Bem no alto da montanha morava um espírito poderoso que velava pelo dia a dia do povo Chaga, que vivia no vale que se estendia em baixo. Uma das pessoas de quem gostava especialmente era da Viúva Velha, que vivia sozinha.
Na aldeia, o som que predominava era o do riso das crianças; no entanto, na casa da Viúva Velha, que não tinha filhos nem netos, reinava um silêncio triste.
Quando era preciso ir buscar alguma coisa, ela tinha de ir buscá-la. Quando era preciso carregar, ela tinha de carregar. Quer se tratasse de água, alimentos ou outra coisa qualquer, ela mesma precisava de fazer tudo. Para dizer a verdade, a Viúva Velha só se tinha a si própria como companhia, levando a sua vida por diante o melhor que podia.
Nos seus tempos de jovem, aquela que era agora a Viúva Velha, casara com um bom homem e os dois tinham sido muito felizes juntos. Mas, como acontecia com muitos homens bons, também o seu morrera, ainda por cima antes de terem filhos, e ela jurara nunca mais voltar a casar.
Havia muito pouca mobília na sua casa minúscula. Poucos eram os seus pertences, e tudo o que se encontrava dentro da habitação andava empoeirado e muito descuidado. O mesmo já não se podia dizer em relação à pequena machamba (horta) onde cultivava frutos e legumes. Adorava aquele cantinho e não se passava um dia sem que, protegida pela sombra das bananeiras do vizinho, não cuidasse das suas plantas. Arrancava as ervas daninhas, regava, tirava as pedrinhas e espantava os animais nocivos. Mas as suas plantas preferidas eram as cabaças.
Os aldeões troçavam dela por causa desse gosto. Costumavam dizer que ela amava aquelas cabaças como se fossem seus filhos.
O espírito da montanha não perdia pitada do que diziam. Olhava para a Viúva Velha, como sempre fizera no decorrer da vida desta. Vira-a envelhecer, mas lembrava-se da jovem linda que ela fora no dia do seu casamento, com as costas direitas e os olhos brilhantes. Agora via-a encurvada pelos anos, com os olhos enevoados e os dedos encarquilhados.
A Viúva Velha cultivava as suas cabaças para fazer delas vasos. Deixava-as secar até a casca endurecer, depois transformava-as em vasos de cabaça que vendia no mercado local, arranjando assim o pouco dinheiro de que dispunha.
O espírito que vivia na montanha, ao refletir sobre as piadas dos outros aldeões acerca da Viúva Velha que tratava das cabaças como se fossem seus filhos, resolveu ajudá-la. Dar-lhe-ia filhos a sério - filhos mágicos - que lhe trariam felicidade.
No dia seguinte, estava a Viúva Velha na machamba, a cuidar, como de costume, dos seus frutos e legumes, quando um mensageiro do espírito lhe apareceu por trás. Voltou-se para olhar para ele, mas como o sol lhe dava nas costas, não conseguiu distinguir-lhe o rosto. A sua cabeça desenhava-se como uma silhueta negra contra um sol ofuscante.
- Que deseja? - perguntou-lhe.
- Cuida das próximas quatro cabaças que apanhares com um cuidado especial - disse o mensageiro -, pois elas serão como quatro filhos para ti.
- Que quer dizer? - perguntou a velha. - Como poderei cantar uma canção de ninar a uma cabaça ou dar-lhe amor? Como será ela capaz de me ajudar nas minhas tarefas diárias?
- Confia em mim - disse o mensageiro -, pois fui enviado pelo espírito da montanha.
A Viúva Velha pestanejou e o mensageiro desapareceu. Ela acreditava piamente no espírito e todos os dias lhe rezava... mas o que queria o mensageiro dizer?
Foi então colher as suas quatro cabaças seguintes. Uma delas era a maior e mais gorda que já lhe aparecera em muitos anos.
A Viúva Velha recordou as palavras do mensageiro, no entanto elas continuavam a fazer pouco sentido para si. As cabaças eram de origem vegetal... como poderia ela cultivar vegetais como se fossem seus filhos? Começou a desconfiar que, se calhar, não passava tudo de mais uma das brincadeiras maldosas de algum aldeão.
O melhor lugar para secar as suas cabaças recém colhidas era nas vigas que tinha na sua casa minúscula. Pendurar as quatro cabaças mais pequenas nas vigas não custou muito, mas quando chegou a vez da quarta - a que era enorme, bem cheia - o caso mudou de figura, pois o seu tamanho e peso não permitiram que levasse o mesmo caminho. Ficou, portanto, ao pé do canto onde acendia a lareira.
No dia seguinte, estava a Viúva Velha no mercado, o mensageiro misterioso entrou-lhe em casa e tocou nas três cabaças que estavam nas vigas, depois de o ter feito à que ficara ao pé do lume. Mal isso aconteceu, elas transformaram-se em crianças. A seguir, o mensageiro retirou-se.
