segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos) IV


DILEMA
Ao cons. Luís Alvares dos Santos

Vai-se acentuando,
Senhores da justiça — heróis da humanidade,
O verbo tricolor da confraternidade...
E quando, em breve, quando

Raiar o grande dia
Dos largos arrebóis — batendo o preconceito...
O dia da razão, da luz e do direito
— Solene trilogia —

Quando a escravatura
Surgir da negra treva — em ondas singulares
De luz serena e pura;

Quando um poder novo
Nas almas derramar os místicos luares,
Então seremos povo!

À REVOLTA
A Cassiano César

O século é de revolta — do alto transformismo,
De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite —
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo
Que traz como divisa a bala-dinamite!...

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,
Mais reto, que instrua — estético — mais novo
Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho
E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,
É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,
Na ampla, social e esplêndida vitrine!...

À frente!... — Trabalhar à luz da ideia nova!...
— Pois bem! Seja a ideia, quem lance o vício à cova,
— Pois bem! — Seja a ideia, quem gere e quem fulmine!...

ESCÁRNIO PERFUMADO

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D'uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas — isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme...

DECADENTES

Richepin, Rollinat! gritos sangrentos
Da carne alvoroçada de desejos,
Mosto de risos, lágrimas e beijos,
Estertores de abutres famulentos.

Desesperado frêmito dos ventos,
De harpas, sutis, fantásticos arpejos,
Clarins de guerra, e cânticos e adejos
De aves — todos os vivos elementos.

Tudo flameja e nas estrofes canta,
Estruge, zune, em borbotões levanta
Noites, luares, fulgurantes dias.

Mas nessa ideal temperatura forte
Tudo isso é triste como a flor da morte
Que brota dentro das caveiras frias...

DOENTE

As unhas perigosas da bronquite
Nas tuas carnes sensuais e moles
Não deixarão que o teu amor palpite
Nem que os olhares pelos astros roles.

É fatal a moléstia. Só permite
Que te acabes por fim e que te estioles,
Sem que em teu peito o coração se agite,
Sem que te animes, sem que te consoles.

Vai se extinguindo a polpa dessas faces...
Mas se ainda hoje em mim acreditasses,
Como no tempo virginal de outrora,

Tu curar-te-ias com pequeno esforço
Das serranias através do dorso,
Pela saúde dos vergéis afora.

Fonte:
Cruz e Souza. Poemas Humorísticos e Irônicos. MEC, Fundação Biblioteca Nacional.

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