu, uma vez mais; — Claro... claro que Papai Noel existe! Amanhã você vai vê-lo, não vai?

Assunto encerrado. O menino sorriu aliviado, esquecido das dores e das marcas da contenda, convicto, plenamente, de que valera a pena ter lutado pela verdade. Palavra de mãe é sagrada!

O sábado amanheceu azul, combinando com os olhos de Cássio. O almoço foi engolido às pressas, e as pernas do garoto, espigadas para a idade, foram curtas ante a ansiedade de chegar à praça.

Com meia hora de atraso, pintou, lá no alto, o helicóptero, que, em linha de modernidade, substituía com maior eficiência, o tradicional e romântico trenó tirado a renas.

Quando a porta se abriu e a cara risonha do velhinho barbudo apareceu, reinava silêncio respeitoso, que nem os mais incrédulos ousavam romper.

Fascínio absoluto! Os presentes não deslumbraram tanto os olhos de Cássio quanto a própria figura do querido velhinho! Se bem que o achou mais magro que o esperado, embora acentuadamente barrigudo. Também, os tempos não andavam fáceis e as contínuas viagens do bom Noel deveriam ser profundamente desgastantes para alguém que, mesmo não tendo idade definida, já nascera velho, O menino aquietou-se, aceitando as próprias ponderações.

Após o pasmo da chegada, veio a algazarra da distribuição dos brinquedos. E tão logo os braços cheio, as formiguinhas humanas retornaram aos lares, transportando, jubilosos, as prendas recebidas. A dúvida quanto à existência ou não do mito natalino fora banida ou momentaneamente esquecida. Mãos cheias, e tchau! — solução simplista.

Com Cássio, contudo, não foi o que aconteceu. A respeitável distância, seguiu o bom velhinho que, volta e meia, ajeitava o ventre bojudo e fazia soar as pedras da calçada com o taco de suas botas de verniz negro. Pai Noel deveria estar com fome, por isso, o encaminhavam para uma lanchonete. Cássio seguiu-o sem pressa, esgueirando-se para dentro do estabelecimento. Colado à parede, esqueceu-se de tudo, enlevado na contemplação da mesa privilegiada. Cada gesto do velhinho o fascinava! Quase não acreditou, quando seus olhos se encontraram e um aceno convidou-o a aproximar-se. Tímido, achegou-se, devagarinho.

Ao ver-lhe as mãos vazias. Papai Noel indagou:

— Então, meu filho... você não ganhou nenhum presente?!

Ainda fascinado, o garoto sacudiu a cabeça negativamente, sem coragem de balbuciar qualquer palavra.

O bom velho vasculhou os bolsos à procura de algum brinquedo esquecido. Pescou alguns confeitos e um chaveiro, que estendeu, sorridente, ao menino:

— Olha... sei que é pouco, mas foi o que restou. O chaveiro é meu... talvez, por isso tenha mais valor, que tal?

Cássio agradeceu os regalos, deslumbrado, principalmente, com o chaveiro. Jamais poderia imaginar ter um dia nas mãos um objeto do próprio uso de Papai Noel! Melhor do que qualquer brinquedo! E além disso, falara com ele e tinha provas! Papai Noel existia, sim, como lhe dissera a mãe... Mãe não mente! Queria ver agora que boboca teria coragem de chamá-lo de boboca!

Num impulso agradecido, abraçou o velhinho, voltando a correr para o seu ponto de observação, escondido, desta vez, entre as dobras da cortina. Não fugia à tentação de acompanhar, por mais algum tempo, a ação de alguém tão querido. Apertado na mão, o presente precioso.

Papai Noel, por sua vez, logo esqueceu a criança, pondo-se à vontade. Enquanto conversava com o acompanhante, desvencilhou-se de tudo quanto poderia perturbar-lhe a refeição.

A barba foi a primeira a ser retirada. Logo, o travesseiro que lhe avolumava a cintura foi parar na cadeira vizinha. O gorro vermelho trouxe consigo a cabeleira branca e uma careca lustrosa, despudoramente nua, apareceu.

Atônitos, os olhos extraordinariamente azuis do menino transbordavam perplexidade. O chaveiro escorregou-lhe da mão. Deixou-o cair. Pisou-o!

Um desapontamento irado tomou conta de Cássio.

Antes de abandonar o recinto, cuspiu a bala que lhe adoçava a boca e chutou o chaveiro, acintosamente, em direção ao farsante.

Mãos vazias, correu para casa. Levava de volta um coração agitado, duplamente desiludido e que só não lhe saltava pela boca, porque um soluço magoado lhe amarrava a garganta.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

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