quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Contos das Mil e Uma Noites (Embustes de uma mulher)


Conta-se, ó afortunado rei, que havia uma jovem senhora da nobreza cujo marido estava sempre viajando para perto e para longe. Com o tempo, a tentação da carne tornou-se irresistível, e um jovem de lindas proporções estava lá para tornar a tentação ainda mais poderosa. Amaram-se com intensidade e satisfizeram-se mutuamente com alegria, levantando-se para comer, comendo para deitar, deitando para fornicar. 

Um dia, o jovem entrou numa briga, e o uáli mandou encarcerá-lo. Ao saber disto, a mulher se enfureceu e concebeu um plano audacioso para libertá-lo. Vestiu-se e enfeitou-se com o máximo requinte, e solicitou e obteve uma audiência com o uáli (governador de província). 

Após saudá-lo, disse: “Ó meu senhor uáli, amo de todos nós, o tal jovem que mandaste encarcerar é meu irmão e o único sustento da família. Seu acusador é um patife, e as testemunhas prestaram falso testemunho. Vim solicitar-te a sua libertação. Se recusares meu pedido, a nossa casa cairá em ruínas e eu morrerei de fome.” 

O uáli sentiu seu coração e seu corpo violentamente agitados pela beleza da mulher. Respondeu: “Estou disposto a libertar teu irmão em certas condições. Vai agora para minha casa. Quando as audiências terminarem, irei conversar contigo sobre o assunto”.

Compreendendo o que o uáli queria, a moça disse consigo mesma: “Juro por Alá, ó barba suja, que jamais tocarás em mim nem mesmo na eternidade”.

Mas em voz alta disse: “Ó meu senhor uáli, não seria melhor que viesses à minha casa onde poderemos conversar mais à vontade? Pois ir para tua casa me constrangeria demais”. 

- E onde fica a tua casa? perguntou o uáli. 

- Na rua tal e tal. Esperar-te-ei esta tarde ao pôr-do-sol. E saiu, deixando o uáli numa deliciosa expectativa. 

Foi então ao cádi (juiz), que era um velho caduco, e disse-lhe: “Ó meu senhor cádi, rogo-te baixar os olhos da justiça sobre minha causa.” 

“Quem te oprimiu?” perguntou o cádi. 

- Um malvado, um velhaco que levou meu irmão, único sustento de minha família, para a cadeia com falsas testemunhas. Rogo-te interceder por mim para que meu irmão seja libertado. 

Ao ver e ouvir a mulher, o cádi sentiu despertarem nele desejos que pareciam mortos. Respondeu: “Cuidarei pessoalmente do caso de teu irmão. Vai agora para o harém de minha casa. Irei procurar-te assim que sair daqui, e conversaremos. Tudo farei para atender a teu pedido.” 

“Canalha!” disse a mulher consigo mesma. “Nem no Dia do Julgamento deixarei um caduco como tu possuir-me.” 

E acrescentou em alta voz: “Ó amado mestre, não será melhor esperar-te na minha casa onde ninguém nos perturbará?” 

- E onde fica a tua casa? 

A moça indicou-lhe o endereço e acrescentou: “Esperar-te-ei hoje momentos depois do pôr-do-sol.” 

De lá, foi ao ministro do rei e repetiu as mesmas alegações. 

- A coisa é fácil, disse o ministro. No entanto, vai agora até o harém de minha casa. Irei procurar-te, e conversaremos a respeito.  

- Pela vida de tua cabeça, ó meu amo, respondeu a moça. Sou uma mulher tímida e não teria a coragem de ir até teu harém. Minha casa é mais apropriada para nossa conversa. Esperar-te-ei hoje mesmo uma hora após o pôr-do-sol. 

Deu-lhe o endereço e foi ao palácio do rei. Mal a viu, o rei maravilhou-se com sua beleza e disse consigo mesmo: “Por Alá , este é um prato a ser devorado quente.” 

Depois, perguntou-lhe: “Que queres de mim? Alguém te oprimiu?” 

- Não pode haver opressão enquanto viver nosso amo o rei. 

- Em que posso ajudar-te? 

- Dando-me uma ordem para a libertação de meu irmão. Foi encarcerado pela iniquidade de um malandro e de umas falsas testemunhas. 

- A coisa é fácil, disse o rei. Vai espera-me no meu harém, minha filha. A justiça seguirá seu curso. 

- Neste caso, aventurou-se a responder, não será preferível esperar Vossa Majestade na minha casa? Vossa Majestade sabe que tal conversação requer diversos preparativos: banho, perfumes e tudo mais. Poderei tomar essas providências mais facilmente em minha casa, que passará a ser, a partir desta noite, um verdadeiro palácio digno de receber Vossa Majestade tantas vezes quantas quiser. 

- Seja, disse o rei. 

Após entenderem-se sobre o lugar e a hora, a mulher foi procurar um carpinteiro e disse-lhe: “Quero que me mandes hoje mesmo no fim da tarde um armário com quatro compartimentos, um acima do outro. Cada um deve ter porta independente e boa fechadura.” 

- Por Alá, respondeu o carpinteiro, não conseguirei encarregá-lo hoje mesmo. 

- E se te pagar o que quiseres? 

- Neste caso, o armário estará pronto. E não quero por ele nem prata nem ouro, mas um certo favor que podes adivinhar. 

