Fazíamos bagunça o tempo todo. Até durante as aulas. Turma maravilhosa, alegre, inteligente: Severiano, Edinardo, Jonas, Vicente, Célio, Osvaldo e outros. O primeiro, apesar de baixinho, moreno, narigudo, magrinho, exercia sobre os colegas grande influência. Parecia o mais experiente: fumava, bebia, conhecia mulheres, cantava e, sobretudo, viera de outra cidade. Vivia na casa de uma irmã casada com o gerente do Banco do Brasil, e isso lhe dava mais ares de superioridade. Meu irmão morreu aos 32 anos, num acidente automobilístico, em Salvador. O terceiro enlouqueceu. Desde menino já falava rindo, articulava mal as palavras, não queria estudar. Vicente, seu irmão mais novo, tornou-se militar. Célio ria de tudo, sem nunca brigar com ninguém. Um de seus irmãos, Lívio, que estudara conosco, morreu ainda adolescente, afogado, num rio. Osvaldo, magrelo, cabeçudo, falava macio e baixo.
Nossa vida parecia uma contínua pândega. Não ouvíamos os professores. Ora coaxávamos, ora cricrilávamos, ora urrávamos. E lançávamos bolotas de papel às cabeças dos mestres. Um dos castigos consistia na expulsão do insubordinado da sala. Não só isso: deveria permanecer de pé, até o término das aulas do dia, diante de uma das colunas internas do edifício.
Certa feita recebemos castigo mais enérgico. Fomos proibidos de frequentar as aulas durante uma semana. Ou praticamos travessuras em demasia, ou o professor e o diretor quiseram dar um basta naquilo.
Durante toda a semana agimos como se nada tivesse acontecido. Acordávamos à mesma hora de sempre, vestíamos o uniforme, pegávamos livros e cadernos, e seguíamos rumo à escola. Diante do portão, despedíamo-nos dos colegas e seguíamos para cá e para lá. Íamos ao Potiú, o bairro das prostitutas, às Lajes, ao cemitério, aos arredores da pequena cidade. No terceiro dia, já não havia mais para onde ir. Além disso, a qualquer momento seríamos reconhecidos. E nossos pais não poderiam saber daquilo.
Num desses dias, resolvemos subir a serra. Ir aos Jesuítas, como chamávamos o sítio onde se situava a antiga Escola Apostólica dos Jesuítas de Baturité. Só assim passaríamos mais facilmente outra manhã. Pois andávamos então feito fugitivos, amedrontados, vendo "inimigos" por todos os lados. No meio do caminho tivemos a sorte de encontrar um ônibus. Pedimos carona. Nele iam estudantes conhecer a escola jesuítica. Contamos algumas mentiras e, assim, passamos mais uma manhã.
Levando vida tão voltada para o descaso pelos estudos, nenhum de nós poderia ter sido aprovado. Porém, eu lia tudo, adorava as fábulas latinas, gostava de francês. É dessa época minha dedicação aos livros, à literatura. Por mais que parecesse um garoto estroina. Ora, enquanto ria da cara do professor de geografia, lia com sisudez trechos de Garret, Herculano, Camilo e outros. E compunha sonetos líricos.
É também desse tempo as noitadas num banco da Praça de Santa Luzia. Reuníamo-nos três ou mais amigos, após o jantar, para conversar e cantar. Organizava esses encontros Severiano. Cantávamos, sobretudo, as canções gravadas por Nelson Gonçalves. Especialmente, "A flor do meu bairro". Severiano morria de paixão por uma garota que morava num bangalô bem diante daquele banco. Ela, porém, nunca aparecia à janela. Parecia viver prisioneira na casa. Como as princesas dos contos de fadas, presas em castelos, nas torres.
Quando as portas e janelas das casas iam se fechando e só restavam nossas vozes na rua, voltávamos para nossas casas. Na noite seguinte, voltávamos ao banco da praça, para recordar as peripécias do dia no colégio, planejar outras maluquices e cantar sambas-canções e boleros.
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Nilto Maciel nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999).
“Nilto possui esta capacidade de fazer com que nossas almas percorram desde um estado de profunda tristeza ao de êxtase. Não é apenas um escritor, são muitos escritores dentro de um só. A cada conto terminado, aflora o anseio pelo próximo. Aonde Nilto nos conduzirá agora? Cada conto é um conto, que faz com que nossa imaginação nos leve às vezes a adentrar dentro dele e participar, deixando que nos levemos pelo seu encanto, pela sua linguagem simples e deliciosa.” (José Feldman, em Nilto Maciel o mago das almas, 18/12/2010)
Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/226.htm (site desativado)
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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