As três crianças que se encontravam no cimo das vigas, olharam para baixo e acharam que era demasiado alto para saltarem.
- Ajuda-nos a descer, irmão mais velho - pediram à criança maior, a que saíra da cabaça que ficara junto da lareira. Chamaram-lhe «mais velho» porque sabiam que o mensageiro tocara nele em primeiro lugar.
O irmão mais velho ajudou os outros três a descer e não tardou que se pusessem todos a correr pela casinha da Viúva Velha, rindo e gritando de tanta alegria e brincadeira.
A certa altura, resolveram que era tempo de tratar um pouco da casa. Foram buscar coisas, carregaram-nas, arrumaram e limparam. O irmão mais velho ficou sentado a observá-los, sorridente. Era diferente dos outros. Faltava-lhe esperteza, mas tinha um papel importante a desempenhar: depois do trabalho feito, levantou-os de novo até os instalar nas suas vigas e a seguir foi para o mesmo sítio, junto da lareira.
Quando a Viúva Velha chegou do mercado, encontrou a casa limpa e arrumada como já não acontecia há muitos anos e uma carrada de lenha à porta. Não conseguiu compreender o que se passava. Olhou de relance para as quatro cabaças, mas não lhe passou pela cabeça outra ideia além dos esplêndidos vasos que dariam.
No dia seguinte, encontrava-se a Viúva Velha na sua pequena machamba quando uma das aldeãs mais amigáveis foi ter com ela.
- Quem eram aquelas crianças que ontem andavam a rir, correr, trabalhar e brincar pela tua casa? - perguntou-lhe.
- Crianças? - admirou-se a Viúva Velha. - Não sei de que crianças falas. Quantas eram?
- Que eu visse, umas três - replicou a aldeã -, mas mexiam-se a tal velocidade que pareciam uma vintena delas.
A Viúva Velha começou a dar voltas à cabeça, interrogando-se se recebera, de facto, a visita de um mensageiro do espírito da montanha... Afinal de contas, ela rezava-lhe todos os dias... De modo que resolveu voltar sorrateiramente a casa, a fim de investigar. Ali chegada, deparou, realmente, com três crianças a limpar e a arrumar, perante o olhar do irmão mais velho.
Ao entrar em casa, o irmão mais velho agarrou rapidamente nos mais novos e pendurou-os nas vigas, antes de, também ele, se transformar de novo numa cabaça.
- Não, esperem! - exclamou ela. - São meus filhos, não meus servos. Quero ajudar-vos, mas também desejo amar e cuidar de vocês. Não voltem a transformar-se em cabaças. Deixem-me alimentar-vos e vestir-vos em troca da vossa ajuda.
Então, as cabaças que estavam nas vigas voltaram à sua forma de criança, assim como o irmão mais velho, que depois os colocou novamente no chão da cabana.
Dali em diante nunca mais deixou de se ouvir o som alegre de risos a sair da casa da Viúva Velha e da machamba de frutos e legumes onde as crianças trabalhavam. Eram tão esforçadas e dedicadas que conseguiram cultivar mais frutos, legumes e cabaças do que a Viúva Velha poderia algum dia conseguir sozinha. Não tardou que ela dispusesse de dinheiro para comprar mais terras, chegando mesmo a ficar com as bananeiras do vizinho. A seguir, poupou o suficiente para arranjar algumas cabras... Depois, o bastante para um rebanho inteiro!
Depressa se tornou uma fazendeira rica e não precisou mais de trabalhar nos dias da sua vida.
Nunca mais voltou à velha machamba, mas continuou a cozinhar para ela própria e para os filhos... até que, um dia, tropeçou no rapaz mais velho que, sentado no sítio do costume, junto da lareira, sorria beatificamente.
A Viúva Velha trazia uma panela de guisado nas mãos, guisado esse que se espalhou por tudo quanto era sítio, o que a deixou furiosa.
- Quantas vezes te disse já para não ficares aí sentado que nem um... que nem um... que nem o vegetal inútil que és! - gritou. - Não sei porque hei de dar-me ao trabalho de cozinhar para ti e para os outros três. Afinal de contas, vocês não passam de... de uns vegetais!
Mal acabou de proferir a última palavra, o irmão mais velho transformou-se de novo numa cabaça e as risadas alegres deixaram de se ouvir. A Viúva Velha correu até fora de casa e onde, momentos antes, tinham estado crianças felizes, viam-se agora três cabaças pequenas.
Percebendo o erro que cometera, a Viúva Velha voltou para dentro de casa encharcada em lágrimas.
Viveu ainda durante muitos anos, sentindo-se ainda mais solitária do que antes, pois ter tido filhos e depois perdê-los era bem pior do que nunca os ter tido. Morreu pobre, infeliz... e sozinha.
Fonte:
Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Nenhum comentário:
Postar um comentário