sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Chico Anysio (Mudança)


Era em São Paulo, mais precisamente na Rua Traipu. Fechavam-se as portas da mansão, cerrando-se, à mesma hora, alguns anos de mistério e melindrosas estórias.

O último objeto a ser colocado no caminhão-ônibus da transportadora foi um vaso chinês.

— Cuidado. É relíquia — disse ao mulato que levava a peça no ombro.

O mulato, carioca como companhia de transportes, sorriu-lhe.

— Tô sabendo. Tá comigo, tá com Deus.

Chamava-se Gualberto, mas preferia que o chamassem de Guga, diminutivo que o agradava, e que supunha estar de acordo com a sua personalidade. Estava. Sempre cuidadoso, tratando de suas coisas com exagerado esmero, limpando e polindo o que os empregados já tinham polido e limpado.

— Olhe o pó que está no aparador!

Talvez fosse melhor se, em lugar de empregados, preferisse as empregadas. Mas não se dava a esta preferência.

— Mulher só serve para desarrumar — justificava com uma voz grave e viscosa.

Obeso, branco, quase láteo, tinha mãos gordas e dedos absurdamente curtos. Os óculos, aros de tartaruga, insistiam em descer à ponta do nariz, sem que ele se preocupasse em recolocá-los no lugar devido, o que mais o enfeava.

Tomava sol todas as manhãs, inclusive as de frio intenso. Sem nenhuma vergonha, estendia uma vistosa toalha vermelha no jardim e ali se deitava, facilmente visto por quem passasse na rua.

Poderia enganar a idade, coisa que, aliás, fazia. Dizia ter 45 anos, mas já dobrara os 50 há alguns meses. Agradava-lhe sentir-se mais jovem.

— Adivinha minha idade — pedia demais.

— 42 — iludiam.

— E cinco, nenén. E cinco! — repetia, vibrando.

E sungava as calças com os cotovelos, rindo sem entreabrir os lábios. Puxava a barriga e inflava o tórax, na inútil tentativa de transformar em músculos a gordura quase seio. Apesar disso, pisava leve, invulgarmente suave. Poder-se-ia dizer que deslizava.

— O carro está pronto, Doutor.

Era o chofer, que era louro.

— Já vou, Tommy — falava ao motorista.

E Tomaz ia esperá-lo no carro, nada gostando daquele modo agringalhado como o patrão o chamava.

— Rua Augusta, Tommy.

Vestia-se no Minelli, sempre exorbitando na juvenilidade das roupas. O alfaiate, de início, tentara vesti-lo à maneira dos cinquentões. Desistiu quando percebeu que Gualberto preferia que soubessem que era Guga. A camisa não variava de cor. Invariavelmente preta.

— Negro emagrece — explicava, com mingau na voz. Sempre dizia "negro". Dia algum chamou de "preto" a cor por que optava.

— Preto é pobre — definia, dando nojo à palavra. Tratava os rapazes na segunda pessoa. As moças, chamava de você.

— Oi, Margot, você está bem? E tu, Waldir?

Mudava o tom pra ele, sentindo e exibindo que o "tu" era mais íntimo. Apreciava a felicidade de poder ser íntimo de um pequeno time de jovens. Os jovens a quem — não se cansava de falar — adorava.

— Odeio gente usada.

Era dado a formar frases que imaginava viessem a ficar na história. E foi dos primeiros a usar bolsa.

— Homem tem que usar bolsa. As calças, hoje, não têm lugar pra gente guardar nossas coisinhas.

Suas "coisinhas" eram o cartão do CBC e um pente. Fazia uso dos dois com frequência. As contas pagava ele. E era um bom pagador. De gordas gorjetas. A propina, não a deixava no pires; entregava-a, mão-com-mão, ao garçom, que, via de regra, encabulava-se pelo discreto apertar que sentia.

Ele se ria do acanhamento do moço. Não sabia rir. Precisava, após a risada, enxugar-se. Como não usasse lenço, secava o canto da boca com a manga da camisa. Sem pejo da atitude contrastante com sua educação.

— Aceita um licorzinho?

Era o primeiro oferecimento aos moços que traziam as compras que fizera de tarde. Muitas, desnecessárias. Havia os que aceitavam. Guga, menos só, ficava mais alegre.

Lia Fernando Pessoa para os rapazes que lhe levavam os embrulhos. Entontecia-se discretamente com o lança-perfume que misturava à colônia forte em que embebia o lenço. Usava lenço em casa apenas. E unicamente enquanto lia Fernando Pessoa.

— "Eu, que tenho sentido o piscar dos olhos dos moços de fretes, / eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, / eu, que quando a hora do soco surgiu me tenho agachado. / Para fora da possibilidade do soco".

Banhado pela luz vermelha do abajur que Guga escolhera acender, sem entender coisa alguma, o moço de fretes escutava. Sem entender, mas tudo percebendo. Muitos percebiam, nos dois sentidos.

E agora se ia de mudança. O caminhão da Fink já dobrava na Avenida São João, enfrentando o tráfego difícil do meio-dia. Ele, como um cão que zela pelo dono, seguia atrás, na vigia dos seus pertences.

Cortaria a Via Dutra atrás do caminhão. Sempre temeroso de que a porta se abrisse e por ela caíssem suas relíquias, seus quadros, sua cama, suas coisinhas.

O chofer do seu carro não era mais Tommy. Era um rapaz do Rio. Guga, como sempre, não viajava atrás, mas na boleia. No colo, o livro de Fernando Pessoa.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

Nenhum comentário: