Elas têm entre dezoito e vinte e cinco anos. Usam calça Lee, fumam desesperadamente, dizem palavrão. Cursam o científico ou a universidade, muitas possuem o seu Fusca ganho de presente. Em casa ninguém mais as controla, mesmo que o tentem; pelo menos é o que elas blasonam*. E com a liberdade de ir e vir, dia e noite, com a liquidação do tabu da virgindade, com a fácil aquisição da pílula, as menininhas, além da liberação da autoridade doméstica, também se consideram libertas sexualmente.
O curioso é que essas almas livres, estudantes que são, não cogitam em liberdade econômica, Mesmo as diplomadas perdem-se em vagos cursos de pós-graduação, aulas de línguas e arte — no que lhes possa dar por mais tempo a irresponsabilidade estudantil.
Afetam grande desenvoltura, mostram-se extrovertidas e conversadeiras; algumas declaram que já puxaram erva, não sei. Aliás, as que entraram por essa senda sinistra já não são as nossas, fazem parte de outra história. Aqui se fala das menininhas que estão conosco a toda hora, colegas e possíveis namoradas dos nossos meninos.
E acontece que a petulância assumida é leve máscara que mal lhes esconde os problemas — e quantos. Pois são as menininhas em verdade extremamente vulneráveis e inseguras; e os meninos seus parceiros, muito mais imaturos que elas, a pouca habilitação que têm para a vida é dentro dos velhos padrões do machismo — incompatíveis de todo com os novos padrões das moças.
Eles se declaram partidários dos ideais da permissividade moderna, mas, por uma questão de perspectiva pessoal, as menininhas hão de ter da permissividade uma visão muito diversa da visão dos rapazes. Para eles, permissividade é permissividade mesmo — eu te gosto, você me gosta, então que é que tem, acabou sai pra outra, não há grilo. Enquanto elas, ainda trazem no sangue, nos ossos e nas suas entranhas de mulher, a convicção de que aqueles começos são as primícias de uma relação recíproca e durável. Quase nenhuma aceita com plenitude a ideia da simples fornicação lúdica, sem compromisso ulterior. Ou pelo menos, passadas as curiosidades da fase de descoberta, quase todas caem no velho trilho de sexo-filho-casamento, que aliás é o verdadeiro, porque é o chamado da espécie. Só de fingimento elas se prestam ao jogo de pega-e-larga e, depois de cada experiência, saem frustradas e profundamente ressentidas; frustradas até mesmo com a ideia de sexo em si, que sempre lhes foi descrito como algo sublime e maravilhosamente gratificante. Mas que elas foram conhecer através de exercícios improvisados, com parceiros pouco hábeis, em condições de desconforto e sem higiene, consumado às pressas em locais de acaso; não admira que isso tudo as deixe decepcionadas e, pior, assustadas, porque há sempre as consequências a temer.
Algumas que falam comigo mostram-se sempre inquietas, vulneradas, magoadas. Sente-se que o seu padecimento básico é uma perigosa insegurança — quanto a si, quanto ao mundo, quanto aos namorados. Tão insatisfatórios os pobres garotos, igualmente assustados com o que fizeram, passada a hora primeira e irresistível. Sabem os meninos que, até por razões biológicas, elas são muito mais maduras do que eles, o que ressentem; e então partem para as promessas de casamento, prematuros e impraticáveis; ou saem para o cinismo e para a fuga — e é aí que as menininhas procuram um ombro compreensivo onde possam se apoiar e chorar. Ou, fartas dos garotos, se atiram às aventuras com homens mais velhos, experientes e estabelecidos na vida.
Em ocasiões raríssimas têm sorte, o homem se apaixona e transforma o caso em casamento. Ou, o que é mais geral, elas vão passando de mão em mão, se desgastando, se decepcionando cada dia mais fundo; as que podem pagar se atiram ao divã dos analistas, e é comovente e grotesco vê-las disputar entre si quem tem mais anos de análise! As que têm vocação artística ou profissional, salvam-se da solidão e do desespero por esses caminhos; e se não contam com tal saída, resta-lhes mesmo a que ainda se chama a mais velha das profissões. Umas dão para beber, outras se suicidam, é forçoso constatar, embora não se queira forçar a nota da tragédia. Porque em verdade tudo é mesmo uma tragédia. As menininhas, por mais atrevidas, são pateticamente frágeis, pela sua própria condição de mulher, dentro do mundo que as espera.
Seus meninos namorados não têm a necessária segurança para lhes dar, tão inseguros eles próprios, coitados.
Ah, a vida é difícil, uma aventura arriscada. Com todas as garantias tradicionais que tinham outrora, já as meninas naufragavam; que dirá agora, que se atiram à correnteza sem barco nem corda, só dispondo dos braços e do lindo corpo, contra a onda tão funda, tão bruta.
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Vocabulário:
Blasonar – agir ou expressar-se com orgulho ou vaidade a respeito de algo, ou para chamar a atenção sobre si, especialmente alardeando qualidades, virtudes, feitos etc., de modo mentiroso ou exagerado
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.
O curioso é que essas almas livres, estudantes que são, não cogitam em liberdade econômica, Mesmo as diplomadas perdem-se em vagos cursos de pós-graduação, aulas de línguas e arte — no que lhes possa dar por mais tempo a irresponsabilidade estudantil.
Afetam grande desenvoltura, mostram-se extrovertidas e conversadeiras; algumas declaram que já puxaram erva, não sei. Aliás, as que entraram por essa senda sinistra já não são as nossas, fazem parte de outra história. Aqui se fala das menininhas que estão conosco a toda hora, colegas e possíveis namoradas dos nossos meninos.
E acontece que a petulância assumida é leve máscara que mal lhes esconde os problemas — e quantos. Pois são as menininhas em verdade extremamente vulneráveis e inseguras; e os meninos seus parceiros, muito mais imaturos que elas, a pouca habilitação que têm para a vida é dentro dos velhos padrões do machismo — incompatíveis de todo com os novos padrões das moças.
Eles se declaram partidários dos ideais da permissividade moderna, mas, por uma questão de perspectiva pessoal, as menininhas hão de ter da permissividade uma visão muito diversa da visão dos rapazes. Para eles, permissividade é permissividade mesmo — eu te gosto, você me gosta, então que é que tem, acabou sai pra outra, não há grilo. Enquanto elas, ainda trazem no sangue, nos ossos e nas suas entranhas de mulher, a convicção de que aqueles começos são as primícias de uma relação recíproca e durável. Quase nenhuma aceita com plenitude a ideia da simples fornicação lúdica, sem compromisso ulterior. Ou pelo menos, passadas as curiosidades da fase de descoberta, quase todas caem no velho trilho de sexo-filho-casamento, que aliás é o verdadeiro, porque é o chamado da espécie. Só de fingimento elas se prestam ao jogo de pega-e-larga e, depois de cada experiência, saem frustradas e profundamente ressentidas; frustradas até mesmo com a ideia de sexo em si, que sempre lhes foi descrito como algo sublime e maravilhosamente gratificante. Mas que elas foram conhecer através de exercícios improvisados, com parceiros pouco hábeis, em condições de desconforto e sem higiene, consumado às pressas em locais de acaso; não admira que isso tudo as deixe decepcionadas e, pior, assustadas, porque há sempre as consequências a temer.
Algumas que falam comigo mostram-se sempre inquietas, vulneradas, magoadas. Sente-se que o seu padecimento básico é uma perigosa insegurança — quanto a si, quanto ao mundo, quanto aos namorados. Tão insatisfatórios os pobres garotos, igualmente assustados com o que fizeram, passada a hora primeira e irresistível. Sabem os meninos que, até por razões biológicas, elas são muito mais maduras do que eles, o que ressentem; e então partem para as promessas de casamento, prematuros e impraticáveis; ou saem para o cinismo e para a fuga — e é aí que as menininhas procuram um ombro compreensivo onde possam se apoiar e chorar. Ou, fartas dos garotos, se atiram às aventuras com homens mais velhos, experientes e estabelecidos na vida.
Em ocasiões raríssimas têm sorte, o homem se apaixona e transforma o caso em casamento. Ou, o que é mais geral, elas vão passando de mão em mão, se desgastando, se decepcionando cada dia mais fundo; as que podem pagar se atiram ao divã dos analistas, e é comovente e grotesco vê-las disputar entre si quem tem mais anos de análise! As que têm vocação artística ou profissional, salvam-se da solidão e do desespero por esses caminhos; e se não contam com tal saída, resta-lhes mesmo a que ainda se chama a mais velha das profissões. Umas dão para beber, outras se suicidam, é forçoso constatar, embora não se queira forçar a nota da tragédia. Porque em verdade tudo é mesmo uma tragédia. As menininhas, por mais atrevidas, são pateticamente frágeis, pela sua própria condição de mulher, dentro do mundo que as espera.
Seus meninos namorados não têm a necessária segurança para lhes dar, tão inseguros eles próprios, coitados.
Ah, a vida é difícil, uma aventura arriscada. Com todas as garantias tradicionais que tinham outrora, já as meninas naufragavam; que dirá agora, que se atiram à correnteza sem barco nem corda, só dispondo dos braços e do lindo corpo, contra a onda tão funda, tão bruta.
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Vocabulário:
Blasonar – agir ou expressar-se com orgulho ou vaidade a respeito de algo, ou para chamar a atenção sobre si, especialmente alardeando qualidades, virtudes, feitos etc., de modo mentiroso ou exagerado
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.
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