segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Mário Rodrigues ( Nosso português de cada dia) “Cabra”

Etimologicamente, cabra significa, segundo todos os dicionários da língua portuguesa, a fêmea do bode.

No dicionário prático ilustrado (Novo dicionário enciclopédico luso-brasileiro publicado sob a direção de Jaime de Seguier, edição atualizada e aumentada por José Lello e Edgard Lello, Porto, 1960), lemos: "Cabra - s. f. (lat. capra) Animal mamífero, da ordem dos ruminantes. Fêmea do bode. Guindaste. Espécie de pequeno peixe avermelhado, também conhecido por cabrita de cabrinra. Fig. Mulher de mau gênio ou que berra muito. Pé de cabra, pequena alavanca de ferro, com uma extremidade bifendida. Cabra-cega, jogo de rapazes em que um deles com os olhos vendados, procura apanhar os outros. Coimbra — Sinete da Universidade. Brasileirismo — mestiço, filho de mulato e negra, ou vice-versa.

Registra o dicionário referido, apenas, o brasileirismo de cabra significando mestiço, mas os nosso dicionaristas definem o termo com inúmeros significados: cangaceiro; guarda-costas; valentão; indivíduo insignificante; mau; imprestável; ordinário; falso; desonesto; bom; leal; de confiança; trabalhador; sabido; enfim, o cabra, tanto pode ser um sujeito da pior espécie como um homem direito no sentido exato do termo.

Cabra bom, diz ainda hoje o "coronel" nordestino ao se referir ao seu "homem" de confiança, pau pra toda obra, capaz de matar e morrer defendendo a própria vida ou a de seu chefe. "Cabra ordinário", diz o mesmo coronel amargurado, quando constata que o capanga em quem depositava tanta confiança, não passava de um medroso ou desleal, que se evadiu à vista do inimigo, deixou de cumprir o "serviço" encomendado, ou passou-se para o adversário, por maior paga, proteção, na hora exata em que seus préstimos eram mais reclamados.

Na região do Nordeste, dependendo do tom em que se emprega o termo, pode a palavra significar homenagem, injúria gravíssima ou adulação e carinho. É muito comum o pai chamar o filho, menino ou rapaz carinhosamente: “cabra, venha cá. Pegue esse dinheiro e vá comprar o que você me pediu”, ou então, encolerizado, carregando a voz, gritar-lhe: “— Cabra, tome jeito, senão dou-lhe uma surra que até o diabo vai ficar com pena de você!”

Mas... qual a origem do termo para significar capanga e mestiço?

Diz-nos o historiador Gottfried Heinshich Handelmann, "doutor em filosofia e docente privado de História Contemporânea na Universidade de Kiel", em sua História do Brasil escrita em 1859, que a chamada "Divisão Auxiliar mandada de Portugal para o Brasil em 1821, com o intuito de forçar o príncipe dom Pedro a obedecer as ordens emanadas das cortes portuguesas, era muito orgulhosa, e, convencida de sua superioridade sobre as tropas do Brasil tudo fazia para provocar os brasileiros e demonstrar-lhes sua condição de inferiores". Acrescenta: "Em parte alguma eram essas relações tão poucos amigáveis como no Rio de Janeiro onde as tropas, de ambos os lados em maior número, se enfrentavam, e onde de contínuo se provocavam reciprocamente com alcunhas. Vangloriavam-se os portugueses de serem os "heróis de Talavera" (Nova Castela), por sua participação naquela batalha; também os brasileiros queriam ser chamados "Pernambucanos" porque haviam auxiliado a abafar a Revolução de Pernambuco; ainda mais usualmente eram os portugueses, por causa de seu modo pesado de andar, chamados "pés de chumbo", contra o que os brasileiros, de andar saltitante, eram escarnecidos com a alcunha de "pés de cabra", ou, como mulatos, com o de "cabrada".

Ora, se sabe que as tropas brasileiras que se bateram pela nossa independência, era composta em sua quase totalidade de "forças irregulares", aliciadas, principalmente entre a gente de cor, que formava o grosso da soldadesca. Os brancos, de "boa família", como se dizia, eram os oficiais e não se misturavam muito com os inferiores, isto é, soldado rasos.

Terminada a guerra de independência, desmobilizada em grande parte a tropa, os "soldados" passaram ao serviço dos políticos e fazendeiros, e, daí, talvez, começasse a ser chamado de "cabra", para diferenciá-lo do soldado regular. É possível que as autoridades do interior hajam aproveitado, como aliás, aproveitaram os serviços desses soldados desmobilizados para formarem milícias, polícias e guardas municipais encarregados de manterem a ordem, chamados pelo povo de "cachimbo" ou "manichupas", termos pejorativos para demonstrar o desprezo do povo a tais indivíduos. O fazendeiro que no Brasil sempre teve homens armados em seu redor, desde os tempos coloniais, para a defesa contra a indiada rebelde; acrescendo que essa tropa particular era composta exclusivamente de mestiços, deve ter achado apropriado o termo para designar sua gente, generalizando-se então a palavra "cabra" como significado de capanga, guarda-costas, cangaceiro. Convém salientar, que Domingos Jorge Velho, o bandeirante vencedor de Palmares, designava sua gente mestiça como tapuias e em carta ao rei, reclamando recompensas pela redução do famoso quilombo, dizia que não havia no mundo soldados mais valentes do que seus "tapuias", desde que comandados por brancos.

Outra hipótese para a origem do termo com o significado referido é a seguinte: Era comum, o indivíduo encarregado de armar uma tocaia para assassinar alguém, espreitar sua vítima de cima de uma pedra a beira do caminho. Avistado o infeliz, essa mesma pedra servia de trincheira e de apoio da arma para a segurança da pontaria.

Então, poderia alguém dizer: "estava em pé numa pedra feito uma cabra" — por analogia ao costume desta andar trepada em pedras.

Assim, talvez, haja surgido o termo, antes mesmo da alcunha atribuída aos divisionários portugueses.

Fontes:
Mário Rodrigues, in sessão “Palhoça”, Revista Jangada Brasil. Outubro 2010 - Ano XIII - nº 141. http://www.jangadabrasil/revista/pa14110.asp.htm. Acesso em 28.12.2012 (site desativado)
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Nenhum comentário: