(A F. Simões Margiochi Junior)
Ahi! null'altro che pianto al mondo dura!
Francesco Petrarca (Itália, 1304 – 1374)
Ai! Neste mundo só as lágrimas não têm termo!
Cantai, ternos passarinhos; voai, mariposas gentis!
É dia de noivado!
Rejubile a natureza; reviva, resplandeça a festa!...
Folgam auras indiscretas nos choupais e nos silvedos! Tudo acode, sem delonga, ao banquete dos bem-aventurados! A aldeia exulta de vivaz festejo! É vivo o reboliço: grinaldas de flores, perolas e diamantes, tudo, à porfia, deslumbra os convivas!
Que doce aroma! Que suave fragrância!
Visão alada, mensageiro fiel do homem — o amor —, conforta o desgraçado e sorri á opulência. Expelem-se os cuidados, apavoram-se os temores, rejuvenesce a humanidade!
Dia de solene bem-aventurança! — eu quero colorir teu quadro ingente, juncar de variadas cores teu solo matizado!...
A nove quilômetros de Aveiro existe a pitoresca vila de Eixo. É uma deliciosa povoação! O Volga espraia ali mansamente suas límpidas águas, formando como que um vasto lençol, por entre os formosos salgueirais, que lhe servem de margem e curiosa graciosidade!
Há um não sei quê de vago e simpático nos seus ignotos caminhos, tão cheios de divina poesia e mágica formosura, que nos seduz instintivamente. Em todos os países há destas pequenas povoações, mais ou menos diletas do povo, e que parecem ter sido apontadas adrede para a representação dos grandes dramas da humanidade. E esta foi realmente uma delas, como abaixo veremos!
Há de haver dez anos, Eixo trajava de galas. A solidão transformara-se subitamente em meigo teatro de harmonia e saudade. Os habitantes como que ressuscitavam do seu antigo marasmo. Desvaneciam-se as trevas do sepulcro, perante o vivo esplendor de uma aurora deslumbrante!
Era um dia de festa, enfim, dia de noivado, santo alvoroço, cândida alegria!
Fernando, o moço querido da terra, desposara Luíza, a jovem e simpática aldeã. E foi deveras uma abnegação suprema aquele enlace divino! Fernando possuía a riqueza do espírito e a riqueza do dinheiro.
Era uma joia!
Luíza, essa, coitadinha! limitava seus parcos cabedais à rara e quase esquecida opulência dos grandes sentimentos e vivas impressões. Amava com ardente intensidade.
Era uma pérola!
Fernando era tão amado, tão louvado! Ai! Senhor! Que tesouro aquele!...
Na sua frequente passagem pelas ruas da vila, os lavradores descobriam-se respeitosamente. Depois lá se ficavam longos momentos a cismar, até que por fim, diziam eles de si para si: — Pombinha sem fel! — e seguiam o seu rumo.
Luíza granjeara a piedosa dedicação das suas patrícias. Era em extremo filantrópica, e de muitas conseguira ela até a sincera veneração de santinha, que realmente era.
Quando, por acaso, se falava em Luíza, aquela pobre gente d'aldeia, esta retorquia logo com vivo interesse: — Ai! a Luizinha! A noiva do sr. Fernandinho! isso é mesmo um anjo, meu senhor! E ele, que bondade, que ternura! É mesmo ouro sobre azul!...
Imagine-se pois, que mágico fulgor não irradiariam aquelas duas ternas criaturinhas, ao estreitarem seus amorosos corações pelos vínculos indissolúveis do matrimônio!...
Que santa aliança aquela, meu Deus! Que inocente festa não ia pela vila!...
Tudo folgava, tudo amava, tudo vivia!...
Apenas o mancebo saíra da igreja, levando sua angélica esposa pelo braço, imediatamente, daquele enorme conjunto de povo, apinhado em massa pelas ruas da vila, para assistir ao brilhante cortejo, rompeu a mais solene aclamação, o mais entusiástico viva.
Fernando respondia com lágrimas, que simbolizavam o entusiasmo e a gratidão. Luíza, por sua parte, julgara-se guindada a um paraíso de fadas, onde a vida se assemelha ao grato arroio escoando-se de mansinho por entre as mil verduras e fragrâncias da natureza.
Porém surgira a noite, e suas sombras temerosas, até ali ocultas pelo brilho das luzes, invadiram a mesma área que, horas antes, fora povoada pelos raios diamantinos de encantamento mágico e verdadeiro prazer!
No dia imediato ao de seu noivado, Fernando despertara triste e pesaroso; isolara-se voluntariamente de sua esposa, e aparecera envolvido em profundo meditar. Os restos da sua primitiva alegria haviam-se-lhe convertido medonhamente num oceano de torturas. Os sons melodiosos da orquestra nupcial eram agora para ele um motivo de pungente agonia e de atroz suplício. Silvavam-lhe no cérebro as negras víboras da loucura. Era forçoso afastar de si o vil e gélido fantasma que o perseguia sem cessar.