- Aceito, disse a moça. Mas neste caso, manda pôr cinco compartimentos no armário. E vem à minha casa esta noite após mandar entregar o armário, e conversaremos até a madrugada. 

Deu seu endereço ao carpinteiro e foi para casa. Arrumou cinco roupões de cores e cortes diferentes, preparou comidas e bebidas, encheu a casa de flores, banhou-se e perfumou-se e sentou-se à espera de seus convidados. 

No fim da tarde, o carregador do marceneiro entregou o armário, e ela mandou colocá-lo na sala de visitas. Logo em seguida, bateram à porta. Era o uáli. Sua anfitriã levantou-se em sua honra, beijou a terra entre suas mãos, convidou-o a sentar-se e ofereceu-lhe refrescos. Ele quis abraçá-la imediatamente, mas ela se afastou com jeito, dizendo: “Vamos fazer a coisa com refinamento, meu amo. Não gostarias de tirar a roupa, primeiro, para ficar mais livre em teus movimentos?” 

O uáli concordou, encantado, e pôs um dos roupões, que a moça lhe apresentou. Logo, porém, ouviu-se bater à porta. 

– Estás esperando alguém? perguntou o uáli de mau humor. 

Ela respondeu, fingindo terror: “Por Alá, não. Mas havia esquecido que meu marido vinha para casa esta noite. É com certeza ele que está batendo à porta.” 

– Que iremos fazer? Perguntou o uáli, perturbado. Que será de mim? 

- Não te preocupes. Ele não demorará a sair de novo. Deixa-me esconder-te neste armário. Abriu o compartimento mais baixo e obrigou o uáli a se acomodar nele, acocorado. Trancou o compartimento e foi abrir a porta. Era o cádi. Recebeu-o da mesma forma, convidando-o a se libertar da roupa e colocar um roupão. Assim que ele quis lançar-se sobre ela, deteve-o e perguntou: 

“Meu amo, escreveste a ordem para a libertação de meu irmão?” O cádi escreveu a ordem lá mesmo. A moça guardou a ordem e quis oferecer refrescos. Mas logo bateram à porta. 

- O que será? perguntou o cádi. Estás esperando visitas? 

- Por Alá, não. Deve ser meu marido, disse a mulher, fingindo estar aterrorizada, e obrigou o cádi a ocupar o segundo compartimento do armário. 

Trancou o compartimento e foi abrir a porta. Era o ministro. Foi tratado da mesma forma. O rei chegou por sua vez e teve que acomodar-se num compartimento onde, sendo gordo, quase quebrou os ossos e foi tomado de uma raiva surda. 

Enfim, chegou o carpinteiro e foi encarcerado no último compartimento de seu próprio armário. A moça levou então a ordem do juiz aos guardas da prisão, os quais libertaram-lhe o amante sem nada perguntar. 

Os dois voltaram para a casa da moça, e, para celebrar tantos eventos, se amaram lá mesmo, longa e demoradamente, e com bastante agitação e ruídos. 

Os cinco prisioneiros do armário tudo ouviam, mas nenhum deles ousou levantar a voz. Por fim, os dois amantes juntaram tudo que tinha valor na casa, inclusive as roupas magníficas dos altos dignitários. Venderam o restante e foram embora viver num outro reino. 

Dois dias depois, os cinco infelizes do armário foram tomados simultaneamente da necessidade de urinar. A urina do carpinteiro caiu sobre a cabeça do rei, a do rei sobre a cabeça do ministro, a do ministro sobre a cabeça do cádi e a do cádi sobre a cabeça do uáli. Todos, menos o rei e o carpinteiro, gritaram: “Que nojo!” 

O cádi reconheceu a voz do ministro, e o ministro, a voz do cádi. Disseram: “Felizmente, o rei escapou desta sujeira de aventura.” 

Mas o rei interveio: “Ficai quietos, eu também estou no armário.” 

Neste momento, o marido da mulher chegou da viagem. Entrou na casa e achou-a vazia. Ouvindo vozes humanas saindo do armário, supôs que eram Afarit (demônios). Chamou os vizinhos, e todos concordaram em pôr fogo no armário para acabar com os gênios. 

Ouvindo isso, o cádi chamou do interior do armário: “Boa gente, não somos nem Afarit nem assaltantes. Somos Fulano, Sicrano e Beltrano.” 

E contou como a mulher os tinha enganado. Os vizinhos quebraram as fechaduras do armário e encontraram cinco homens pálidos, acanhados e disfarçados em roupões esquisitos. Todos consolaram-se de sua desgraça, rindo e improvisando versos que falavam mal das mulheres. 

Disse o cádi: As mulheres são demônios que a vida nos impõe. Proteja-nos Alá das perfídias dos demônios. São elas as causas de todas as desgraças, tanto na vida mundana como na religiosa. 

O uáli fez-lhe eco: As mulheres, embora simulem a virtude, são como presas que as águias revolvem. Hoje dão-te seu corpo e suas juras. Mas amanhã, outro terá suas pernas e o resto, como o khan onde passas a noite, substituindo-te depois quem não conheces. 

O rei disse ao desolado marido: “Não te aflijas, pois nomeio-te meu segundo vizir.” 

Depois, mandaram buscar roupa decente e foram embora.
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As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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