sábado, 7 de setembro de 2019

Woody Allen (A Rejeição)


Quando Bóris Ivanovitch abriu a carta e leu o conteúdo, ele e sua mulher, Anna, ficaram pálidos. Era uma rejeição de seu filho de três anos de idade, Mischa, para a melhor escola de educação infantil de Manhattan.

“Não pode ser", Bóris Ivanovitch disse, chocado.

"Não, não — deve ser algum engano", a mulher colaborou. "Afinal, ele é um menino inteligente, agradável e extrovertido, com boa capacidade verbal e facilidade com os creions e com o Sr, Cabeça de Batata."

Boris Ivanovitch se desligara e estava perdido nos próprios devaneios, Como podia encarar seus colegas de trabalho na Bear Stearns quando o pequeno Mischa não havia conseguido entrar numa pré-escola de prestígio? Já estava até ouvindo a voz gozadora de Siminov: "Você não entende dessas coisas. É importante ter contatos. Tem de rolar dinheiro, Você é tão grosso, Bóris Ivanovitch".

"Não, não, não é nada disso", Bóris Ivanovitch ouvia a si mesmo protestando. "Molhei a mão de todo mundo, dos professores aos lavadores de vidraças, mas mesmo assim o menino não conseguiu."

"Ele foi bem nas entrevistas?” Siminov ia perguntar.

"Foi", Bóris responderia, "se bem que teve alguma dificuldade para empilhar blocos..."

"Dificuldade com blocos". Siminov gemeu à sua maneira desdenhosa, "Sinal de sérias dificuldades emocionais. Quem vai querer um pateta que não é capaz de erguer um castelo?"

Mas por que haveria de discutir tudo isso com Siminov?, Bóris Ivanovitch pensou. Talvez ele nem esteja sabendo.

Na segunda-feira seguinte, porém, quando Bóris Ivanovitch entrou no escritório, ficou claro que todo mundo sabia. Siminov entrou, o rosto como uma nuvem de tempestade. "Você sabe", disse Siminov, "o menino nunca vai ser aceito em nenhuma faculdade decente. Na Ivy League com certeza que não."

"Só por causa disso, Dmitri Siminov? Será que a pré-escola vai ter um impacto na educação superior dele?"

"Não gosto de mencionar nomes", disse Siminov, "mas muitos anos atrás um renomado banqueiro de investimentos não conseguiu colocar o filho num jardim-de-infância de ampla distinção. Parece que houve algum escândalo com a capacidade do menino na pintura a dedo. Seja como for, o menino, recusado pela escola que os pais tinham escolhido, foi obrigado a... a..."

"A quê? Diga, Dmitri Siminov."

"Vamos dizer apenas q|ue quando completou cinco anos foi obrigado a frequentar... uma escola pública."

"Então, Deus não existe", disse Bóris Ivanovitch.

"Aos dezoito anos, todos os seus colegas de antes entraram em Yale ou Stanford", Siminov prosseguiu, "mas esse coitado, como nunca tinha obtido credenciais adequadas numa pré-escola de status... digamos,., adequado, só foi aceito na universidade de barbeiros.”

"Forçado a aparar bigodes", Bóris Ivanovitch gritou, visualizando o pobre Mischa de uniforme branco, fazendo a barba dos ricos.

"Sem nenhuma formação em decoração de bolinhos, nem na caixa de areia, o menino estava totalmente despreparado para as crueldades da vida", Siminov continuou. "Por fim, trabalhou em empregos menores, acabou surrupiando trocados do patrão para sustentar o vício do álcool. Nessa época, já era um bêbado sem salvação. Claro, surrupiar do patrão levou ao roubo e ele acabou assassinando e desmembrando a dona do apartamento. No enforcamento, o rapaz atribuiu tudo ao fato de não ter frequentado a pré-escola correta."

Nessa noite, Bóris Ivanovitch não conseguiu dormir. Ficava vendo a inatingível pré-escola do Upper East Side, com suas salas alegres, claras. Visualizou as crianças de três anos em roupinhas Bonpoint cortando e colando e depois tomando um lanche confortador — um copo de suco e talvez biscoitos Goldfish ou um Graham de chocolate. Se podiam negar isso a Mischa, então não havia sentido na vida, nem em toda a existência. Imaginou o filho, agora um homem, parado na frente do CEO de uma firma de prestígio, que estava testando os conhecimentos de Mischa sobre animais e formas, coisas de que deveria ter um profundo entendimento.

"Bom... é...", Mischa diria, tremendo, "isso é um triângulo... não, não, um octógono. E isso é um coelho… desculpe, um canguru."

"E a letra de 'Do you know the muffin man?'", perguntaria o CEO. "Todos os vice-presidentes aqui da Smith Barney sabem cantar isso."

"Para ser sincero, sir, nunca aprendi direito essa música", admitiria o jovem, enquanto seu pedido de emprego voava para a lixeira.

Nos dias seguintes à rejeição, Anna Ivanovitch ficou inquieta. Discutiu com a babá e acusou-a de escovar os dentes de Mischa para os lados e não para cima e para baixo. Parou de comer regularmente e chorava na pia. "Devo ter transgredido a vontade de Deus para provocar uma coisa dessas", choramingava. "Devo ter pecado além das medidas — sapatos Prada demais." Imaginou que um veículo Hampton Jitney tentou atropelá-la e quando Armani cancelou sua conta sem nenhuma razão aparente ela se trancou no quarto e começou a ter um caso. Isso foi difícil de esconder de Bóris Ivanovitch, uma vez que ele dormia no mesmo quarto e perguntava insistentemente quem era o homem deitado ao lado deles.

Quando tudo parecia estar na mais negra escuridão, o amigo advogado, Shamsky, telefonou para Bóris Ivanovitch e disse que havia um raio de esperança. Sugeriu se encontrarem no Le Cirque para o almoço, Bóris Ivanovitch chegou disfarçado, uma vez que o restaurante havia lhe recusado admissão quando saiu a decisão da pré-escola.

"Existe um homem, um certo Fyodorovitch", disse Shamsky, comendo uma colherada de seu crème brulée, "Ele pode conseguir uma segunda entrevista para seu rebento e, em troca, tudo o que você tem de fazer é mantê-lo a par de qualquer informação confidencial sobre certas companhias que possam fazer as ações subirem ou caírem dramaticamente."

"Mas isso é rompimento de sigilo", disse Bóris Ivanovitch.

"Só se você se restringe às leis federais", Shamsky observou. "Meu Deus, estamos falando de admissão a uma pré-escola exclusiva. Claro, uma doação também ajuda. Nada muito chamativo. Sei que estão procurando alguém para patrocinar um novo anexo."

Nesse momento, um dos garçons reconheceu Borís Ivanovitch por trás do nariz postiço e da peruca. Os funcionários caíram em cima dele em fúria e o arrastaram para fora. "Então!", disse o chefe dos garçons. "Achou que ia nos enganar. Fora! Ah, e quanto ao futuro do seu filho, estamos sempre precisando de ajudantes. Au revoir, babaca."

Essa noite, em casa, Bóris Ivanovitch contou à mulher que iam ter de vender a casa em Amagansett para levantar dinheiro para uma propina.

"O quê? Nossa adorada casa de campo?", Anna gritou, "Minha irmã e eu crescemos naquela casa, Nós tínhamos direito de servidão para atravessar a propriedade do vizinho para ir até o mar. O trajeto passava bem no meio da mesa da cozinha do vizinho. Me lembro de passar com minha família pelo meio das tigelas de Cheerios para ir nadar e brincar no mar."

Quis o destino que, na manhã da segunda entrevista de Mischa, seu peixinho morresse de repente. Foi sem aviso prévio, sem nenhuma doença anterior. Na verdade, o peixinho tinha feito um check-up completo e fora considerado nível A-1 de saúde. Naturalmente, o menino ficou inconsolável. Na entrevista, não tocou no Lego nem no Lite Brite. Quando a professora perguntou quantos anos tinha, ele disse, duro: "Que te interessa, balofa?". Foi rejeitado outra vez.

Bóris Ivanovitch e Anna, agora desamparados, foram viver em um abrigo para sem-tetos. Lá encontraram muitas outras famílias cujos filhos haviam sido recusados por escolas de elite. As vezes, repartiam a comida com essas pessoas e trocavam histórias nostálgicas de aviões particulares e invernos em Mar-a-Lago, Bóris Ivanovitch descobriu almas ainda menos afortunadas do que ele, gente simples que tinha sido recusada por juntas de condomínio por não ser suficientemente bem relacionada. Essas pessoas todas tinham uma grande beleza religiosa por trás de seus rostos sofredores.

"Agora acredito em alguma coisa", disse ele à esposa, um dia. "Acredito que existe um sentido na vida e toda essa gente, rica e pobre, acabará morando na Cidade Divina, porque Manhattan está ficando definitivamente impossível de se viver."

Fonte:
Nadine Gordimer (org.). Contando histórias.

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