Assim se passaram muitos e longos dias. Todos indagavam solicitamente a causa de tão inesperada catástrofe, de tão cruel agitação e, todavia, ninguém ousava responder, ninguém proferia sequer uma palavra.
Fernando corria todas as tardes os sítios recônditos da vila. Com os cabelos eriçados, a lividez nas faces, o olhar cintilante, as mãos nervosas, os punhos sempre cerrados, lá ia o pobre doido, o desgraçado moço — para quem a fortuna fora um sonho falaz de alguns momentos apenas — a conversar com as árvores, que tanta vez lhe ouviram seus queixumes de amor, — a ralhar com o plácido regato, que o atormentava ferozmente, — a rir-se, enfim, de si mesmo, da descompostura do seu traje, das suas palavras!...
E era tremenda e pavorosa a sua gargalhada!...
Luíza conquistara a par da ciência do amor, a ciência da resignação, por isso vivia, e suportava o agudo espinho que lhe trespassava o coração.
Um dia, em que intentara aproximar-se de seu marido, este repelira energicamente sua mão, e sem dó nem piedade fugira para longe de suas caricias e afagos!
Estavam as coisas neste ponto, quando Fernando foi acometido de um delírio mais violento e doloroso. A sua constante monomania, o seu desejo incessante, era assassinar todas as mulheres que, por acaso, encontrava. Tornou-se mister o auxilio de toda aquela gente para o encerrar cautelosamente num quarto subterrâneo, onde lhe era ministrada a comida que mal provava.
No auge da loucura, conheceu-se então, a causa do seu infortúnio, por alguns poucos monólogos, que ele soltava de quando a quando, tais como este:
— Ser eu feliz, alegre, bom, dócil, amar uma mulher ternamente, com a intensidade de um serafim, e ver-me tristemente iludido por esse demônio maldito!... Oh!... por Deus! nem pensar nisso!...
E aquela víbora, aquela Lui... i... — Ai! Senhor! Senhor! Seja o seu nome para sempre esquecido! — A ostentar tamanho pudor, tamanha virgindade e honestidade, e tudo com o hipócrita fim de me amortalhar covardemente!...
E toda a gente a acreditava piamente; sim! Todo o mundo, até eu!...
Eterna maldição sobre o desgraçado, que foi procurar na mulher, que escolhera para esposa, a desonra da sua própria família!...
Ha! Ha! Ha!...
E nisto o desventurado moço soltava uma cínica gargalhada!
Frequentemente repetia ele o nome de sua esposa, uma e muitas vezes, e logo após, num ato de medonho desespero, chorando desabridamente, arrancava de si um punhado de cabelos ensanguentados, e arrojava-se no lajeado do cárcere.
E eram bem tristes as suas lágrimas, bem acerbo o seu pranto!
Pobre Fernando! Quem não teria pena de ti?!...
Um ano decorrido exatamente desde o dia em que se havia festejado o noivado de Fernando e Luíza — pelas ruas da pequena e triste povoação seguia compassadamente um fúnebre préstito.
O doido havia cessado de existir naquela madrugada!...
Mal julgara aquela gente, que tivera ido brindar tão esplêndido noivado — que tão cedo havia de acompanhar o cadáver do simpático Fernando à sua derradeira morada!
É assim o infortúnio deste mundo!...
A coroa de grinaldas, essa desfizera-a o vento desapiedadamente! Hoje só restam coroas de perpetuas, e alguns goivos tristemente derramados sobre a ignota lousa do desditoso mancebo!
Luíza vive resignada, e lá vai lavrando cotidianamente o epitáfio, que há de guarnecer a laje sepulcral de seu marido, com as sinceras e ardentes lágrimas da saudade e do arrependimento! Aguarda pacientemente a hora da sua partida para ir fruir no céu aquilo que lhe foi vedado na terra!
Deus é compassivo, e de certo não olvidará a sua redenção celeste!…
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Sebastião de Magalhães Lima nasceu em Santos/SP em 1850 e faleceu em Lisboa/Portugal em 1928. Foi advogado, jornalista, político, escritor, fundador da Liga Portuguesa dos Direitos do Homem e dos jornais "O Século" e "Comércio de Portugal". Republicano, maçon e pioneiro do socialismo português, fez parte da Geração de 70 e dirigiu os periódicos republicanos "A Folha do Povo" e "A Vanguarda". Em 1909 foi indicado para o Prémio Nobel da Paz e em 1919 foi Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Foi grão-mestre do Grande Oriente Lusitano Unido, com o mais longo mandato na história maçónica portuguesa, de 1907 até 1928. Magalhães Lima estreou-se como escritor publicando, durante os seus anos iniciais de estudo em Coimbra, um conjunto de obras de pendor romântico, com títulos como Miniaturas românticas, Martírio de um anjo, Amour et Champagne ou Um drama íntimo. Tais obras, inseridas na corrente tardia do romantismo português, não faziam adivinhar o apologista do republicanismo revolucionário em que o seu jovem autor se transformaria.
Fontes:
Sebastião de Magalhães Lima. Miniaturas românticas. Publicado originalmente em 1871. Disponível em Domínio Público.

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