DOIS AMORES
( Ao trovador A. A. de Assis)
Vou postergar toda ventura minha
E dedicar-me, inteiramente, à trova.
Toda obsessão que no passado eu tinha
Deixou meu senso e suportou a prova.
Mas, por amá-lo o deixarei na linha
E semi-aberta vou manter a cova.
E sei que o irmão, com todo afeto, aninha
No relicário sua irmã mais nova.
Os quatro versos me darão a glória
De pela frente penetrar na história,
Levando ao colo primorosa filha.
E no esplendor da fama em seu coreto,
Verei passar a trova e o irmão soneto
De braços dados pela nova trilha.
FIDELIDADE
Ao me deitar um doce aroma sinto
Que se desprende do lençol vetusto.
Ao velho amigo, tudo a mais consinto,
Pois fez de mim um ser humano justo.
Mantenho-o limpo e com rigor distinto,
Dou-lhe aparência de servente augusto,
Tanto me vela que eu até pressinto
Certa promessa de elevado custo.
Leito vazio... companheira ausente...
O possessivo, sei, jamais consente
Estranha fêmea se deitar na cama.
Se por acaso, ingenuamente aceito,
Ele de pronto desarruma o leito
Na injusta ausência da primeira dama.
ÚLTIMO DESEJO
Quando eu morrer quero caixão de pobre,
Sem adereço, sem jargão de luto.
Não quero tampa de madeira nobre
E nem legenda de mortal tributo.
A terra roxa que o defunto cobre
Será por certo, meu final reduto.
E na capela, que o sineiro dobre
O sino agudo, só por um minuto.
Carro de luxo para o meu transporte;
Vileza certa pela minha morte;
Versão perversa repudiada um dia.
Mas quero sim a musa ao meu redor,
A declamar sonetos meus de cor
Na solidão da minha tumba fria.
FRUSTRADA TENTAÇÃO
A honestidade justifica a luta,
Não vou ceder-lhe o cobiçado espaço.
E não me afeta essa trivial conduta
Na exposição do seu perfil devasso.
Mentira existe - carcomida astuta. -
Fidelidade eu sei fazer e faço.
Meu coração não me propõe permuta
E outro carinho, com prazer, rechaço.
Do meu enlace, ante o Senhor legado,
O anel ostenta este cristão honrado
De cuja cama um só perfume exala.
Não me atormente, cortesã vulgar,
Não vou quebrar o que jurei no altar:
Ser dela sempre e eternamente amá-la.
REVIVESCÊNCIA
A verve explode no quintal da mente,
Replanta a flor que o menestrel almeja.
No espaço surge a floração nascente
Num colorido que a emoção corteja.
A natureza tudo aplaude e sente
Quanto lirismo o trovador planeja,
No sentimento de espalhar semente
Se enche de orgulho e na doação sobeja.
Cuida da messe em devoção constante,
Escreve e lê sem nunca achar bastante
Raros sonetos que em sua alma abriga.
Eis o recado ao escritor moderno:
Que busque a luz do parnasiano eterno
Na revivência da canção antiga.
CORAÇÃO MATERNO
A vida dela se partiu ao meio
Por um amor que glorifica a gente.
Faz tanto bem ao coração alheio
E aquece o meu com afeição ardente.
Acolhe o pobre sem nenhum receio,
Tranquila atende a quem se diz carente.
Seu cofre santo de bondade cheio
Doa saúde ao sofredor doente.
Consolo e amparo é tudo que ela dá
Para os carentes que passam por lá
No desespero de comer um pão.
Ela no seio tem, do leite, a fonte
Para a criança que o destino afronte
E todo arrimo ao desprezado ancião.
SACERDÓCIO
Veementemente eu agradeço a graça
Da convivência fraternal, bendita!
Além de tudo, sem nenhuma jaça,
Na minha casa a paz perene habita.
Bendigo e muito a exuberante raça
Que a venturança ao santo Ser credita,
E o meu caráter manda que eu refaça
O nobre gesto que a emoção agita.
Visito o pobre assim preciso
Para ensinar-lhe o singular sorriso
Que eu aprendi na festival igreja.
No cumprimento de afagar alguém,
Minha missão inclui doar também
Sem permitir que a mão esquerda veja!
Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.
Livro enviado por Vania Ennes.
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