sexta-feira, 21 de novembro de 2025

José Feldman (No coração da arte)

Texto construído tendo por base a trova de Antônio Juraci Siqueira (Belém/PA)
Mata a revolta em teu peito,
não a deixes florescer:
rio com pedras no leito
não pode alegre correr!...
Em uma cidade do interior, onde a vida pulsava em cada esquina e as cores das flores enfeitavam os jardins, havia um ar de expectativa. No entanto, sob a superfície dessa beleza, muitas pessoas carregavam revoltas silenciosas. A cidade, com suas ruas movimentadas e sorrisos superficiais, escondia angústias que frequentemente se manifestavam em olhares tristes e conversas sussurradas.

Entre os habitantes, estava Daniel, um jovem artista cujas obras refletiam a complexidade da vida ao seu redor. Ele era conhecido por sua sensibilidade e por captar a essência das emoções humanas com suas pinceladas. Mas, nos últimos meses, Daniel se sentia cada vez mais frustrado. A pressão da sociedade, as expectativas familiares e a luta por reconhecimento como artista o deixavam inquieto. Sua alma criativa, antes livre, agora estava aprisionada por uma revolta crescente.

Certa manhã, enquanto caminhava pela feira local, Daniel viu algo que o tocou profundamente. Uma mulher idosa, com o rosto marcado pelo tempo, estava vendendo flores. Seus olhos, embora cansados, brilhavam com uma sabedoria única. Ela sorria para cada cliente, oferecendo não apenas flores, mas esperança. Daniel parou para admirar a cena, mas logo a revolta em seu peito começou a se manifestar. “Por que as pessoas não veem a beleza que realmente importa?”, pensou, sentindo-se frustrado com a superficialidade ao seu redor.

A mulher percebeu sua inquietação e, quando ele se aproximou, disse: – Caro jovem, mata a revolta em teu peito, não a deixes florescer. 

As palavras dela ressoaram em sua mente, como um eco de sabedoria. Daniel hesitou, mas decidiu compartilhar suas preocupações. 

– Sinto que a arte e a sinceridade estão se perdendo nesta cidade. Todos parecem tão focados em seguir o que é esperado, esquecendo-se do que realmente importa.

A mulher sorriu com ternura. 

– A vida é como um rio, meu jovem. Se o leito do rio está cheio de pedras, ele não pode correr alegremente. Se você deixar a revolta dominar, não conseguirá fluir. A arte deve ser um reflexo da vida, e a vida é feita de altos e baixos. Encontre beleza nas pedras e transforme-as em parte da sua jornada.

A conversa com a mulher deixou Daniel pensativo. Ele percebeu que estava permitindo que a revolta o impedisse de criar. Aquelas palavras o inspiraram a buscar a beleza nas dificuldades, a transformar sua dor em arte. Decidiu que era hora de mudar sua perspectiva e não deixar que a frustração o definisse.

Nos dias seguintes, Daniel começou a trabalhar em uma nova série de pinturas. Em vez de se concentrar apenas nas alegrias da vida, ele decidiu capturar também as lutas e as emoções complexas que todos enfrentavam. Usou cores escuras para representar a dor e a revolta, mas também introduziu tons vibrantes que simbolizavam a esperança e a resiliência. Cada pincelada era uma tentativa de mostrar que, mesmo em meio ao sofrimento, a beleza poderia surgir.

Quando chegou o dia da exposição, a cidade estava em festa. As pessoas se reuniram para celebrar a arte e a cultura local. 

Daniel estava nervoso, mas também animado. Suas pinturas, que refletiam sua jornada interna e a luta comum de muitos, começaram a atrair a atenção. As pessoas paravam diante de suas obras, algumas com lágrimas nos olhos, outras sorrindo ao reconhecer suas próprias histórias nas telas.

Uma jovem se aproximou dele e disse: – Seus quadros me tocaram profundamente. Nunca pensei que alguém pudesse expressar tão bem o que sinto por dentro. 

Daniel sorriu, sentindo que a conexão que buscava finalmente se concretizava. Ele percebeu que sua arte tinha o poder de tocar os corações das pessoas e que, ao compartilhar suas emoções, poderia também aliviar a revolta que muitos carregavam.

A exposição foi um sucesso, e a cidade começou a se transformar. As pessoas começaram a falar mais sobre suas emoções e a compartilhar suas lutas. Daniel se tornou um símbolo de coragem e autenticidade, mostrando que é possível enfrentar a revolta e ainda encontrar beleza na jornada. As conversas nas praças e cafés agora incluíam discussões sobre arte, vida e a importância de abraçar tanto as alegrias quanto as tristezas.

Certa noite, enquanto caminhava pela cidade iluminada, Daniel encontrou a mulher idosa vendendo flores novamente. Ele se aproximou e a agradeceu. 

– Você me ajudou a ver a beleza que estava escondida. Agora, consigo fluir como um rio. 

A mulher sorriu, seus olhos brilhando com a sabedoria que só o tempo pode trazer. 

– Lembre-se, jovem artista, que a vida é feita de ciclos. Sempre haverá pedras no caminho, mas é sua escolha como lidar com elas.

E assim, Daniel aprendeu que a revolta, quando bem direcionada, pode se transformar em força criativa. Pois, ao matar a revolta em seu peito, ele não apenas encontrou seu próprio caminho, mas também reacendeu a luz em outros, mostrando que, mesmo com pedras no leito, é possível fazer o rio correr alegremente.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais de grandes nomes da música brasileira. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, casado com a profa. da UEM Alba Krishna Topan radicou-se em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Chafariz de Trovas” e “Asas da poesia”.
Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da vida. Floresta/PR: Plat. Poe. Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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